As crianças da noite – Parte 18

-Pra onde estamos indo? – Perguntou Rogério enquanto seguia o velho Leonard.

-Calma. É por aqui… – Disse Leonard.

-O senhor anda muito rápido. – Disse o motorista indiano.

-Já andamos uns quatro quarteirões. Devíamos pegar um taxi. Está ficando tarde. – Retrucou Rogério.

Leonard nem respondeu. Apenas balançou a cabeça negativamente. Ele foi até a estação do metrô. Pagou três bilhetes.

Os três homens viajaram em silêncio por cerca de sete estações. Finalmente, Leonard sinalizou que iria descer.

Rogério e Aesh Pandraj o seguiam como sombras. Aquele era um bairro perigoso.

-Este lugar é o último no mundo que você iria querer estar. – Sussurrou o indiano para Rogério.

-Hummm. Tô vendo…

-Aqui é tão barra-pesada que eu declino de corridas para cá depois de três da tarde.

Leonard ouvia o que os dois diziam, mas parecia fazer ouvidos de mercador. Continuava a andar depressa, desviando de lixo e poças.

Os três continuaram a andar. Até que, subitamente, Leonard parou.

Era uma rua estreita e escura. Mal iluminada. Estava deserta.

Ela era ladeada por um muro grande e sujo de uma construção abandonada. Do outro lado, havia uma antiga casa caindo aos pedaços. Restos de um carro apodreciam no jardim com mato alto. A casa estava toda carcomida. As paredes ostentavam símbolos de gangues.

-Que? -O que houve senhor?

-Shhhhh! -Leonard colocou o indicador à frente dos lábios. E então sussurrou: – Estamos sendo seguidos.

-Hã?

-Não… Tem dois caras vindo atrás da gente. Estavam no metrô. Só que há duas ruas atrás eles correram em direção a um terreno baldio. É claro que estão armando alguma coisa.

-Porra, nós temos que dar o fora daqui. – Disse Rogério.

-Calma, menino. Você é muito afobado, sabia?

-Senhor Leonard… Este lugar…

– Segura a onda Aesh. Foco! lembre-se: Foco! Fica frio.

-…Sim senhor. Os três ficaram parados no meio da rua. Não se ouvia nada senão carros passando na avenida ao longe.

-O que estamos esperando? – Perguntou Rogério.

-Eles vão nos dar o bote. – Disse Leonard. -Vamos facilitar pra eles.

-Eles? Eles quem?

-Eles! – Disse Leonard, movendo somente uma sobrancelha.

Rogério olhou para trás e viu, no fim da rua surgirem alguns homens em atitude agressiva. Eles vinham se aproximando rapidamente, em completo silêncio. Mas o andar gingado já denunciava claramente que se tratava de uma gangue de latinos.

-Tá vendo os dois de jaqueta comprida e lenço na cara? São eles.

-Puta merda. Não quero desanimar você, mas acho que estamos fodidos. – Gemeu Rogério.

Leonard apenas sorriu.

-Senhor… Perdão, mas essa rua deserta é perigosa. Não vai haver testemunhas, ninguém poderá nos socorrer! – Alertou o motorista.

-Não é ótimo para nós? – Perguntou Leonard.

-Eles estão vindo. Vamos correr! – Desesperou-se Rogério ao ver um dos homens, um gordão deixar pender uma grossa corrente de moto.

Os outros vinham, socando os punhos cerrados contra as mãos. A maioria vestia casacos de couro e tinham faixas coloridas na cabeça.

-Vocês não confiam em mim? – Perguntou Leonard baixinho.

-Ai meu Deus! Seja o que Deus quiser. -Disse Rogério.

Os dois ficaram atrás de Leonard, que deu dois passos à frente.

O chefe do grupo, formado por seis sujeitos latinos mal encarados se aproximou, fumando um cigarro de maconha.

Ele não disse nada. Ficou ali, parado, encarando Leonard, que tinha as duas mãos no bolso do paletó surrado.

-Como vai, senhor? -Perguntou Leonard, rompendo o silêncio.

O sujeito olhou o velho de cima abaixo.

Então olhou para trás. Tinha os movimentos lentos, como se estivesse debaixo d´água.

