O experimento Carlson – Parte 4

Levou mais tempo do que Morten esperava para chegar no ponto de pegar uma nova carona com os baratões. Quando chegou mais ou menos na reta de onde as enormes criaturas passariam, ele estava exausto, não aguentava dar mais um passo. A fome tinha chegado com força.
A fome estava mesmo no momento de aparecer. Antes da operação, Morten recebeu uma injeção de um complexo multivitamínico bem poderoso, com o qual foi se habituando ao longo de meses, com doses cada vez maiores para o seu organismo se adaptar. Uma injeção do complexo oleoso cor de rosa garantiria um bom tempo sem precisar se alimentar.  Era uma bomba energética poderosa de complexos microencapsulados, que era aplicada diretamente no intestino, com um seringão que faria as injeções de desenho animado parecerem brinquedos.
A fome havia chegado antes da hora prevista, o que indicava um consumo energético bem acima do planejado. Claro, ninguém ia imaginar a parada dos baratões ou ou comedor de baratões. O sol também fazia a parte dele, sem deixar um lugar para se proteger. Morten acessou os controles do gerador de água da mochila e a noite havia provido umidade suficiente no ar para produzir um volume adequado. Pelo menos isso estava conforme planejado. Morten bebeu a água se se hidratou, pois sabia que iria suar bastante nas próximas horas. A água atenuou a fome. Após o frenesi com a água, ele já sabia que seria mais seguro beber longe dos baratões.

As enormes criaturas estavam chegando perto. Morten correu e se posicionou de modo a ficar protegido da incidência do sol atrás dos cascos de pedra das criaturas. Eles não se moviam muito depressa, era um movimento bem cadenciado, mas havia um risco substancial para tentar agarrar nas criaturas. Se algo desse errado, ele poderia ser esmagado facilmente. Observou um a um os baratões e escolheu um não muito grande. Devia ser um filhote ainda, porque era um dos menores. Estava bem fragmentado com o casco repleto de fissuras onde foi relativamente fácil saltar e agarrar. As fissuras e rachaduras formavam uma via de  acesso até o topo do casco. Morten escalou com relativa facilidade contemplando com um certo nojo, que de algumas rachaduras minava uma gosma fétida e grudenta, que deveria ser o sangue daquele bicho. No conflito, muitos cascos se choraram, e certamente diversas dessas criaturas estavam feridas. O baratão seguia a manada por uma via paralela, levemente afastado do grupo principal que se moviam batendo umas nas outras soltando grandes pedaços de pedra no caminho. Aqueles tentáculos iam também se batendo, se encontrando, deveriam servir como um sistema de comunicação. Nada ali indicava qualquer som, ou indício de comunicação entre os rochedos, somente o som da movimentação das pedras, os eventuais choques de cascos e as batidas das pernas contra o solo. Alguns se arrastavam precariamente, abrindo valetas enormes que se perdiam de vista no solo branco atras da manada.
Morten finalmente pode tirar a pesada mochila e colocou de lado. Sentou-se e tentou curtir o “passeio”. O vento ali em cima era bem mais forte e fresco. Logo ficaria quente como um sopro direto do inferno. Ele já sabia como era e fez questão de desfrutar a brisa fresca enquanto podia.

As montanhas estavam cada vez mais perto. E a fome começou a se tornar insuportável. O explorador concluiu que era o momento de fazer sua primeira refeição. Abriu a mochila e tirou o “caderno”. O caderno tinha este nome porque era exatamente isso, um caderno. Centenas de folhas de gelatina com picotes. Cada folha continha dez quadrados de gelatina. Morten destacou um quadrado e botou na boca. Em seguida, bebeu um pouco da água com bastante cuidado e esperou. Logo começou a sentir a espumação tomar conta de sua boca. A gelatina era hidroativada. Dois polímeros especiais reagiam na boca com a água, gerando uma espuma que lembrava a espuma de barbear. Essa espuma era composta da bomba energética. O pessoal do buraco levou anos desenvolvendo aquele treco, que todos chamavam de “Stuff”. A função do stuff era levar comida na sua forma mais otimizada possível. A espumação garantiria a saciedade equivalente a de comer uma boa macarronada, “enchendo o bucho” enquanto o caldo de proteínas ativadas daria conta de sua nutrição. Cada quadrado tinha uma cor e um sabor correspondente. Uva, morango, banana, camarão… Caro que tudo era um pastiche químico para iludir os sentidos e atenuar o sabor real do Stuff, tão bom quanto o nome poderia sugerir. Morten lembrou de Ed Harris, que foi o único do grupo que teve coragem de encarar o Stuff original. Em seguida vomitou desgraçadamente e disse que tinha “gosto de merda”. Como Morten Carlson nunca havia provado fezes em sua vida, preferiu acreditar no Ed, e não provou.  Mesmo que eventualmente, se Ed dissesse que era gostoso, depois de vê-lo entrar em uma verdadeira “erupção de vômito”, ninguém iria tentar correr o risco.

