Ascensão e queda de Diocleciano

Fora enfim, dormir exultante.

Dormir por assim dizer, já que ficou deitado com seus olhos abertos na escuridão. Não conseguiria dormir mesmo que quisesse.

Acabara de completar os sete anos de pés no chão e calças curtas. Naquele dia em que acordou antes mesmo do galo, afim de exercer suas prerrogativas divinas de aniversariante, iria ter festa em casa. Veria os amigos com a roupa nova da igreja e receberia visitas. Seria enfim o protagonista do teatro de sua própria vida. Todos bateriam palmas para ele. Beijaria as mãos das tias avós, das tias-tias, das tias-que-não-se-lembra e das vizinhas, as tias velhas e até das tias desconhecidas aos quais os pais ordenam telepaticamente que se beije a mão, afim de demonstrar nossa superior educação familiar.

Não convém arrumar problemas de refugar diante de uma mão enrugada e cadavérica, que oferece seu dorso manchado e veiudo em curva, para um beijo de bênção no dia do aniversário. O primo havia lhe ensinado o macete de chupar pra dentro os próprios lábios e assim, fornecer um beijo côncavo, falso no contato, mas deferente o suficiente para cumprir o ritual.

-“Bênça”.

-Deus te abençoe meu filho. – A voz era trêmula e logo se seguia de um abraço esquálido, do qual se sentia os ossos pontudos a lhe apertar as costas.

Agradecia-se então a presença, e os pais solicitavam a musica. Uma velha vitrola se fazia presente e entre risos e conversas, ele imergia na amizade dos amigos. Todos o cercando. Os brigados neutralizavam suas rivalidades em prol maior, que era o dia do aniversário. Um brigadeiro, uma bala de coco, um cachorro quente com carne moída reconstruíam as amizades abaladas pelo futebol, pelo campeonato de corrida, ou pela bicicleta estragada.
Todos os amigos traziam presentes, em sua maioria, camisas, chinelos e bermudas. Em seguida, avançavam até o quarto em procissão para contemplar o esplendor magnífico do melhor dos presentes. Os presentes se colocava na cama, como uma grande vitrine horizontal, mas um único regalo merecia lugar de destaque sobre a cômoda ao lado da cama.
Os risos e conversas logo se avolumam e do nada, lá fora surge uma viola, um pandeiro e depois, dois violões. Eles surgem, nunca se sabe de onde virão, mas é fato que tal qual papai noel e o coelho da páscoa, eles vêm, e surgem no fim da noite, quando a festa ganha corpo, conforme o mistério da vida.

Daí chega-se ao clímax da felicidade. Os pais chamam os convidados, juntam todos os amigos atrás da singela mesa de toalha nova – presente de uma tia-avó que já morreu.

É a “Hora do parabéns”. As conversas se interrompem, os convidados se aglomeram. A luz escurece e palmas soltas ecoam, tentando e vão dar a partida no coral.  Logo, algum fumante dos arredores acode em trazer um fogo para acender a vela, a tia avó solta um esganiçado grito de “Paaaarabééééns pra…”  e inicia-se o desafinado coral. Tudo gira ao redor dele e todos os olhares convergem para ele. Espremido entre amigos que invejam sua posição, ele bate palmas para si mesmo, finge cantar e olha de soslaio para verificar se algum aventureiro intenta soprar sua vela e roubar a cena.
Tão logo a cantoria desafinada chega no “rá-tim-bum”, ele infla o peito com tanto ar que se fossem duas velas, perigava desfalecer ali mesmo, de síncope.

Sopra com velocidade e força. A vela sibila e se apaga, deixando no ar um rastro branco que serpenteia. Surgem mãos invasoras fazendo “casinha” sobre a vela, num estranho ritual de ressurreição da chama. Eis outro mistério da vida:  Em alguns anos ela volta, em outros, nem tanto, pois já se acendem as luzes, e a mãe começa a cortar o bolo, com energia frenética.
O melhor momento é então precedido de situação infeliz e traumática.

O povo canta para saber de quem será o primeiro pedaço. Novamente, ele é o protagonista, mas agora, de uma cena trágica, um volteio macabro do destino do qual é impossível escapar. Deve escolher alguém para ser homenageado com seu primeiro pedaço de bolo. Uma pessoa será agraciada e todas as outras se sentirão diminuídas. Os melhores amigos, a menina que ele gosta, a prima que não via há tantos anos e do qual ainda guardava o sabor do primeiro beijo, a tia-avó que está “mais pra lá do que pra cá”, conforme a mãe disse, o padrinho, os pais, todos ali olhando pra ele, enquanto a musiquinha desgraçada intitulada “com quem será” é repetida como um mantra funesto que precederá seu suicídio social.

Escolheu Glicério, o irmão pequeno. Saída diplomática, “pra ele não chorar”, alegou. Todos fingem compreender e segue-se a festa. Novamente, uma olhada de soslaio na tentativa de ver se alcançaria os brigadeiros e cajuzinhos antes dos meninos da Rua Sete, posicionados como hienas prestes a devorar uma corsa abatida nas profundas savanas da África Meridional.

Segundos depois, onde outrora uma profusão de docinhos vicejava enfeitando a mesa, só restam forminhas reviradas numa devastação árida e terrível. Na disputa, alguém sujara a toalha da mesa, fato que renderia reclamações da mãe nos próximos quatro dias seguintes.

