A estuprada da baixada

-Como foi? – O delegado perguntou cruzando os braços diante das fotos que praticamente falavam por si.

-Tá aí. Basta ver, ué. – Ela disse, meio acanhada, desviando os olhos da autoridade.

-Uma moça tão bonita. Não teve nenhum remorso? – Ele perguntou, impávido.

Ela fitou a parede. Manteve-se em silêncio, mas respondeu, negando com a cabeça.

-Tá. Vamos do início.

-De novo?

-Só mais uma vez, pra ver se o Joseílson não perdeu nada.

O escrivão fez um joinha do outro lado da sala. Então a moça bonita passou a mão no cabelo louro descolorido e começou:

-Eu sempre pegava aquele trem… Era sempre no mesmo horário. Tem coisa de três anos que eu vi o cara pela primeira vez. Ele estava dormindo, sentado na minha frente. Ninguém poderia imaginar que ali não estava uma pessoa e sim aquele… Monstro.

-Mas como foi?

-Então, foi tipo assim, como eu contei antes. A cada dia ele estava mais perto de mim no vagão. No primeiro dia ele tava de olho fechado e não me viu, mas eu lembro que ele estava lá. Dormindo, ou talvez, fingindo que dormia. Mas depois, ele começou olhando pra mim.

-Só olhava?

-Só olhava. De longe. Não fez nada, só olhou. Mas…

-E quando foi que ficou séria a coisa?

-Foi de uns dois meses pra cá. Ele começou a falar na minha cabeça.

-Hã?

-Falava coisas.

-Que coisas?

-Ele dizia coisas, ué. Coisas? Não tá ligado? Coisas que o tarado fala pra mulher. Que vai me comer, me pegar. Tirar minha roupa.

-Ele falava na sua cabeça?

-Falava.

-E isso te incomodava.

-Incomodava, porque eu até mudei de vagão.

-É, mas aí como você falou…

-… Não adiantou nada, porque ele falava dentro da minha cabeça. Eu podia estar lá no meu vagão de mulher que ele falava na minha cabeça, lá do de homem. Que ia me comer, que eu era gostosa, que… Ele me chamava até de putinha. – Ela disse, constrangida, limpando uma lágrima.

-Então ele ficava te assediando por telepatia.

-Não. Telepatia não. Ele assediava mesmo dentro da minha cabeça. Ele entrava lá. Como eu não sei. Achei que era virgem de cabeça. Não sabia que dava pra não ser, até o dia que ele entrou. E desvirginou minha cabeça.

O delegado coçou o cavanhaque. Deu um gole no copinho de café frio que estava na mesa. Tamborilou em silêncio com a caneta. E disparou:

-E aí você resolveu matar ele.

-Não… No início eu falei pra ele parar. Eu fui lá onde ele estava e “virei no samurai”.

-Virou o que?

-Baixei o barraco, rodei a baiana. Sangue cearense aqui ó! – Disse a loura, socando o muque com orgulho. – “Sangue nozóio”!

-E ele?

-Não falou nada. Ficou me olhando com aquela butuca arregalada. Acho que ficou com medo. Todo mundo do vagão ficou. O povo aloprou. Aquela gritaria. A partir daquele dia…

-Ele passou a fugir de você.

-Não só ele. Mas ele sim. Fugia com o corpo, mas mandava as mensagens pervertidas com a mente suja dele. Continuava lá, sussurrando na minha cabeça que ia me comer, que ia tirara minha calcinha com o dente… Homem sujo. Eu tinha nojo. Quando eu não aguentava mais, ia lá tomar satisfação e ele fazia cara de santo. O povo gritava que eu era maluca, mas eu sei… Eu não sou maluca. Eu sei que o senhor me acha maluca. Eu não sou maluca! Não sou maluca! Não sou, não sou! Não sou! Não sou! Ouviu? Escreveu aí Joseílson? Eu disse: Não sou maluca. Ene, á, ó, til! Maluca. Não sou! Não me chama de maluca que eu viro bicho nessa merda aqui e vai ficar feio!

-Quer um café? – O delegado se levantou e foi até a garrafa térmica no canto da parede. Era uma garrafa térmica verde ensebada. Devia estar lá desde que o Escadinha fugiu da Ilha Grande.

Ela assentiu com a cabeça.

O delegado trouxe o cafezinho. Ela bebeu, chiou que estava quente e parecia água de privada coado em pano de chão, mas tomou.

-E aí ele continuou o assédio.

