As perversões de Julio

A sorte é que tinha um bar em frente a delegacia. Com tamanha confusão ali na porta, Julio optou por esperar o desfecho da zorra sentado confortavelmente num banquinho diante do balcão de vidro de onde se via alguns sofríveis pacotes de biscoito e um ou outro salgado lazarento que já estava ali na semana passada. Mesmo assim, ele arriscou e pediu um joelho, um tipo de pão com queijo e presunto dentro, que naquele bar pé sujo era caganeira na certa.

Enquanto observava a entrada e saída de viaturas do outro lado da rua, Julio não se deu conta de que no mesmo bar pé sujo, estava um homem esquisito, vestido antiquadamente, sentado numa mesa carcomida no fundo do bar. O homem não tirava os olhos dele.

Vestindo um terno preto com camisa laranja, o cabelo grande combinando com a barba curta, destacando a tez tão pálida que lembrava até um cadáver, o homem brincava com uma cigarrilha, que movia com destreza entre os dedos. O homem misterioso parecia ter saído de um túnel do tempo, direto dos anos sessenta, e tinha ao seu lado um copinho de conhaque.

O homem pegou o copinho de conhaque, se levantou e foi até Julio. Bateu no ombro do rapaz.

-Que?

-Tem fogo chapa?

-Hã?

O homem do terno mostrou-lhe a cigarrilha.

-Ah, não desculpa. Pergunta ali para a moça. – Disse Julio, não dando muita atenção para o sujeito.

Em silêncio, o homem esticou o braço no balcão e pegou um isqueiro Bic cor de rosa, que estava pendurado num barbante. Com ele acendeu a cigarrilha. Tomou um gole do conhaque. Olhou sua cor âmbar contra a luz.

-Parece o mijo do capeta. – Murmurou sorrindo.

Julio não deu ideia. E então o homem do terno fez um comentário inusitado:

-É um entra e sai danado, né garoto?

-Hã?

-Essa delegacia…

-Pois… Pois é.

-A propósito, Serafim. Muito prazer. – Ele disse, estendendo aquela mão ossuda e fria.

Julio apertou a mão do homem, e só então se tocou daquela roupa estranha e o tom de voz macabro, cavo, quase assustador que ele tinha.

-É de baile?

-Minhas roupas?

-Sim. Roupa de baile, né?

-Pois é… Uma noite longa. Sabe como é. – Serafim riu.

Antes que Julio pudesse falar qualquer coisa, o tal Serafim disparou:

-Quer vender esse anel?

-Hã?

-Esse anel aí no teu dedo.

-Esse? Não.. Não vou vender, desculpe.  Aqui, moça. Paga aqui. Ó.  – Disse Julio, afoito, colocando uma nota de cinco reais no balcão. Nem quis o troco.

Ele saiu apressado, dando as costas a Serafim. Mas o homem alto e magro enfiado naquele terno bizarro não se deu por vencido. Foi andando atrás.

-Não precisa fugir, Julio. – Ele disse com aquela voz gutural.

Julio parou no meio da rua com os olhos arregalados: -Como você sabe meu nome?

-Sei mais do que você imagina. Mas isso não vem ao caso. Você é um rapaz esperto. Certamente vai querer fazer um bom negócio nesse anel oxidado aí. Além do mais, sabe como é. Essa suástica no anel… Essa caveira… Isso não pega bem.

-Quem é você?

-Olha, vê se te interessa. – Disse Serafim, pegando do bolso do paletó um bloquinho de uns seis centímetros de ouro puro.

-Isso é…

-Ouro. Da melhor qualidade, garoto.

-Não. Não me interessa.  – Disse o jovem, apressando o passo.

-É uma pena.  Achei que você fosse esperto, moleque.

-Vai tomar no meio do cu sua bicha!

Serafim ficou parado, olhando o rapaz se perder na multidão.

 

—-X—-

 

Julio andou por vários quarteirões. O coração quase saindo pela boca. Ele estava paranóico. Sentia que estava sendo observado.