Os asseclas parados, todos olhando com cara de mau. O chefe da gangue tragou o resto do cigarro e deu um peteleco.

A ponta em brase girou no ar e acertou na testa de Leonard, que se manteve impassível.

Alguns sujeitos da gangue riram baixinho.

-Isso não foi legal, meu chapa. -Disse Leonard.

-Ah é mesmo, vovô?- Riu o marginal arreganhando os dentes de ouro. – E se eu te der uma porrada bem no meio dos córnios?

-O senhor gostaria de me bater? – Perguntou Leonard, para surpresa dos dois amigos, que tremiam em silêncio.

– Na verdade, vovô… Eu estou mais interessado é no que tem aí dentro do seu bolso. Você está com a MINHA grana.

-Sua? Quem disse?

-Estão na minha área. Tem que pagar para entrar… Ele disse, sorrindo maliciosamente.

Todos os sujeitos da gangue começaram a rir.

-Bom… Vamos fazer assim, meu rapaz. Você tem duas chances. Num bolso está o dinheiro. É só vir aqui e pegar. Mas se escolher o bolso errado, você morre. Topa?

 O mexicano cheio de tatuagens deu uma sonora gargalhada que ecoou pela rua deserta. Leonard tirou as mãos do bolso e as levantou para o alto.

-Vamos filho. Escolha um. Não tenho a noite toda. Eu tenho mais o que fazer!

O sujeito se aproximou numa postura agressiva. Olhou bem nos olhos de Leonard.

 -Tu é abusado, velhinho. Mas eu gostei.  Vamos ver o que tem aqui! – Ele disse, enfiando de uma só vez as duas mãos nos bolsos de Leonard.

 Leonard então deu um grito muito alto. E o sujeito, com as duas mãos enfiadas nos bolsos do velho começou a tremer violentamente.

Era como se levasse uma descarga elétrica de milhões de volts. Ele tremia e durante todo o tempo que durou o grito de Leonard, o sujeito ficou agarrado, tremendo, até cair, fulminado no chão.

De seus ouvidos saía fumaça.

Os homens da gangue ficaram atônitos. Os olhos arregalados.

Vieram para cima de Leonard.

-Parem aí mesmo! – Disse o velho.

Eles pararam junto ao corpo. O ar fedia a carne humana frita. Era um cheiro realmente desagradável.

-Mas que porra é essa, coroa? – Gritou o gordão.

-Bolso errado! – Disse Leonard sorrindo.

-Vamos matar esse filho da puta! – Gritou o sujeito mascarado mais alto, sacando uma faca da cintura.

-Espere! – Disse Leonard, estendendo a mão no ar. -Vocês querem morrer? Ou querem que eu traga essa merda aí de volta?

-Nós só queremos o dinheiro! Dá logo a porra do dinheiro! -Um dos mascarados disse com uma faca na mão. 

-Vou repetir porque pelo visto, vocês são uns sequelados. Querem morrer do mesmo jeito que este panaca acaba de morrer ou querem que eu traga este verme de volta à vida?

-Você não… Não… – Gaguejou o Gordão, incrédulo.

-Não posso o que? Trazê-lo de volta? Claro que posso! Mas não vai ser grátis, obviamente.

-Ele não tá morto Tony! O velho deve estar com um taser no bolso!  -Disse o magrelo alto. Parecia ser o mais inteligente.

Leonard olhou para trás. O semblante assutado de Rogério e Aesh Pandraj era impagável.

-E aí? Estão curtindo o show?

-Cuidado! – Gritou Aesh apontando.

O gordão havia se lançado sobre Leonard, com a corrente girando no ar. Mas apenas com um movimento, o sujeito foi atingido por uma força invisível e caiu para trás.

-Pega! Pega!  – Eles gritaram, vindo em apoio ao amigo.

Alguns tinham facas outros revólveres. Mas então, Leonard ergueu a mão espalmada para o céu e uma estranha luminosidade vermelha pareceu emanar dela. Ao ver a cena, os bandidos se prostraram assustados e atônitos.

-Que isso bicho? Que isso?