-Piorou, porque depois que eu comecei a dar aperto nele, notei que ele passou a fugir de mim. Um dia. Até que um dia…

-Sei, o dia que ele saiu do vagão.

-Não. Esse é outro dia. O dia que eu falo é o dia que ele não fez. Teve um dia, que ele não fez, não falou na minha cabeça. Ele estava no trem, mas não falou na minha cabeça. Nossa, fiquei aliviada. Foi mágico! Achei que estava livre. Que alívio, Jesus!

-E então?

-Então, quando chegou em Austin, eu comecei a olhar pra ele lá. Ele la no final do vagão… Eu olhei pra ele e pensei, um homem tão bonito, tão apresentável. Não precisava disso. Um homem que qualquer mulher ia querer, mas ele estava parado olhando na parede. E eu entendi tudo.

-Tudo? Entendeu?

-Entendi.

-E aí? Conta pra nós.

-Ele estava na cabeça de outra. Eu comecei a olhar no trem. Olhei uma a uma as priguetes. Eu sabia que ele estava na cabeça de outra. Ele estava lá, sarrando os pensamentos de outra mulher. Homem é assim. Homem é foda. Não é fiel nem quando vai estuprar. Eu sabia. Eu podia ver na cara dele. Olhei uma por uma e finalmente eu vi. Era ela.

-A menina?

-Isso. A menina. Estava fingindo ler um livro. Mas eu vi no sorriso dela. Ela não estava lendo nada. Estava gostando. Ele falava na cabeça dela aquele monte de sacanagem que só dizia pra mim, e a menina, a menina correspondia. Acredita? O senhor pode acreditar? Menina com roupa de colégio! Teve uma hora, quando o trem parou no sinal… Ele estava com um sorriso. E ela também. Ele olhou a hora. E dali dois segundos, ela olhou também. Eu sabia que eles estavam marcando alguma coisa. Eu… Eu… Fiquei puta, porque não é possível, né? Uma menina! O que as pessoas vão pensar? Que desgraçado! E ela, desavergonhada! Só Jesus na causa com essa geração de microputas.

-Mas ele não falava na sua cabeça?

-Nesse dia não, não falou. Fui pra casa e fiquei com aquilo na cabeça. Ele falando na cabeça da moça. A pobre menina não sabia que estava lidando, quem era ele. O estuprador.

-Estuprador?

-Sim, sim senhor. Estuprador mental. Ele não tinha limites.

-No dia seguinte ele voltou. Certo? – Perguntou o delegado fazendo anotações num papelzinho.

-Voltou. Ele voltou e me pediu desculpa. Disse que foi uma “aventura”. Que a menina não representava nada.

-Ele disse? Disse falando ou disse…

-Disse na minha cabeça. Com aquela voz dele, a voz de Julio Iglesias. Ele tem a voz igual do Julio Iglesias. Eu falei, né?

-Então o homem do vagão pediu desculpas?

-Pediu. O maldito. E eu gritei pra ele que não ia desculpar nada que ele era um tarado. E o povo começou a gritaria. Tinha gente até que já me via na plataforma desistia do trem. O povo pensava que eu era maluca, mas eu já disse. Eu não sou, não sou, não sou maluca, não sou!

-E então, chegou o tal dia.

-Naquela noite, o desavergonhado fez uma coisa que nunca tinha feito comigo antes. Nenhum homem fez.

-O que?

-Eu estava dormindo, mas acordei sobressaltada e era três e meia da manhã. Meu marido estava trabalhando na obra do metrô e eu estava sozinha em casa…

-Certo.

-Eu tentei dormir e encostei a cabeça no travesseiro, mas aí então ouvi um zunido baixinho. Mito baixinho, longe, sabe?

-Um zunido.

-Isso mesmo. Zunido e depois, eu percebi. Não era um zunido não senhor! Era ele. Era a voz dele falando, muito longe. Ele parecia gritar. Longe, sabe?

-Mas era ele mesmo?

-Era, uai! Ele começou a gritar mais e mais alto. E então, já era quase cinco da manhã e ele estava lá falando obscenidades na minha cabeça.

-Então ele começou a estuprar de longe.

-Ele estava ficando cada vez melhor nisso. Quer dizer, cada vez pior, porque estupro mental é a pior violência! E aí não deu. Não podia continuar. Eu não podia deixar. Ele estava ficando mais e mais na minha cabeça. Eu estava trabalhando e quando deu três horas ele apareceu lá.

-Ele foi no seu trabalho?

-Não, ele apareceu lá na minha cabeça de novo com aquele negócio de enfiar o dedo no meu cu, que ia meter o pinto dele na minha… Bom,o senhor sabe. Essas coisas.

