O experimento Carlson – Parte 8

Quando o dia amanheceu, Carlson estava com os braços dormentes. A posição ingrata em que dormira estava cobrando um preço alto. Seus dedos formigavam. As juntas pareciam ranger.
O desejo de um banho havia crescido de tal maneira que Morten passava mais tempo relembrando de como era feliz e não sabia no tempo em que podia tomar um banho quente, do que pensando em para onde estava indo no pedregoso caminho.
Eventualmente pedras se soltavam e ele ameaçava cair. Não era um avanço fácil. Em um certo trecho do percurso havia muitas lajes e  rochas metamórficas sílico-argilosas formadas pela transformação da argila sob pressão e temperatura, endurecidas em finas lamelas esbranquiçadas que se partiam com certa facilidade.
Morten Carlson vez ou outra parava para um exame dos tipos de solo. Muitas vezes, uma simples pedra pode contar mais sobre o passado de um planeta do que um ser vivo.
Uma coisa amarronzada chamou sua atenção no solo. Era um tipo de limo. Uma coisa entre limos e Líquens-esponjosos novos, que apareceram pelo caminho conforme o avanço se aproximava do topo rochoso. Eram bem interessantes, lembrando um pouco as esponjas submarinas. Repletos de diminutos orifícios coletores de umidade, deviam ficar colhendo água do ar trazido pelos ventos fortes. Os ventos eram um show à parte. Muitas vezes surgindo em rajadas fortíssimas, capaz de arremessar um explorador distraído montanha abaixo. Outras vezes, o vento desaparecia completamente. Estava claro para Morten que os ventos malucos tinham uma razão de ser. O planeta girava rápido demais em relação à rotação terrestre. O suor pingou em seus olhos.
Começava o momento da calmaria. Nenhum vento deixava o avanço pela face da montanha mais penoso. O calor aumentava. O traje com pouca energia devido às necessidades de aquecimento da madrugada e noite anteriores tornava-se fraco para forçar o resfriamento sob intensa atividade física.  O sistema de resfriamento por filtragem de ar era também parte integrante do sistema de produção de água da mochila. O correto seria esperar, na sombra de preferência, que as baterias se recarregassem. Mas essa espera teria seu preço, desperdiçar as horas mais frescas do dia, implicaria em avançar no sol mais forte, quando todo esforço seria dobrado.

O dia começou a esquentar rápido. A altitude não colaborava.
Morten logo chegou numa etapa íngreme. O caminho escolhido levou a um beco sem saída. Havia uma parede de rocha bloqueando toda a passagem. Sua única via parecia ser arriscar a vida num salto insano ara se agarrar em uma borda afiada de rocha ígnea. Era completamente inviável avançar por ali. Fazer o salto parecia loucura. Morten olhou lá em baixo. Sob seus pés grãos de pedra despencaram no vazio, estourando em pedaços lá em baixo. Calculou as chances, era quase garantia de morte. Voltar era a única alternativa.
-Puta que pariu! – Ele gemeu ao imaginar o percurso de volta até algum ponto que pudesse escalar mais facilmente. Consultou o palm do Ramses. Estimou sua posição com base no que via do alto da montanha. Havia dois grandes picos a sua direita que estavam nos mapas. Apareciam bem claramente, e era através dessa indicação geográfica que Morten podia estimar mais ou menos onde estava. O caminho traçado no mapa mostrava que era por ali que Ramsés tinha vindo. Não fazia sentido.

“Será que o maluco pulou?” Morten Carlson não queria acreditar. O chinês não seria tão louco.
Morten verificou o solo. Observou a coloração das pedras. O solo lhe mostrou a verdade: De fato, havia por ali uma passagem. Ela tinha desabado desde que o chinês passou. Os fragmentos de rocha espatifados no fundo do abismo eram as testemunhas silenciosas do que antes era um caminho cortado na pedra pela natureza inclemente do planeta misterioso.
Vencer aquele percalço seria complicado. Morten puxou de memória alguns pontos da jornada onde seria possível fazer um desvio. Não eram muitos. Certamente uma hora de caminhada em sentido contrário e depois uma escalada complicada, pelo menos. O ponto de desvio estaria justamente no local recoberto das rochas metamórficas sílico-argilosas. Seria preciso redobrar o cuidado. Diferente da estável rocha ígnea que dominava em grande parte a cadeia de montanhas da borda da cratera, as rochas sílico-argilosas tinham duas linhas de folhabilidade: clivagem e grão. Isto tornava possível que se dividissem em finas folhas, deslizantes como sabonete, principalmente porque muito ali estava coberto com o limo-líquen-esponjoso.