Ele abaixou-se e bateu a mão espalmada no peito do morto. Foi como um choque. Um trovão assustador ecoou na rua escura. O corpo respondeu com um espasmo  violentíssimo. O corpo do homem de bandana de caveiras chegou a sair do chão no impacto. Para espanto de seus amigos, o sujeito que até ali parecia estar morto, começou a gritar desesperado. Uma marca vermelha e profunda em forma de mão ardia em seu peito, como que marcado por ferro em brasa. Ele não parava de gritar. Era uma dor insana.  O homem gritava coisas desconexas em espanhol. Tinha os olhos arregalados travados em Leonard, e de bunda no asfalto, começou a se arrastar com medo para longe dele. Seus amigos tentaram ajudá-lo a se levantar. Mas ele gritava como se estivesse queimando as entranhas. Esquivou-se dos amigos e saiu correndo desesperado pela rua, aos berros.

Não restou muito o que os demais pudessem fazer senão correr atrás do chefe. Quando os homens da gangue viraram a esquina no fim daquela rua escura, Leonard se virou para os dois:

-E aí? Curtiram? Você viu só a cara daquele paspalho? Ha ha ha ha… Que idiotas.

Aesh e Rogério estavam mudos. Assustados.

-O… O que… O que foi aquilo?

-Ah… Bobagem… Ele não tava morto não. Ele tava na caixa. -Disse Leonard.

-Hã? -Nada… Deixa pra lá. Vamos em frente. Acho que é logo ali na outra esquina.– Respondeu Leonard, seguindo em frente.

Minutos depois, os três chegavam em frente a uma casa velha, caindo aos pedaços.

-Chegamos! É aqui!

-Aqui?

-Tem certeza, que é esta casa, senhor Leonard? -Peguntou o motorista de turbante.

-Sim, sim… É que tem muito tempo que eu não venho aqui. Até tinha me esquecido como esta casa já foi bonita… Venham, vamos entrando.

Os três entraram pelo jardim bem sujo e decadente. Cheio de plantas mortas e ressecadas. Leonard subiu os quatro degraus e bateu na porta de madeira que tinha a pintura descascada. Deu três batidas. E então não aconteceu nada.

-Ué… -Resmungou Rogério.

-Acho que não tem ninguém em casa. -Disse o indiano.

-Não se preocupem. Mas mantenham-se em silêncio. Só falem com ela se ela perguntar alguma coisa, tudo bem?– Perguntou Leonard com autoridade.

E tornou a bater. Então, quando parecia realmente não ter ninguém naquela casa, uma voz fina soou lá de dentro.

-Entre Leonard! Leonard meteu a mão na maçaneta e entrou. Era uma sala antiquada, com papel de parede amarelado se soltando por todos os lados. Os móveis eram baratos e velhos. Na sala havia somente um sofá puído com espumas vazando pelos quatro cantos, um tapete fedido e uma mesa barata com apenas duas cadeiras. Uma antiquada Tv de válvula no canto da parede passava um filme antigo em preto e branco. No sofá estava uma velha que mais parecia uma múmia, aparentava uns cem anos ou mais.

 A pele era enquerquilhada e os cabelos imaculadamente bracos arrumados numa touca.Ela parecia vestir roupas do século dezenove.

 No colo dela, uma menina rechonchuda de cerca de um ano, anos, enfiada num vestido também antigo,  absorta, olhava a TV. A velha falou com sua voz trêmula e fraca.

-Ora ora… Faz mais de quarenta anos que você não aparece…

-É verdade. Andei ocupado. – Disse Leonard.

-Ah… Meu querido. Posso ver em sua alma nas aventuras em que você se meteu… Cada vez mais corajoso e atrevido.

-Bem… -Não vai apresentar seus amigos? – Perguntou a velha.

-Eu… É… É que eu achei que não… Você sabe….

-Quer dizer, como se precisasse, né? Pelo menos mantemos as aparências. Hi,hi,hi… – A velha sorriu sem dentes. Havia apenas um no canto, que lhe acentuava a aparência assustadora de bruxa de contos infantis.

– Mas vamos deixar de lado as formalidades. Vocês estão aqui para saber da mulher do Rogério. A que estava esperando o bebê. Vocês não sabem quem está com ela e nem onde elas duas estão. Vocês pensam que uma Ljuvbna pegou elas e…

Rogério cutucou Leonard com o cotovelo e sussurrou:

– Ei, como ela sabe?