-E aí?

-Aí eu já não aguentava mais. Precisava tomar uma atitude. Minha cabeça tinha vido a “Casa da Mãe Joana”. Ele entrava quando bem entendia.

-E como foi que você matou ele?

-Eu ia matar com tiro. Peguei a arma do meu marido, que fica escondida no armário dele. Ele não sabia que eu sabia onde que ele escondia, mas eu sabia, né? Afinal quem arruma aquela zona sou eu.  Peguei a arma, mas o Jacinto escondeu as balas. As balas eu não achei de jeito nenhum, então eu mudei o plano. Fui para o trabalho naquele dia decidida a tirar a história a limpo. Mas eu sabia que tinha que ser numa tacada só, porque ele é dissimulado à beça. No trabalho, escondi uma faca de cortar carne na bolsa. Pedi pra patroa pra sair mais cedo. Disse que ia numa consulta. Então eu cheguei na plataforma cedo, não tinha ninguém. Ali eu esperei, esperei. E ele nada. Eu cheguei a pensar que ele não vinha, mas então eu ouvi ele rindo na minha cabeça. Ele estava lá. Temi que talvez ele tivesse lido meu pensamento e já soubesse do plano. Me senti burra naquela hora.

Mesmo assim, fiquei lá. Firme. A faca na bolsa.  Eu usei um truque, um truque inteligente. Eu pensei em trepar com ele. Um sexo bem gostoso. Imaginei aquele pinto dele, e eu dando pra ele no chão do trem, todo mundo olhando. Eu fiquei pensando aquele monte de sacanagem que ele falava comigo, porque eu sabia que isso ia atrair ele. Era uma isca, sabe? Tipo igual faz com peixe? Assim como tem uns pessoal que pesca rato…

-Tem gente que pesca rato?

-Em Austin tem!

-Nossa… Prossiga.

-Deixei a bolsa já aberta. Não ia ter tempo de abrir, porque o povo do trem é muito afoito. Alguém ia gritar que eu sei.

Fiquei ali, no meio da estação. Trem chegava, trem saía e nada dele. Então, finalmente eu vi. Ele vinha no meio da multidão com uma camisa verde. Vi de longe. O cabelo dele. Aquele cabelão bonito, pretinho, pretinho, feito a asa da graúna. E quando ele chegou na plataforma eu fui para trás de uma pilastra e esperei. Ninguém me viu. E o povo ali esperando o trem. Quando avisou que estava chegando, começou a muvuca pra entrar. Eu me aproximei por trás. Ele falando na minha cabeça. Me chamando de “minha vadia, minha putinha, cadê você que eu quero te enrabar”… Essas coisas.

Aí eu fiquei pensando. Pensei em resposta. Vem que eu tô no trem, vem! Vem me comer meu Julio Iglesias! Vem tesão da mamãe…

Cheguei por trás do cafajeste e quando o povo aglomerou eu tirei a faca. Não dei tempo de pensar. Estoquei três vezes, sem dizer nada. No pensamento senti quando ele gozou. Gozou dentro de mim quando a faca entrou um tantão assim nas carnes dele. O povo só gritou quando ele caiu já com as tripas saindo.

-“Cena de sangue na estação”. – Disse o delegado apontando a manchete do jornalzinho, vulgo “pinga-sangue”.

-Sabe como eles são. Dei a sorte de ter um jornalista ali bem do lado. Ele que fez as fotos com o celular. Acho que saí bem na capa. Ó. Poderosa com a faca na mão!  Devia ter escolhido outra saia, né? Mas pelo menos não botaram a foto dos guardas me batendo.

-Mas e a vítima?

-Vítima? O estuprador, né? A vítima nesse caso, sou eu, doutor!

-Ele não disse nada?

-Ele tentou segurar as tripas, tentou empurrar elas para dentro da barriga mas não teve jeito, porque eu fiquei a tarde inteira amolando aquela faca.

Eu vi ele ali no chão naquela poça de sangue e mesmo com todo mundo gritando as mulheres chorando e o povo correndo em volta, eu ainda ouvia ele rindo na minha cabeça.

-Ainda ria?

-Ria. O maldito ria. No chão, com o bucho aberto, os olhos arregalados olhando pra mim e ele só ria daquele jeito sacana. E depois ficou repetindo lá “vou meter meu pau no seu cu!”, como se eu quisesse ou gostasse dessas saliências…

-Tem quem goste. – Disse o Delegado.

Ela ficou atônita. Deu um novo gole no café e fez cara de nojo.

