O Experimento Carlson parte 15

Já devia faltar pouco para o amanhecer quando Carlson conseguiu descer a enorme colina de rochas afiadas. A sede torturava-lhe  a alma. Cada passo parecia um suplício.
A cidade estava em ruínas. Logo, Morten observou que a colina de pedras escuras que havia acabado de descer não eram rochas afloradas pela atividade vulcânica do planeta, mas sim destroços das construções.
Todas as construções eram feitas do mesmo material. Um brilhante e polido vidro vulcânico escuro, agora opaco, recoberta com a poeira que soprava das planícies ressecadas pelo inclemente sol.

Em seu auge, a cidade deve ter sido como uma jóia escura cravada na aridez do planeta misterioso.  Havia construções trapezoidais, de arestas super afiadas. Escadarias, muitas escadarias, e rampas estranhas se entrecortavam na paisagem, em meio a montanhas de pedras e pedaços de prédios e torres esquisitas, desabados.  Tudo era escuro e confuso, pois a cor do vidro vulcânico sujo deixava a compreensão das formas dificultada. Estava bem escuro ainda. Platôs se erguiam meio sem sentido em meio a paisagem confusa, contrastando suas linhas horizontais contra enormes, colossais blocos verticais ladeados de colunas ridiculamente grossas.
Carlson se aproximou com cautela das construções. O vento serpenteava por entre os destroços soltando os assovios que eram constantes no mar de pedras da noite anterior, e que ele já nem se lembrava mais  como era irritante. A escuridão da madrugada atrapalhava a ver direito o que se passava e o frio congelante já o deixava tonto e meio desorientado. Se perder no labirinto da cidade em ruínas era uma possibilidade concreta, mas à aquela altura, Carlson só pensava numa coisa: Abrigo do frio.
Um sono brutal vinha tomando conta de seu ser e ele sabia o que aquilo significava. Ele estava congelando. A hipotermia vinha com esse sono mortal. A dor escruciante nas pernas que pareciam já querer se negar a dar mais um passo que fosse o levou a se manter na periferia das ruínas. Encostou sob um paredão liso de enormes blocos escuros.
Sua garganta ardia como se houvesse comido pimentas. A fome também era constante. Havia perdido praticamente todas as energias. Seu corpo inteiro doía. Carlson olhou nas rochas ao seu redor, incrivelmente lisas e com cortes precisos. Passou as mãos pela parede de obsidiana atras de si e ela deslizou na camada de poeira, escorregando pela superfície vitrificada. Mesmo com muitas dores, se encolheu como podia. O traje conferia alguma proteção térmica mas ela era muito fraca para o frio que fazia na noite. Sus pálpebras estava com gelo e sua boca havia colado.

Estava com dificuldade de pensar. Consultou o relógio no computador do traje e não entendia o que estava vendo. Eram os sinais do final, que já se aproximavam.  Uma leve injeção de adrenalina de pensar que estava às portas da morte, trouxe um pouco de lucidez. Faltava ainda uma hora para o sol surgir. A morte seria certa. Desejou ter a manta de fiapos roxos para se cobrir.
Seus olhos ardendo, pesados, só queriam se fechar.
Algo inusitado aconteceu. Um vento quente, que surgiu do nada e o atingiu. Era um vento quente mesmo. Morno. Carlson pensou ter alucinado, mas uma nova lufada do vento surgiu dando provas que havia uma fonte termal por ali em algum lugar.
Se levantar, foi um suplício.  Ele se apoiou nas pedras e foi cambaleando ao longo do enorme paredão escuro. Perto de onde Carlson havia se encostado para morrer, uma enorme coluna de pedra estava tombada. Ela era megalítica, com uns cinco metros de espessura. Quando desabou, a coluna havia afundado no solo, abrindo uma grande rachadura de onde provinha esse vento morno.