A cantoria lá fora e as crianças correndo com os balões. Logo, os velhos irão sumir como mágica, e as crianças pequenas vão com eles. Ficam os maiorezinhos, e os rapazes e mocinhas, no terreiro. A viola e o pandeiro agora são um conjunto completo onde existe até uma flauta. Duas moças ensaiam uma dança, e os adultos batem palmas. Coroa-se a noite com músicas que ele ainda desconhece, e um novo parabéns. A festa chegara ao fim. A mãe bota os filhos para entrar. A musica do terreiro ainda persiste por algumas horas com melodias e temas românticos, mais adultos. Ele ouve a risada da mãe ecoar lá fora. O coro de homens e mulheres é belo: “por onde for, quero ser seu par…”
Espera que no próximo aniversário já possa ficar la fora com os mais velhos até o final. Então, fica ali, deitado com o pijama novo que ganhou de uma das vizinhas, a costureira de sua mãe. O pijama é bom e tem cheiro gostoso de coisa nova. Mas não é o presente preferido.

Dos presentes, só há um que é seu preferido. A prima lhe dera um peixe. Veio com aquário e tudo. Peixe bonito, brilhante. Escamas que brilhavam como faíscas ao sol. O peixe estava sobre a cômoda. Estava escuro e ele não podia ver o peixe nadar, mas sabia que ele estava ali. Por sugestão do tio batizaram o animal de Diocleciano. “Nome de rei”, disseram. Ele aceitou, não se preocupava tanto com nomes, diante da prima a lhe sorrir, e da beleza incomparável do presente a nadar diante dele.
Fechou os olhos na escuridão e ficou ouvindo as pessoas a cantar as velas de Mucurípe. Em sua mente, Diocleciano fazia evoluções na água e volteios com sua cauda majestosa. Em sua mente, era como se o peixe dançasse a musica lá de fora.

Dormiu e sonhou com Diocleciano.

Quando percebeu que havia dormido, já era de manhã.
Levantou-se, abriu a janela e a forte luz adentrou o quarto.

Diocleciano estava dormindo no aquário. Ele se aproximou com medo de assustar o peixe, mas pareceu-lhe que Diocleciano estava mesmo muito cansado, pois dormia pesadamente, sem nem se mexer.
Temendo o pensamento gelado que lentamente se acendeu como uma brase no coração, ele correu ate o quarto dos pais. Acordou o pai. A mãe, ainda de olhos fechados, levou a mão na testa e gemeu com dor de cabeça.
-Acho que Diocleciano não está querendo acordar. – Ele disse ao pai.

O pai passou a mão pelo rosto e olhou de maneira estranha para a a mãe.
Todos se entreolharam em um tenebroso silêncio.

O pai se levantou e foi até o quarto com ele. Bateu no vidro. O peixe estava emborcado numa curva parabólica.

-Ele está dormindo? Ele está dormindo? Ele está dormindo? – Perguntou rápido, em seguida, talvez tentando sufocar a resposta que não desejava ouvir.

O pai mexeu a cabeça de um lado a outro. Meteu a mão na água e retirou Diocleciano. Colocou na mão dele.

Ali estava Diocleciano, brilhando como no dia anterior, quando chegou nadando, vistoso cheio de vida. Agora era um pedaço úmido de morte.

Foi com o pai até o banheiro. O pai apontou o vaso.

-Jogue aí.

Não tinha coragem.  Hesitou. As memórias de todo seu amor ao ver Diocleciano pela primeira vez vieram-lhe à mente.
Deu um passo para trás e levou o peixe para mostrar a mãe. Tão logo entrou no quarto com a mão pingando, a mãe gritou sacudindo a mão.

-Sai, sai, não quero ver! Não quero ver!

Voltou até o banheiro onde o pai estava esperando pelo sepultamento.
-Jogue aí. – Ele repetiu.

Então, ele disse: – “Tchau, Dioclecaino” e lançou o peixe. Ele fez um “catapluft” na água do vaso sanitário.

Por uma fração de segundos ele pareceu ver Diocleciano nadando novamente. Mas logo ele emborcou em curva como um U de cabeça para baixo.
O pai sinalizou com o olhar o botão da descarga e ele sentiu um nó apertar sua garganta.
-Vai. Aperta. – O pai disse.
-Eu não… Eu não… – Ele gemeu.

-Não tem coragem? – O pai perguntou, colocando o dedo no botão. Um afluxo de água desceu sobre Diocleciano, que rodopiou loucamente. Mais um ou dois giros e “spluuupt”, sumiu no turbilhão.

-Está chorando? -O pai perguntou.

-Não, não. – Secou as lágrimas com a manga do pijama.

Saíram para tomar o café.

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Me lembrou do dia em que meu peixe morreu, depois de 8 dias comigo. Acho que botei comida demais, eu tinha 8 anos. Eu chorei demais, tanto que não consegui nem ver minha enterrar o bichinho no canteiro do quintal. Tenho pra mim, que foi a ultima vez que eu chorei sóbrio, pois meu próximo berreiro foi já aos 21 anos, totalmente alcoolizado.

  2. Obrigado meu amigo por mais um conto,te acompanho há muitos anos você escreve muito bem,sua perseverança em manter este site em meio a tantos projetos pessoais e profissionais potencializa seu trabalho. Um agradecimento por mim e por todos que admiram seu trabalho. As descrições vivas de suas narrativas são um entretenimento de qualidade e que você disponibiliza gratuitamente. Muito obrigado!!

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