De fato, havia um risco em ingerir o stuff. A espumação era poderosa. Caso o explorador não conseguisse engolir rapidamente, poderia engasgar com o stuff, que cresceria dentro se suas vias aéreas, matando o indivíduo  por asfixia.

À medida em que as baratonas se aproximavam das montanhas, Morten se espantava. As montanhas eram muito maiores que inicialmente ele previra. E havia algum tipo de vegetação nelas. Isso era visível pela cor verde presente nas pedras. Faltava pouco para chegar. Morten Carlson estimou no chutômetro que devia demorar pelo menos umas duas horas no ritmo de caminhada das baratas para alcançar as montanhas. Elas já eram bem visíveis e altíssimas. Uma cadeia de rochas se erguendo do nada, quase que uma cordilheira, no meio de uma planície infinita. O paredão cinza esverdeado parecia o cenário de um sonho. Mas então, algo inesperado aconteceu. As baratonas estancaram. Todas elas pararam ao mesmo tempo, como se pressentissem algo.
Todas pararam e baixaram. As perninhas foram recolhidas e agora Morten Carlson estava tentando entender o que se passava. Os cascos de pedra brilhavam contra o sol inclemente. A temperatura era sufocante.
Talvez fosse o calor. Morten lembrou-se de sua chegada, e como aquele enorme casco parecia uma pedra parada sob o forte brilho da estrela daquele sistema solar misterioso.
Faltava tão pouco que esperar as baratas passarem mais uma noite acumulando energia não parecia uma ideia atraente. Morten estimou que se descesse do baratão e avançasse a pé, poderia chegar no início da madrugada, onde se abrigaria do vento. Dormir em cima daquela barata não ia ser agradável, até porque ele já havia notado os pequenos parasitas sobre elas e temia acordar com uma porra daquelas andando na cara dele.  Recolocou a mochila, tomou mais um pouco de água e consultor os indicadores. A temperatura se aproximava rapidamente de cinquenta graus. Andar sob aquele sol ia ser uma aventura arriscada, mas esperar a noite chegar seria cansativo e também poderia envolver riscos, pois o bicho comedor de baratas parecia preferir atacar a manada de noite.
Morten Carlson desceu pelas rachaduras do casco do baratão e seguiu a pé. Descer do casco com tudo parado era muito mais fácil que montar no rochedo andando.

Avançou pela vastidão do deserto. Caminhou sem parar até perder as forças. Sentou-se no solo repleto de pelotas brancas de areia grossa. Precisava descansar um pouco. O paredão de pedra era incrível, elevando-se às alturas. Aquilo o atraía como um ímã. Que mistérios aquelas rochas guardariam?

Parou e bateu uma foto para registro. O sol ameaçava se por. Logo ficaria tudo escuro e ele precisaria usar as lanternas. Felizmente, a potência do sol regenerava as baterias rapidamente. A pedra era claramente verde.  Isso era bastante intrigante. Morten questionou como era possível enxergar,  num ambiente tão inóspito, as montanhas verdes. Um verde reluzente.  “Imagina que louco se forem montanhas de esmeraldas?” – Pensou.
Agora a noite chegava com pressão avassaladora. A temperatura despencava vertiginosamente, passando de maneira deliciosa pela faixa de conforto térmico, antes de entrar a friaca horrorosa do deserto. Andar tremendo de frio ia ser uma merda ainda pior que andar no calor escaldante. Por isso, Morten levantou-se e prosseguiu para o predão até andar em total escuridão. Seu plano era avançar até que o frio o impedisse. Então ele se recolheria e esperaria o alvorecer e a subida da temperatura.
Foi quando algo agarrou sua perna. Ele soltou um grito de desespero pensando que talvez o comedor de baratas tivesse o surpreendido, mas logo viu que prendera o pé numa fenda. Estava caminhando sobre uma lage de pedra e por pouco ele não caiu de cara no chão. Concluiu que já deveria ter ligado a lanterna. Acendeu as luzes e prosseguiu, com o peito cada vez ardendo mais com o ar gelado, quase irrespirável. Andou por quase meia hora no frio e consultou o painel de dados do braço. A energia estava caindo bem rápido.
O frio agora beirava o  insuportável. O sistema de aquecimento do traje parecia cada vez mais fraco. Morten se deu conta que talvez houvesse um microclima perto da cordilheira, porque parecia muito mais frio que na vestidão da noite anterior na planície aberta.