Teria o homem esquisito o seguido? Quem era aquele cara?

Julio estava ansioso. A garganta queimando. Era a azia. Maldito joelho. Sentou-se no banco de uma praça do centro. As pessoas passavam apressadas, imersas em seus problemas. Os carros buzinando e os ônibus engarrafados.

Julio estava exasperante, porque sabia que mais alguém além dele sabia do anel. Tirou o anel do dedo e olhou a caveirinha de metal. Lembrou-se de quando o viu pela primeira vez, no desabamento. Quem diria que um acidente o colocaria diante daquele objeto tão intrigante…

Dois anos antes, quando ainda era um dos seis ajudantes de Genésio, um requisitado pintor de paredes, Julio foi chamado para pintar uma casa no alto de Santa Tereza. Uma vez no local, ele se espantou. A casa não era nada menos que um castelo!

Foram três meses pintando o maldito castelo. Enquanto pintava, escutava as histórias contadas por Seu Genésio, o pintor. Genésio era um homem rude, mas extremamente dedicado à erudição. Lia de tudo, escrevia poesias e pintava paredes para viver. Nenhum dos empregados sabia realmente quantas equipes Genésio tinha “na rua”. Ele nunca contou. Mas a julgar pelo monte de serviços, o homem era um bom empresário, que não negava fogo. Ele era do tipo de patrão raro que “pegava no pesado”.

Geralmente durante o almoço, Genésio conversava com os empregados e lhes contava diversas histórias. Numa delas, ele falou de assombrações e o papo acabou caindo sobre o castelo em que trabalhavam os pintores, e que abrigava uma escola.

Aquele castelo foi erguido em 1942, por iniciativa de um banqueiro riquíssimo, chamado Oscar Sant’Anna. Ninguém sabe por que razão exatamente o homem tinha uma certa fixação em outro palácio, chamado Palazzo Vecchio, que ele visitara em Florença. Diziam as lendas que o banqueiro era muito amigo de alemães influentes do partido Nazista. Sabe-se apenas que Oscar fotografou todos os ângulos daquele castelo italiano e, quando voltou ao Brasil, exigiu que lhe construíssem um igual. Oscar não poupou na construção investindo grandes quantias e fazendo estranhas exigências sobre a orientação espacial dos cômodos. Uma das curiosidades que Genésio contou é que Sant’Anna usou material trazido da Europa, entre mármores, pedras e também vitrais, o que acabou atrasando a obra, pois a construção fora levada à cabo durante a Segunda Guerra Mundial. “tempos difíceis”, segundo Genésio.

-Mas sempre foi escola? – Perguntou Julio.

-Não. Isso aqui já foi de tudo um pouco. – Disse Genésio partindo o ovo na marmita. No início era o capricho do banqueiro ricaço, mas tempos depois, após um problema misterioso que ninguém sabe direito, a família vendeu a casa para o Vaticano, que construiu a capela lá em baixo.

Nos anos 60, a casa virou escola. Aí parece que mudaram os cômodos. Todos foram sendo adaptados,  os quartos se transformaram nessas salas de aula. A antiga sala de música, virou sala de… Como é que se fala mesmo?  Expressão corporal! A sala da lareira virou aquela sala de artes… Mudou muito.

-Mas o que aconteceu que eles venderam para o Vaticano?

-Olha, eu não sei direito, mas um amigo meu com quem trabalhei, dizia ser irmão de um dos mordomos da família. Ele sabia detalhes do caso. Parece que o Banqueiro andou se metendo com uns ocultistas aí. Ele se deu mal. Ficou maluco. Desapareceu, ficou um ano sumido, depois voltou. Começaram os desmaios, ele ficava fora do ar, depois voltava e falava coisas sem sentido, dizia que ficava preso numa caixa, uma coisa assim. Até o dia que se atirou do alto da torre… Pode ser mentira, esses empregados gostam de inventar histórias. Mas dali em diante, contam que o fantasma do Sant’Anna aparece nos corredores todo dia 12 de agosto, o dia em que ele se matou.

