O experimento Carlson – Parte 20

A mulher oriental olhava fixamente para ele. Ela trazia no olhar um misto de admiração e reprovação.
Carson estava indefeso na cama. Houve um breve momento de silencio no quarto.
Era uma mulher altiva, tinha os cabelos brancos, lisos e curtos num corte tipo channel um pouco mais longo que o normal. Seu rosto era bonito, mas com algumas marcas da idade, que aparentava algo entre 58 e 60 anos. Ela estava usando uma roupa parecida com o macacão interno do traje de exploração que Ramsés usava.

Aos pés da mulher, Carlson observou seu traje, completamente revirado. Atrás dela, jogados sobre uma das camas, estão os cartões de acesso roubados de Ramsés, bem como o dispositivo eletrônico brikado.

Percebendo que seu olhar de reprovação talvez indicasse alguma suspeita que ele teria feito algo com Ramsés, Morten tratou de tentar se explicar:
– Olá. Olha… Eu… Eu achei o seu amigo e…
-Morten Carlson. – Ela o interrompeu. – Morten assustou-se, pois ela mexera a boca mas parecia que sua voz havia surgido dentro da cabeça dele. Uma sensação incômoda começou a crescer dentro dele.

-S-sim? Você fala minha língua?
-Claro.
-Como você sabe quem eu sou?
-Essa não é a pergunta que você deve fazer.
-Não?
-A pergunta é: Onde você acha que está?
-Estou… Na sua base… Nesse… Nesse… Planeta. – Conforme falava, Carlson se deu conta que sequer havia batizado o planeta com um nome. – Eu… também sou um explorador… Você sabe.
-Não, rapaz. Não!
-Como não? Olha aí. – Disse ele, apontando o traje no chão.
-A mulher finalmente sorriu.
Ela então lentamente saiu do quarto deixando-o sozinho.

Inicialmente Carlson pensou que ela tinha saído para trazer um mapa, mas a mulher não voltou.
Carlson estava se sentindo tonto. Levantou-se com dificuldade, pois seu corpo ainda estava muito dolorido.

-Ei? Ei! – Morten Carlson desceu da cama foi atrás dela, mas deu de cara com um corredor vazio.

Não havia ninguém ali.

-Ei? Ei! Senhora? Onde está? Alô? – Ele gritou, e ouviu seus gritos ecoando pelas diversas passagens e corredores da base chinesa.
Morten passou então a percorrer a base. Ela só poderia ter ido para a área lacrada. Certamente tinha um acesso.

Carson percorreu o interior da a base até onde conseguiu acesso. A mulher sumiu. Ele olhou até dentro dos armários. Ela tinha evaporado. A única explicação é que saíra para o lado externo ou que havia atravessado para outra seção do laboratório, passando pela passagem trancada. Talvez eles estivessem todos lá, monitorando-o através de câmeras escondidas, estudando-o. Mas e a comida estragada? Não faria sentido. Nem a porta de acesso aberta lá fora. A quantidade de areia dentro indicando que aquilo ficou aberto por muito tempo. Agora estava suando frio.
Não fosse a estranha presença daquela mulher oriental ali olhando pra ele minutos atrás, ele poderia jurar que tudo não passara de um sonho, uma alucinação. Talvez a comida estivesse estragada. Sentia-se enjoado e confuso.

Morten sentou-se no refeitório para tentar colocar as ideias no lugar. Subitamente, uma compressão em seu estômago o fez vomitar. Vomitou a gosma marrom resultante de toda comida com a Coca-cola.

Após vomitar, sentiu-se um pouco melhor.

Ele se levantou, bebeu um pouco de água que havia num tipo de geladeira embutida na parede.
Voltou a procurar a mulher. Nada.
Talvez tivesse alucinado mesmo. Voltou ao quarto. A roupa não estava revirada nem os cartões na cama. Tudo estava como parecia quando ele havia se deitado. Era intrigante.
Carlson deu de ombros. Estava exausto demais para raciocinar. Deitou-se novamente e dormiu. Dessa vez, apagou sem sonhos nem pesadelos.

Morten acordou muitas horas depois. Do lado de fora era dia. A luz do poderoso sol entrava pela pequena janela tripla do complexo.

Ele se levantou e tornou a andar pela base. A mulher, a busca por ela, tudo parecia um sonho distante e enevoado. Mas havia uma poça fétida de vômito no chão, que o obrigou ao desgraçado trabalho de limpar a sujeira.
“Vai que esses caras voltam e vão dar de cara com essa nojeira? Vão querer chutar minha bunda daqui…” – Pensou.

Depois da limpeza, que comprometeu seriamente sua disposição para um café da manhã, Carlson lavou as mãos e tomou um pouco de água. Foi até o banheiro. Lavou o rosto. Sua urina quase vermelha indicava uma seria desidratação.
Bebeu mais água no refeitório e pôs-se a investigar. Quem era aquela mulher?


Vasculhando a base, foi até o laboratório. Encontrou papeis e anotações em chinês. Desenhos, algumas fotografias e rabiscos indicavam conhecimento da cidade perdida. Os chineses estiveram lá. No desenho, entretanto, não havia o poço, portanto, Morten concluiu que aquela fenda se abriu depois que os orientais estiveram lá.