Morten ouviu um estranho barulho atrás de si. O vento era forte, mas o barulho que ele ouviu era bem claro: O monstro subterrâneo comedor de baratas estava atacando a manada de novo ao longe. O explorador colocou a mão no solo e sentiu a vibração. O bicho devia estar há uns dezoito quilômetros dele, mas o microterremoto que ele produzia era claramente sentido por longas distâncias.

O frio havia finalmente chegado naquele ponto onde avançar já não parecia nem de longe uma ideia agradável. Suas pernas ardiam. Morten sentou-se no solo e se encolheu. Usou a mochila como anteparo para o vento. Retirou a manta térmica do compartimento e se cobriu com ela. A manta ajudava a segurar o vento, mas o frio já passava dos vinte graus abaixo de zero. O traje já quase não conseguia prover qualquer conforto. O gasto de energia das lanternas havia drenado as baterias que eram usadas para aquecimento. O frio só ficava mais forte. Morten começou a se preocupar seriamente com seu destino, pois a bateria só mostrava um traço. Se ela se esgotasse e o traje não conseguisse manter o aquecimento nas placas térmicas, sobreviver ao frio poderia ser impossível. Culpou-se por andar por mais de uma hora com as lanternas no máximo. “Maldita frescura inútil, para andar num lugar plano”, pensou.

O tempo parecia não passar. “Cadê a porra do sol que não nasce?”
Todo encolhido com a mochila, Morten tentou descansar o máximo, para levantar com disposição assim que os primeiros raios de sol cortassem o céu. Novamente, antes de fechar os olhos, admirou a abóbada celeste, repleto de estrelas desconhecidas e constelações bizarras.  Viu vários meteoros cruzando o céu. Alguns eram bem grandes pois geravam clarões esverdeados em sua passagem. Enquanto admirava os meteoros se perguntava o que estariam fazendo as pessoas na Terra. A Terra parecia cada vez mais distante em suas memórias…
Acordou com o sol na cara. Mortem havia dormido sem nem se dar conta, aniquilado pelo cansaço. O dia já engrenava. Olhou ao redor e viu as montanhas. Eram assustadoramente altas, se erguendo imponentes até onde a vista alcançava, num paredão que parecia não ter fim. Estavam bem perto.
Morten dobrou a manta e verificou que a mochila já carregava as baterias novamente. Se levantou, bateu a poeira seca trazida pelo vento e seguiu seu caminho em direção aos rochedos verdes.

Ao se aproximar Morten se espantou. Milhares de esferas de todos os tamanhos, se acumulavam, como bolotas de dimensões variadas. Todas verdes. Algumas eram mais amareladas que outras, mas todas eram verdes e nenhuma era maior que meio metro, mas as menores eram do tamanho de ervilhas. Ele se aproximou, agachou e analisou o que estava vendo. Era a vida vegetal do planeta. Pequenas bolinhas verdinhas. Mortem espremeu uma e ela estourou, revelando uma geleia translucida. Água. Grandes reservas de água. As plantas estavam absorvendo a água do ar tal qual a mochila conseguia fazer. As plantas lembravam um pouco as plantas suculentas da Terra. Sem um nome melhor a dar, Mortem batizou os novos vegetais de “pelotas”. Andou por cima delas. Agora elas formavam um tapete macio que esguichava uma gosma a cada passo. Essas bolotas estavam por toda parte. E quanto mais perto das montanhas, maiores elas eram.

Subitamente, uma bolota incrivelmente branca chamou a atenção de Mortem. Estava em meio a outras bolotas grandes. Ele ficou intrigado pois o contraste era muito grande. Avançou com dificuldade pois as bolotas cremosas já o prendiam na altura dos joelhos e cada passo era um suplício, precedido de um som de bolhas. A pegajosidade de milhares de pequenas esferas estourando com seu peso deixavam o caminho escorregadio e dificultavam a locomoção. Morten chegou até o ponto da esfera branca e constatou com horror que não era uma pelota.

Era um capacete.  Tinha um cara morto ali!

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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