-Cruz credo! – Disse Julio, se benzendo.

Os outros homens riram.  Genésio, bateu nas costas do rapaz. Vamos voltar ao trabalho, macacada!

Naquele dia, o trabalho transcorreu sem grandes alterações, até que ocorreu o terrível acidente.

Julio estava no alto do andaime, pintando o teto da capela, quando notou algo que parecia reluzir, oculto na beira de uma sanca. Ele tentou esticar o braço, mas estava muito longe. Julio então esticou o cabo do rolo de pintura o máximo que deu. Estava quase alcançando. Mas então, o andaime balançou, ele se desequilibrou e já estava prestes a despencar. Sem apoio, saltou e agarrou na sanca. Ficou agarrado gritando por socorro por alguns segundos. Lá em baixo os auxiliares corriam de um lado para o outro. Tentavam pegar a escada. Sentiu a coisa brilhante gelando sua mão. Então, seus gritos desesperados foram engolfados pelo som do material rachando. A antiga decoração de pedra não suportou seu peso e se partiu. Julio desabou doze metros até o chão. O andaime desabou sobre ele, pedras caíram em cima.

Julio acordou dois dias depois, no hospital. Havia quebrado o braço, torcido uma perna e graças às pedras, estava com uma grave concussão. Genésio pagou todo o tratamento do empregado, que ficou meses usando uma placa com parafusos no braço esquerdo.

A primeira vez que ele viu o anel, o mesmo estava, sabe-se lá como, enfiado no dedo dele. Talvez alguém tivesse encontrado o anel e pensado que era dele. No hospital, enquanto se recuperava do trauma, se pegava pensando em como aquele anel escuro oxidado havia ido parar no alto de uma sanca na capela do castelo.

Era um anel feio, algo que ninguém gostaria de usar no dedo. De um lado havia uma caveira feiosa. Na parte de trás, uma diminuta suástica. Talvez fosse o anel do tal Oscar Sant’Anna… Seria ele um nazista?  Certamente era amigo de algum, pois naquela época todo mundo influente era amigo de um nazista.

Julio teria se livrado daquele anel se não fosse uma coisa estranha acontecer: Ele começou a ouvir o pensamento das pessoas.

Começou lentamente, no início, ele pensava que se tratava de algum problema causado pelo edema cerebral. A voz da pessoa surgia na cabeça dele, muito fraquinha, como se estivesse longe. De noite, era mais fácil de ouvir. Lentamente, as vozes na mente foram ficando mais e mais altas. Ele só entendeu que aquilo que estava ouvindo não eram produto de alguma maluquice própria, quando numa madrugada, entrou uma enfermeira para ver o soro:

-…Merda. Não aguento mais essa vida. Vou pedir demissão e virar costureira.  – Disse a voz. Era tão alto e claro que Julio achou que a mulher tinha falado com ele.

-E você sabe costurar? – Ele perguntou.

A enfermeira deu um pulo para trás com os olhos arregalados de pavor. Ficou sem ação.

Foi através da reação da dona, que ele percebeu que havia escutado os pensamentos da mulher. Diante da expressão de pavor dela, Julio precisou pensar rápido:  -Costurar ferimento. Dar ponto. Foi a senhora que me deu ponto em mim? – Ele indagou, mostrando a cirurgia no braço.

Foi como uma mágica. A expressão de medo da enfermeira mudou para alívio.  Logo ela explicou que tinha sido o cirurgião, algo que Julio estava cansado de saber, mas fingiu ser a novidade do século. Ele queria que a mulher acabasse logo de falar e fosse embora. Não deu atenção. Quando ela finalmente se foi, e ele se viu sozinho no quarto, percebeu que só precisava se concentrar um pouco para continuar a ouvir os pensamentos da dona.

-Puta que pariu, moleque burro! Vê se eu que ia dar ponto?! Nossa que susto, pensei que tivesse falado alto. Esse trabalho é uma merda mesmo… Eu odeio isso aqui. Vontade de tacar fogo em tudo. Lá vou eu limpar bunda murcha de velho… Êta merda!