Leonard apenas disse: – Shhhh! Cala a boca!

Nisso, a velha começou a rir quase histericamente. A menina no colo da velha começou a rir também. As duas riam muito. Então a velha disse:

– Rogério, sua filha já nasceu! Estão preparando ela… Você tem um grande problema…

-Senhora… Perdão. Desculpa falar direto com a senhora… Eu preciso saber onde está minha mulher e minha filha. Eu posso pagar! Eu faço qualquer coisa! – Ele disse, colocando-se de joelhos diante da velha. A velha apenas olhou para ele de forma séria.

Subitamente, a velha e a menina começaram a rir histericamente, até que a velha virou-se para Leonard, que mantinha um silêncio respeitoso.

-Você não falou pra eles, não é?

-Eu não disse nada. – Ele respondeu.

-Estou vendo. Ele acha que quem está falando é a velha!

Rogério olhou atônito para Leonard, que se mantinha em silêncio junto à parede.

Leonard apenas olhou para a menina no colo da velha.

-O que? É com ela? É ela?

Leonard apenas assentiu com a cabeça, vagarosamente. A velha ria. A menina parecia impávida.

-Mas… Como? A sua amiga é a menina?

-Sim.  -Disse Leonard. – Ela fala através da velha, porque…

Mas a velha o interrompeu:

-Vocês vieram aqui para saber as coisas que se passam no mundo oculto! Eu vou lhes dizer… Mas tudo tem seu preço.

-Eu pago o que for preciso. – Disse Rogério.

-Ei, ei. Calma, cara. Vai com calma, garotão. Dinheiro da Terra não tem valor aqui. É nessa parte que eu entro na jogada. -Disse Leonard.

A velha ficou parada. A menina olhou para Leonard. Ela não disse uma palavra.

Leonard sacou uma moeda do bolso. Parecia uma moeda de ouro com coisas incompreensíveis escritas nela.

-Aqui está. Aceite nosso presente. – Ele disse, entregando a moeda com as duas mãos para a menina.

-Hummm! Uma moeda do inferno! Belo presente!

A criança olhou a moeda, virou-a de um lado para o outro e então aconteceu algo estranho: A velha abriu a boca e esticou uma língua toda cortada para fora. A menina colocou a moeda de ouro na língua da velha, que a engoliu imediatamente.

Rogério olhou para Aesh Pandraj. Os dois tinham os olhos arregalados de espanto. Não podiam acreditar no que estava acontecendo.

A velha voltou a falar:

-Pois então. Vocês querem saber a verdade. Eu vou contar o que aconteceu!

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. “Ei barbudo! Faz tempo, hein? Vamos ali tomar um vinho?” – disse Leonard para uma figura que ostentava uma grande barba e usava trajes visivelmente antigos, que lembravam uma túnica bastante usada.

    “Leonard, seu safadão! Aonde você estava quando me pregaram na cruz? Podia ter colado pra dar uma força e me tirar daquela roubada, né? Hahahahaha. Saudade de você, meu velho amigo!”

    Os dois se abraçaram longamente e ao final, quando se encaravam com sorrisos nas faces, Leonardo seguiu o messias, enquanto ele apontava para um jarra de água.

    “Eu nunca me canso desse milagre” – foi apenas o que Leonard disse.

  2. Philipe, este comentário não tem nada a ver com o tema do post, mas bem pode valer outro: um dos grandes problemas das Olímpiadas de Sochi, na Rússia, não seria propriamente o terrorismo… seriam os banheiros!
    – Além de não terem divisórias (nem os masculinos), tem proibição que chega a ser para lá de bizarra: urinar em pé… vá lá; não subir no vaso… vá lá… mas ser proibido PESCAR no vaso sanitário já é demais, né não?
    – O que o desavisado usuário pescador acharia que iria pescar? O peixe japonês “toroço”???
    – confira em: http://esporte.uol.com.br/esportes-de-inverno/ultimas-noticias/2014/02/05/esqueca-o-terrorismo-o-que-choca-em-sochi-sao-os-problemas-com-banheiros.htm
    – E, se por acaso houver uma forma mais correta de indicar bizarrices, é só dizer.
    – Abraços.

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