Carlson também encontrou uma série de mapas mostrando que os Chineses já haviam vasculhado uma enorme área do planeta misterioso. Ele reconheceu no mapa a cratera do lago, a cidade perdida e foi observando mais e mais. Muito mais, aliás. Percebeu que a leste, descendo rumo ao pólo do planeta, parecia haver referência a florestas temperadas.

Traçando um paralelo com seu ponto de entrada e o caminho percorrido, as montanhas e as crateras que conseguiu reconhecer, acreditou que estivesse bem perto do equador do planeta, onde o clima era selvagem e inóspito. Olhando o mapa dos chineses, percebeu a sorte que dera.

Se tivesse seguido para o lado oposto ao da manada dos baratões, enfrentaria um deserto imenso que chegava até na borda do mapa, ou seja, tão grande que nem sequer havia sido mapeado completamente pelos amigos de Ramsés.

-Espera aí. Calma aí. Calma aí! – Ele disse em voz baixa, olhando ao redor.


Carlson se perguntou mentalmente como aquilo era possível. O volume de energia para levar aquela base, todos os equipamentos, pessoas… Transportar uma única pessoa da Terra para o planeta misterioso havia sido um feito inacreditável da mais avançada tecnologia. Como os orientais poderiam ter conseguido mandar tantas coisas?
Inicialmente sua única hipótese é que um espião havia passado informações da tecnologia, mas pelo que poderia perceber, estava claro que os orientais haviam descoberto “mais alguma coisa”, ampliando dramaticamente a capacidade de expansão do túnel de transporte.

Morten voltou os olhos para o mapa que segurava, ainda trêmulo. O mapa levou Carlson a refletir sobre o quanto os chineses sabiam sobre o lugar. Tudo indicava que eles estavam lá há muito mais tempo. Para mapear áreas tão grandes do planeta, só havia uma hipótese: Eles não tinham somente aquela base, mas também quem sabe até satélites ou drones, ou até maquinas voadoras no planeta. Carlson foi ate o lado de fora da base. Não havia marcas de heliporto nem nada do tipo. Ele retornou para dentro.

Colocou um macarrão com queijo para esquentar no microondas. Apesar de toda tecnologia da base chinesa, havia pelo menos um equipamento que o impressionou: Havia uma vitrola.

Uma vitrola pequena, dos anos 60. E com ela, somente seis discos de vinil. Quase tudo era terrivelmente chato, com chineses cantando coisas estranhas, que lembravam canções românticas italianas dos anos 60, mas em chinês… Felizmente, um disco ali salvava: Musicas clássicas. Era o único disco que dava para aguentar. Tchaikovsky, Mozart e Beethoven, entre outros grandes nomes, logo se tornariam seus companheiros.

Passaram-se 5 dias.

Carlson começou a limpar a base, cuidar de seu joelho. Com o passar dos dias, aplicando gelo, e com o auxílio de curativos básicos, o edema do joelho melhorou e o inchaço diminuiu muito. Os ferimentos também estavam cicatrizando bem. Havia comida, abrigo do calor e frio, banho quente.

Ele tentou usar as ferramentas que encontrou para desmontar o painel de acesso e tentar dar um curto e acessar a ala bloqueada da base chinesa, sem sucesso, pois havia muito menos fios do que ele esperava que houvesse. Tudo parecia estar impresso em um plástico laminado condutivo bem esquisito.
Em seu tempo livre, Carlson tentava consertar seu próprio traje. Usou o microscópio do laboratório para encontrar o ponto de ruptura nos circuitos. O dano havia torrado uma série de vias do comando do condensador. Havia também uma falha causada pelo esgarçamento de um conduíte, que expôs os cabos do termopar do dispersor da bateria. Ao oxidarem, eles entraram em curto, o que rapidamente derretera o conjunto de proteção dos módulos de comando de aquecimento e finalmente, os fios do sistema de recarga das baterias principais, auxiliares e de emergência. Ou seja, uma merda total.

Naquele dia, Carlson estava soldando novos fios no termopar destruído. Já era quase a hora do jantar e a vitrola tocava a “Dança Húngara n. 5 em G menor” de Brahms, quando Morten notou algo estranho na musica: três fortes batidas no meio da entrada dos violinos. Nunca havia reparado aquelas batidas. Um erro da Filarmônica de Moscou? Impossível.
Ele se levantou e com os dedos, ergueu o braço da vitrola.

Quando o ambiente se tornou silencioso, somente cortado pelo som do vento nos dutos de ar, o tilintar dos equipamentos eletrônicos e o som pesado de sua própria respiração, três enormes batidas explodiram, ecoando no corredor.

“Hã?” – Mas que merda é essa?

Novamente, três fortes batidas soaram na lateral da base. Calrson correu até a porta para se dar conta que havia alguém ali, batendo com uma pedra na entrada.
Ele abriu o painel lateral e puxou a alavanca. A porta se abriu e o corpo de um explorador totalmente sujo e empoeirado caiu desfalecido diante dos pés dele. O explorador usava um traje que era diferente do dele e do traje dos chineses.

Ao remover o capacete, ele se espantou:

“É uma mulher! De cabelo verde!”

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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