Não foi de imediato, as frases vinham emboladas, como um novelo complicado de palavras e ideias. Quando havia muitas pessoas era ainda pior. Mutas vezes ficava impossível saber quem estava pensando o quê.

E foi assim que Julio lentamente se conscientizou que o anel que viera parar no dedo dele e que nunca mais saiu, não era um anel normal. Era um anel magico.  O anel mudou a vida dele de modo dramático. Naquele mesmo ano, ele passou no supletivo e concluiu a escola. Bastou se concentrar para ouvir o pensamento do professor. Mas nem tudo foram flores.

Julio acabou jurado de morte no Coelho, o bairro em que ele morava em São Gonçalo, porque quebrou a banca do homem que ocultava uma ervilha em três copinhos, diversas vezes seguidas. Era um truque batido, mas com o anel, ficava fácil saber em que copo estava a pequena ervilha. Inclusive quando não estava em copo algum. E foi assim, que apesar de ganhar um bom dinheiro, ele acabou levando uma prensa dos bandidos.

Julio se mudou de mala e cuia para um quartinho em Austin. E graças ao anel, conseguiu um emprego de balconista de farmácia. Logo, viraria gerente, porque tinha o incrível “dom” de oferecer  exatamente o produto que o cliente queria, muitas vezes sem o cliente nem mesmo chegar a pedir, algo que espantava a todos do comércio.

Todos os dias, quando encerrava seu turno na farmácia, Julio andava um pedação do centro do Rio até chegar na Rua da Quitanda. Ali ele se encostava num muro e esperava. Esperava…

Todos os dias ele repetia o mesmo itinerário. Lentamente, começou a perceber que mais que apenas escutar pensamentos das pessoas, o anel lhe permitia emitir seus pensamentos para elas. A primeira vez que ele percebeu que o anel permitia fazer o processo inverso foi quando um ladrão tentou assaltá-lo no Terminal de ônibus.

O cara encostou de lado, puxou Julio para trás de uma banca de jornal e meteu-lhe uma faca na cintura. Falou baixinho entre dentes com um mau hálito que parecia que comia merda no café da manhã: -Passa a carteira e o celular, bacana!

Julio pediu calma, lentamente meteu a mão na carteira no bolso de trás, e então, nem ele mesmo sabia como, emitiu um pensamento para o bandido: -“Esse cara  tá muito calmo. Pode ser polícia! Pode ser do tráfico!”

O bandido arregalou os olhos. Empurrou Julio contra a banca.

-Tu é do tráfico, né?

Julio não disse nada. Emitiu um novo pensamento. Enquanto falava lentamente:

-Não moço.

-“Ele é do trafico sim, vai mandar me matar! Se eu roubar ele eu tô fodido!”

O bandido deu dois passos pra trás. Os olhos arregalados. A mão trêmula ainda segurando a faca.

-Foi mal, play! Foi mal. Sem ressentimentos, bicho. Toma, pega a carteira. Não, não quero. Fui! Foi mal aí, parça! – E saiu correndo.

Julio olhou o anel de prata escurecida pela ação do tempo e sorriu. Nascia ali um novo superpoder!

Durante meses Julio se divertiu enfiando pensamentos na cabeça das pessoas.

Uns meses antes, Julio havia se apaixonado terrivelmente. Ela nunca lhe deu bola, nem sabia que ele existia. Mas ela ia sempre na farmácia comprar remédio para cólica menstrual.

Era uma mulher loura, baixinha, com sotaque nordestino. E muito, muito bonita. Infelizmente, a mão denunciava uma aliança de casamento. Na primeira vez que Julio viu aquela mulher, não se deu conta, mas ele já a havia visto antes, e algumas dezenas de vezes. Ela sempre pegava o mesmo trem que ele para Austin.