Carlson deitou-se na rachadura. De tempos em tempos, a lufada de vento quente subia das profundezas, emanando das pedras sob a grande coluna escura de vidro vulcânico.  O calor do vapor que subia era suficiente apenas para aquecer a superfície do traje, mas apos alguns minutos o interior da roupa começou a se tornar mais e mais agradável.  O cheiro era ruim, lembrava o cheiro de ovos podres, o que indicava a presença de enxofre. Carlson estimou que talvez um rio subterrâneo estivesse atingindo uma fissura profunda no subsolo, gerando um gêiser lá pra baixo que forçava o vapor a subir pelas fissuras das pedras.  Um dos riscos de estar ali era aspirar gases venenosos.  Carlson virou o rosto para cima, evitando aspirar diretamente o ar quente que vinha do buraco. Era preciso muita força de vontade para evitar o ar quentinho e virar o rosto para o vento congelante da madrugada.
Uma hora depois, o dia começou a raiar e os primeiros raios de luz trouxeram consigo a compreensão da magnífica e desolada paisagem da cidade escura, em ruínas.
Não havia nada que se parecesse com uma escrita, mas Carlson sabia que os humanos não possuíam a tecnologia para cortar as pedras daquele modo. Tudo era finamente esculpido com precisão absurda. Os padrões remetiam um pouco aos arabescos árabes da Terra.

Ao longe, em algumas construções Carlson pareceu distinguir algumas mandalas e formas similares. A arquitetura se alterava entre cortes orgânicos e superfícies angulares. Havia somente o mesmo material. Toda a cidade era feita da rocha vítrea escura, que agora diante da luz direta do sol que brotava por detrás dos rochedos ao longe, brilhava.
Morten imaginou que talvez a cidade tenha sido destruída por meteoros ou terremotos, pois dois grandes prédios estavam completamente destruídos formando verdadeiras montanhas de detritos  afiadíssimos.
Somente quando o sol subiu mais foi possível identificar uma colossal construção que parecia se projetar para o céu e dominava a paisagem com suas torres esquisitas subindo verticalmente para o infinito. Estava muito longe, mas Carlson não teve dúvidas que ali estava uma espécie de catedral. O acesso a ela parecia impossível pelo labirinto infinito de destroços, colunas, blocos de pedra e construções menores de todos os tamanhos e em uma ampla profusão de formas.
Carlson precisava descansar. Seu corpo indicava a pouca energia. Havia escapado da morte congelada mais uma vez, mas sabia que não teria forças para atravessar a cidade e contornar todos os enormes pedregulhos e ruínas.  Sua vontade era de entrar em cada uma das construções e estudá-las, observar os elementos, os objetos deixados pelos seres que ergueram a cidade de vidro.
Encostou-se numa pedra e ficou parado, pegando o ainda fraco sol, que esquentava seu rosto, amortecido pelo frio.
Estimou a distância entre ele e a catedral em talvez quatro quilômetros.  Para aquela enorme construção ser do tamanho que ele via naquela distância, ela devia medir centenas de metros.

A sede já estava o levando à loucura. A vontade era de abrir uma garrafinha de coca-cola e beber seu gelado e doce conteúdo num gole só.

“Quem me dera…” – Pensou.

O Sol estava começando a focar mais e mais forte e o dia frio começou a dar lugar a lufadas de um vento morno, vindo do leste.
Morten percebeu que se andasse devagar, podia  reduzir um pouco a dor nos quadris que se irradiavam para as pernas. Logo ele precisaria se abrigar na cidade alienígena, pois o sol rapidamente subiria e o dia escalaria sua temperatura até insuportáveis cinquenta graus centígrados, ou mais.

Ele seguiu seu caminho, andando bem devagar para suportar as dores até encontrar uma das crateras. A cidade continha algumas crateras. Umas maiores que outras, onde nos arredores, não havia uma construção de pé. Tudo eram escombros enegrecidos e sujeira.

Descer até o fundo dessas crateras estava a princípio fora de cogitação. Seria uma longa descida e uma ingrata -beirando o impossível – subida para sair delas. Por outro lado, contornar as crateras dos meteoros envolvia andar muito, muito mais, com dores lazarentas e sede cada vez maior.