-Quem gosta não pode ser normal!

FIM

 

Receba o melhor do nosso conteúdo

Cadastre-se, é GRÁTIS!

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade

Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

Artigos similares

Comentários

  1. Caro Philipe Kling David, fiquei incomodado com esse seu texto, acho que sua tentativa em questão e escrever uma ficção sobre o estupro foi uma péssima ideia… Talvez essa seja a ideia conseguir links na onda de protesto femininos e ser conhecido, Não acho que seja o caso. Temos um problema ao você escrever sobre esse assunto. Você é homem, eu sou homem… Demorei muito tempo, para aprender a ter empatia pela dor das mulheres, então acho que talvez ainda exista jeito pra vc. Não se faz piada sobre estupro, não se faz um conto sobre estupro tratando como louca uma mulher, enquanto milhares, milhares de mulheres sofrem dessa violência todos os dias, todas as horas , até nesse exato minuto…

    Acredito que vc vai tentar defender seu texto, que deve ter uma meta analise, um outro contexto, que talvez era um desejo proibido dela (de boa, eu quero saber quem são acha que uma mulher quer ser estuprada? ) Deixa eu te contar, uma coisa , quando fazemos um obra, quando pintamos um quadro, quando escrevemos um texto, ele não é mais nosso, passa a ser do publico. E pra mim seu texto é misógino, machista e pejorativo. Por Favor melhore! Sei que vc pode!

    • Eu acho que você deveria aprender a separar as realidades, amigo.
      Sobre o conto, mais uma vez Philipe mostrando o dom que tem e a criatividade que transborda dos miolos, hehehe

      Continue assim Philipe, mais um ótimo trabalho.

    • Olá, Anthony, não achei pejorativo. Pode até parecer que é o ponto de vista machista do Philipe, se você se coloca na visão dele. Mas se você se coloca na visão da mulher, violentada verbalmente e fisicamente, várias vezes durante a semana, com piadinhas, gestos, toques e até estupros de fato, desenvolver esse pânico é perfeitamente possível. Seria a estória de uma mulher que já foi violentada e desenvolveu um trauma psicológico. Não é um conto contra as feministas, é um conto sobre uma mulher traumatizada conversando com um delegado insensível; a coisa mais comum que existe hoje em dia.

      E se você for contra a simplicidade da lógica binária machismo x feminismo, vai perceber que os dois lados estão corretos e ao mesmo tempo errados. O homem (delegado) tratando a mulher pejorativamente, a mulher vítimade um estupro e, por outro lado, o homem do trem como vítima e a mulher como imoral por tratar o homem do trem pejorativamente.

      Gostei do texto.

    • Amigo, depois de ler seu texto, tive a certeza que vc não acompanha o mundo gump… Em uma postagem anterior ele falou sobre o assunto e da a opinião dele.. Seria bacana dar uma lida.
      Acredite, sou mulher e adorei o texto!! Esse texto é apenas um conto, não acho que seja misógino, machista ou pejorativo.. Menos né..

    • Cara, o texto é uma história, a mulher é psicótica, em nenhum momento
      ele generalizou querendo dizer que todas as mulheres são loucas! Ta doido? Foi
      mais uma história de terror do que esse seu mimimi, e outra, quem viu a
      maldade foi você
      !

  2. Retratou bem aquele caso que vc contou aqui certa vez da moça que por coincidência lhe acompanhou assustada em determinado percursso kkk coitada da moça cara, mas tambem me passou a idéia de que vivemos todos com medo de roubo, estupro, violências em geral e que nao podemos nem ver um garoto com uma bermuda, chinelo e dedo e camisa de time na rua que agnt logo esconde o cel, anda rápido e fica com medo… vejo isso nas pessoas em diversas situações, mas assim como o rapaz do conto, ou o próprio Philipe, ou o garoto com esteriotipo de assaltante, somos vitimas também dessa histeria coletiva e que por acaso sem ao menos percebermos podemos preencher os requesitos de panico e fobia social daquela moça que foi acompanhada pelo philipe ou a mulher do conto, assim como também o rapaz que morreu a facadas sem desconfiar de nada; acaba que todos se tornam vitimas umas realmente coagidas e apavoradas com tudo, algumas ate realmente traumatizadas e tantos outros sofrendo discriminação e algum tipo de rejeição. É um otimo texto e tem o estilo gump que é a proposta do blog, nao decepciona e ta bem polêmico, isso ai! rsrsr Parabens !

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

Últimos artigos

Gripado

O dia da minha quase-morte

Palavras têm poder?