Então, foi questão de tempo até que Julio começasse a segui-la. Logo, descobriu que ela trabalhava na casa de uma senhora na Rua da Quitanda, no centro do Rio. Ele ia pra lá e lá encostava na parede. Esperava a moça descer. Ela descia e passava por ele. Nunca olhou na cara dele. Era como se Julio fosse invisível. Eternamente fadado à invisibilidade e ao fracasso.

Passava o dia pensando nela. Naquela mulher anônima. Sentia de longe o perfume dela.

Ela descia, passava por ele, ignorava seus olhares, e seguia a pé até a central para pegar o trem. Julio a seguia de longe, tentando separar o bolo de pensamentos dela do ruído de fundo dos pensamentos de milhares de pessoas no centro da cidade.

Um dia, ele finalmente conseguiu uma espécie de conexão direta na mente dela. Ela estava andando pela rua quando num choque ela praou. Julio temeu que ela tivesse ouvido o pensamento dele. Mas não. Era uma musica que estava tocando num camelô de CD. Ali ela fuçou meia duzia de discos até achar um em específico: Minhas canções preferidas, disco de Julio Iglesias, de 1981.

Ela comprou o disco. Enquanto esperava o troco do camelô Julio escutou os pensamentos dela olhando o ex-goleiro com sorriso malicioso na capa do disco:

– Benza Deus! Homem tesudo! Ah se eu tivesse um homem desses!

Julio esperou que ela seguisse seu caminho com o pacotinho na bolsa. Foi ate o camelô e comprou o mesmo disco.

E assim, durante meses, Julio ouvia o Cd de seu Xará milionário, cantando “Pobre diabo”. De longe, ele sentia que ela estava ouvindo o mesmo disco.

Julio se espantou de perceber em sua mente, quantas vezes aquela mulher pensava em Julio Iglesias durante o dia. Ele não sabia o porque, mas lentamente a conexão com ela foi se tornando mais e mais forte. Então, um dia, Julio reuniu toda sua coragem.

Quando ela veio passando com aquele perfume, ele se aproximou e disse:

-Oi, tudo bem?

-Não quero não, obrigada. – Ela disse, desviando dele.

Ela havia pensado que ele era um pedinte. Que merda.

No dia seguinte, ele tentou novamente.

-Oi, oi. Não sou vendedor. Posso falar com você?

-Desculpe estou atrasada.

-É rapidinho….

-Diga.

-É… Eu queria saber seu nome.

-Meu nome? Ah, vá te catar! Vai à merda!  – Ela disse, dando um novo drible nele.

Julio ficou com o coração apertado vendo a loura platinada andando firme, agarrada com a bolsa. O que mais o machucou foram os pensamentos cruéis daquela mulher:   -“Só me faltava essa. Um anãozinho de jardim conquistador. Que patético! Cara de fuínha…”

Ela pensou tanta coisa ruim dele, que Julio pela primeira vez tirou o anel do dedo e guardou no bolso, para não doer tanto.

E então, o amor dele fermentando, fermentando… Um dia, ele estava no trem e a viu. Começou a pensar coisas na cabeça dela.

Usou a voz arrastada e melosa de Julio Iglesias.

-Vou tirar sua roupa. Vou te matar de tesão…

Foi divertido vê-la arregalar os olhos no vagão. Ela ficou vermelha. Excitada, ele sabia. Ele estava lá dentro da mente dela. Penetrando-a como nenhum outro homem jamais poderia.

Se tornou a nova mania. Uma perversão incontrolável. Uma compulsão. Ele esperava a moça e a seguia, até o trem para começar a falar obscenidades com a voz que ela tanto desejava. Julio queria poder falar aquilo, falar abertamente, e mais que falar, fazer…

Um dia, ele esperou, esperou até cansar diante do prédio onde ela trabalhava, mas a mulher loura não desceu. Julio deu de ombros: Talvez tivesse ficado doente.