Mas não teve jeito. Morten retornou, descendo a montanha em busca de outra via.

Conforme descia, se perdeu em pensamentos sobre a base do Ramsés. Ainda não havia pensado uma coisa. O volume de energia necessário para mandar somente ele tinha sido incalculável. Como os chineses teriam matriz energética capaz de mandar toda a infra de construção de uma base, mais o Ramsés, e pelas fotos, talvez mais de um explorador duma vez? Como seria possível?
Não era uma cabana simples, as fotos permitiam ver um investimento considerável em infraestrutura.
Só parecia haver duas hipóteses para explicar isso: Ou os Chineses estavam durante anos “escondendo o jogo” sobre suas tecnologias de geração energética como forma de manter o mercado estável, ou talvez os caras tivessem captado mais informações do que os Norte Americanos com o Chime. Seria possível? Morten tinha dificuldade de levar essa hipótese a sério. Apesar de todos os segredos envolvendo a transferência de matéria estruturada, os segredos para a compreensão da “Porta-Terry-Lee-Crew” só foi possível com a escavação dos discos de ouro no túmulo do Peru. Como os chineses teriam conseguido a compreensão da porta TLC senão por via da espionagem, pura e simples? Nesse caso, se houve um espião no Buraco, certamente Morten o conheceu. Seria algum de seus companheiros? Provavelmente não era um dos exploradores. Os exploradores tinham um caráter muito descartável no projeto. Sem dúvida tinha que ser alguém de alto nível. Alguém com acesso não somente aos planos do projeto, mas com conhecimento de toda a estrutura física envolvida na abertura da porta TLC.
Os pensamentos sobre como os orientais chegaram ao estado da arte tecnológica ajudaram a fazer o tempo passar depressa. Morten estava agora de volta sobre a pilha que parecia infinita de pequenas folhas finas de pedra, que lembravam ardósias frágeis e esbranquiçadas.
Apoiou o pé sobre o bloco de pedras e tão logo colocou seu peso, elas escorregaram como sabonete. Qualquer peso mínimo fazia as folhas se soltarem e escorrerem umas sobre as outras, deslizando nos líquens esponjosos e despencando da ribanceira.

Carlson analisou a via de subida. Os primeiros trinta metros seriam os mais desafiadores, depois havia um platô de rocha ignea que sobrepunha o amontoado das placas sílico-argilosas. Por este platô ele poderia avançar com mais estabilidade, galgando uma via quase vertical, mas com fendas e rachaduras estáveis e fortes, onde se agarraria com facilidade para o nível superior.

O primeiro passo foi encontrar aflorações de pedras profundas, que estivessem bem fixadas e travadas, sem risco de se deslocarem sob a ação do peso. O traje pesava muito e tornava a escalada difícil. Não fosse o traje sua única garantia de sobrevivência contra o clima do planeta, Morten teria largado aquela merda para trás e subido usando somente o macacão temelétrico.

Contrariando um pouco as perspectivas, a subida começou bem, com  grandes pontas estáveis onde ele conseguiu se agarrar. Escalar não era muito seu forte, mas ali não se tratava de uma opção, senão uma necessidade imperativa de sobrevivência. A mochila havia mudado seu centro de gravidade. Reaprender a se equilibrar com aquele trambolho nas costas foi, um aprendizado lento.
Subitamente, ao se agarrar numa das pedras, quando foi jogar o peso para andar para frente, sentiu, como em câmera lenta, uma folha de pedra se soltar sob suas botas. Morten agarrou com as duas mãos a pedra, mas o pior aconteceu. A pedra se quebrou ante o peso. Ele inclinou para frente, tentando cair de barriga, mas o solo se partia rapidamente sob ele. As pedras escorregavam na gosma amarronzada e Morten começou a escorrer. Desesperado, não conseguiu sequer gritar. Foi tentando cravar os dedos em qualquer fenda. Finalmente agarrou uma placa ressaltada, mas logo ouviu um “crack!” e  nada o segurou. A laca tinha se desprendido. Ele desceu mais rápido ainda, escorregando de barriga, raspando o traje na rocha gosmenta, agarrado na folha de pedra que se fragmentava sob seu peso.
“É o fim!” – Pensou, quando sentiu que estava chegando perto do precipício.

 

CONTINUA 

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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