Agora o sol estava quente mesmo. O chão brilhava com os pedaços de pedras lisas, refletindo o brilho em seus olhos toda hora. Era irritante demais.
Numa das menores crateras, Carlson pôde ver ainda um grande pedaço do meteoro no centro do buraco.  Devia ter o tamanho de um ônibus pequeno e estava encravada no solo. Ao seu redor, tudo parecia derretido. A rocha devia ter entrado bem quente pela ação da atmosfera, mas certamente era uma pedra incomum, com um núcleo de material tão duro que não só não se destruiu no impacto, como um belo pedaço dela ficou encravado como uma enorme flecha de rocha enfiada no solo.
A paisagem era impressionante, mas o que atraiu sua atenção mesmo não foi o que viu, mas sim o que escutou, vindo da pedra. Era o incontestável som de… Água. Muita água!

Morten Carlson ignorou suas dores completamente e por breves minutos esqueceu sequer dos riscos de correr naquele enorme buraco de detritos e pedras afiadas parcialmente derretidas. Desceu o mais rápido que suas condições físicas permitiam, para descobrir que o enorme meteorito havia escavado uma fissura na superfície. No fundo, em meio a uma escuridão abissal o som de água corrente se fez ouvir. Havia um rio subterrâneo la em baixo.

O explorador pegou uma pedra do chão e jogou na fenda. A pedra rodopiou no vazio e sumiu no escuro. Um tempo depois ele ouviu um “capluft” ecoar no buraco.  Pelo tempo entre jogar a pedra e o barulho estimou em uns dez metros o espaço entre ele e a preciosa água la no fundo. Estava bem mais longe do que ele gostaria.
Se ele não conseguisse um meio de descer lá, seria, mais uma vez, o seu fim. Se houvesse uma corda ou cabo, ele poderia amarrar na pedra e tentar descer de rapel, mas não havia cordas, nem cabos ou fios, varas ou qualquer coisa que permitisse descer.
Seria preciso escalar todo o buraco da cratera  de volta lá pra cima,  para poder percorrer a cidade em busca de alguma coisa que permitisse descer no rio subterrâneo. Só de imaginar seu estômago já se contorceu. A fome agora era uma dor, uma dor real e física.
Mas não havia escolha. O sol estava subindo mais e mais no espaço azul do céu, e o calor abrasador subindo a cada minuto, o que tornava mais desgraçada a subida, a sede e a fome.
Carlson abandonou a mochila. Sabia que com ela, não conseguiria forças para voltar lá pra cima. Desconectou a mesma e a apoiou na borda do buraco.  Começou sua penosa subida. Sem a mochila, a escalada era ligeiramente mais fácil, mas ficar sem a mochila dava nele uma sensação horrível de desamparo, de estar nu, e vulnerável no planeta hostil.

Quando finalmente alcançou a borda da cratera, Carlson se espantou:

– Ah, não!  Não pode ser!  – Ele gemeu, ofegante.

Diante dele se aproximava, veloz e incontrolável,  a manada dos baratões.

Os baratões vinham na direção do poço, destruindo tudo em seu caminho.

 

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

    • “…Desceu o mais rápido que suas condições físicas permitiam, para descobrir que o enorme meteorito havia escavado uma fissura na superfície. No fundo, em meio a uma escuridão abissal o som de água corrente se fez ouvir. Havia um rio subterrâneo lá em baixo.”

    • “Morten Carlson ignorou suas dores completamente e por breves minutos esqueceu sequer dos riscos de correr naquele enorme buraco de detritos e pedras afiadas parcialmente derretidas. Desceu o mais rápido que suas condições físicas permitiam, para descobrir que o enorme meteorito havia escavado uma fissura na superfície. No fundo, em meio a uma escuridão abissal o som de água corrente se fez ouvir. Havia um rio subterrâneo la em baixo.”

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