Assim, ele foi para a Central andando sozinho. Tão logo se aproximou da estação do trem sentiu que ela estava perto. De alguma forma, o anel avisou. Começou imediatamente a chamar por ela. Gostava de emitir os mais pornográficos pensamentos. Inspirava-se no que via nas revistinhas eróticas das bancas de jornais no centro. Era habitué de um sebo que trocava duas por uma lá na Rua dos Inválidos. Ah se todas as mulheres de verdade fossem fáceis como aquelas suecas das revistinhas antigas…

Então aconteceu algo inesperado. À medida em que ele se aproximava da estação, começou a ouvir em sua mente. Era ela. Era ela! Ela estava… correspondendo! Ele mal podia acreditar. Ela começou a falar umas sacanagens, umas safadezas…

Julio estava tão absorto em suas perversões mentais que mal percebeu a estranha correria na plataforma. Gritos, gente aos berros. Só se tocou quando viu a loura. Ela estava caída no chão com dois homens da polícia ferroviária metendo a porrada nela. Diante dela, a menos de dois metros, um sujeito jazia com os intestinos para fora do corpo. Uma mulher vomitou quase no pé dele. Era uma enorme confusão. O pânico havia se instalado.

Julio chegou perto a tempo de ver o cara com o bucho aberto ainda se remexendo, dando os últimos suspiros. E dali, do cinzento e amorfo anonimato de onde sempre desejou sair, ele viu a loura gritando, sendo algemada e colocada na viatura.

Se informou para onde haviam levado a mulher e pegou um ônibus pra lá, mas diante dos fotógrafos carniceiros, que já haviam apelidado a mulher de “Maníaca esfaqueadora da Supervia”, recuou. Ela passou a noite na delegacia prestando depoimentos. Julio esperou do lado de fora, alternando entre uma pizzaria decadente e o pé sujo.

No dia seguinte, ele se espantou diante da capa do jornal. Lá estava ela. Havia colocado roupa nova para matar… Julio Iglesias.  O verdadeiro Julio sabia.

Uma mão fria lhe apertou o ombro interrompendo seus pensamentos. Era o tal Serafim esquisito.

-Você está com uma coisa que não é sua, garoto. -Ele disse, naquele tom monocórdio e cavo.

Julio tentou em vão ouvir os pensamentos daquela figura, mas só havia um tenebroso vácuo, como um buraco negro, emanando a perdição e desespero. Aquilo o apavorou.

-Não… – Ele disse, enquanto o homem de terno preto e camisa laranja se aproximava.

Julio fez menção de fugir. Mas estancou diante de uma visão surreal.

Estava cercado por cachorros de rua. Eram pelo menos cinco animais. Todos vira-lata. Todos eles arreganhando os dentes de forma ameaçadora.

-É sua última chance.  – Disse Serafim, com os olhos fixos nele, tal qual um predador.

Julio olhou os animais ao redor. Buscou com os olhos algum socorro, mas de alguma estranha maneira, quem passava pela rua não olhava na direção da praça.

Não restando outra alternativa, Julio tirou o anel e estendeu ao homem estranho. Serafim sorriu. Pegou o anel da mão dele e colocou-o em seu dedo ossudo.

Os dois ficaram se olhando por alguns segundos em silêncio. Os cães ainda arreganhando suas bocarras raivosas.

Então Serafim deu as costas. Os cães atacaram, saltando sobre Julio.

No dia seguinte, logo abaixo da notícia sobre detalhes do depoimento da “maníaca esfaqueadora da supervia”, uma discreta nota informava sobre o corpo do jovem indigente retalhado por cães selvagens numa obscura pracinha do centro do Rio.

 

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Porque ?!… Acabou?
    Essa foi muito boa, parabens!
    O cara saiu la da fogueira que o Bruno fez pra so pra roubar o anel desse infeliz???
    Deixa so Leonard sacar essa história vai dar maior merda ??

  2. Caraí!! Ai sim fomos surpreendidos novamente!
    Muito boa essa.. Pobre Julio.
    Pobre mulher… ela tinha razão… e não era louca, não, louca não, ela não era louca!!!

    Esse anel é melhor que o Um anel, fato!

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