Sem tempo de pensar

Hoje me arrisquei numa atitude que para muitos seria impensável: Fui cortar meu cabelo a pé, sem levar o celular.

Os celulares, são uma maravilha moderna, e simplificaram incrivelmente a vida em uma série de atividades, mas como todos nós sabemos, as vantagens costumam vir acompanhadas de desvantagens. Se por um lado é prático num punhado de cliques numa tela de alta resolução encontrar diversão, tirar fotos, fazer videos, consultar o banco, obter entretenimento, assuntos do momento, toda e qualquer informação que você precise, até mesmo funções de traduzir coisas escritas em chinês para o português em tempo real, por outro lado, há uma permanente sensação de dependência tecnológica. O celular se tornou uma muleta moderna.

O ser humano AMA uma porra duma muleta. Do cigarrinho no canto da boca, a cervejinha o bar, a roupa sempre da moda, o carro que quase não dá pra pagar, o remedinho pra isso e para “aquilo”… Há muletas para todos os tipos e gostos,  e estar com o gadget na mão se tornou uma das muletas mais presentes no mundo hoje. Basta ir a qualquer lugar bonito. A qualquer show. As pessoas não conseguem mais ver qualquer coisa interessante sem pegar aquela porra e ficar protendendo de um lado para outro na frente de quem está atrás. Virou um inferno.

Por que essa necessidade de congelar os momentos em vez de vivê-los?

As pessoas passaram a sofrer de uma grande dificuldade de aceitar que momentos passam. Elas precisam registrar os momentos, porque assim podem revisitá-los quando quiser. Mas com uma vida devotada a registrar tudo o tempo todo, a grande ingrata verdade é que muito disso se tornará apenas mais lixo virtual.

Não estou dizendo que celulares não sejam importantes e eu diria até fundamentais em certas situações, George Floyd que o diga (onde quer que ele esteja agora). Mas é fato que há muito, o afegão médio já não tem uma relação saudável com os dispositivos eletrônicos que vieram para expandir suas possibilidades e um problema que eu vejo nisso, é que talvez esse volume de inputs estejam de alguma forma, matando a criação.

Outro dia estive observando meu celular, como se ele fosse um estranho, um tipo de parasita. Meu celular me demanda muito mais que o Davi, meu filho. Se eu não deixar essa merda no “não me encha o saco, seu filho duma puta” “não perturbe”, é impossível viver. Toda hora um plim. Toda hora alguém falando comigo. A minha mulher me dá esporro quando ela manda mensagem de WhatsApp e eu não respondo rápido.  Ela acha que o fato de eu não ficar olhando cada mensagem, cada plim que meu celular dá, significa dar menos importância para ela.  A tecnologia propiciou uma troca de mensagens instantânea, e com isso ela trouxe o dilema da escravização. Eu simplesmente tenho ódio, pânico, asco, ojeriza, e sei lá o que mais da ideia de uma porcaria preta com tela de vidro me dizer como eu devo levar minha vida.  Eu não quero ser doutrinado e controlado por esta merda. Afinal, a merda foi feita para que eu o controle, não o contrário.

Mas a realidade é outra. A realidade é o celular chiando e vibrando como um nenê com fome, 24 horas por dia, dando barulhinhos e apitinhos (enquanto escrevo acabou de dar mais um, numa sincronicidade satânica)

Bzzz,bzzzz, plim, vem ver o que está acontecendo, bzzzz, plim, fulano esta falando aqui com você, bzzzz, plim…. Alguém curtiu seu….

Eu tenho saudades da minha vida sem esse verdadeiro encosto, que não obstante em me atrapalhar e pentelhar, ainda traz de brinde uma espionagem permanente do TUDO que eu falo, até quando esta porra está desligada. Sabia dessa? Pois é. O nosso celular nos espiona até “desligado”, mané! E a culpa é nossa.

A internet sabe o que a gente anda fazendo (ou falando) e quem autorizou isso foi a gente mesmo. Quantas vezes você já marcou “Li e concordo”? Quantas vezes realmente leu e sabe com o que estava concordando? Ninguém lê. A real é essa. Se estiver escrito lá que o diabo vai ficar com nossa alma, estamos ferrados.

As políticas de privacidade dos serviços online costumam ser vagas, genéricas, escritas daquele jeito que advogado gosta, de modo que só ele entenda, capazes de justificar praticamente qualquer ação por parte desses serviços. O Google, por exemplo, afirma que vai coletar seus dados (a voz transmitida pelo celular é tecnicamente um dado) com o objetivo de melhorar suas ferramentas de reconhecimento de linguagem, bem como os resultados que ele devolve durante sua navegação na rede mundial de computadores.

“Os dados que salvamos com sua conta podem tornar os serviços do Google muito mais úteis para você, por exemplo, com melhores opções de deslocamento diário no Google Maps e resultados mais rápidos na Pesquisa Google.”

Você “leu” e concordou com isso. — Veja a política de privacidade do Google

Enfim, estamos aqui sendo montados por essas coisinhas e gerando dados para as grandes corporações poderem nos explorar. Somos as novas vacas leiteiras no curral e nosso leite são dados que fornecemos gratuitamente para o big data.

Assim ir ao barbeiro sem levar o meu encosto eletrônico é uma patética tentativa de uma micro sensação de liberdade. Muitas pessoas não conseguem, se sentem mal sem estar perto do celular.  A  coisa chegou ao ponto que existe terapia para as pessoas conseguirem passar algum momento sem essa merda.

Meu grande problema com o celular consiste em: Como vou ter paz para pensar se isso aqui está querendo minha atenção 24/7?

Eu gosto de pensar, gosto de ficar sozinho e sentir que uma ideia muda pra outra, e pra outra e vai pra lá e pra cá, misturando pensamentos e cruzando informações eventualmente inúteis que tenho enorme prazer em armazenar na minha cabeça desde que comecei a ler as Seleções do Reader´s Digest na casa da minha avó. Às vezes estou parado olhando para a parede pensando em coisas como “um nome de remédio”. Eu não sou farmacêutico, nem químico, nem medico. Mas eu perco minutos pensando um novo nome de remédio. Pra nada. Por motivo nenhum. Eu gosto de ser assim. Essa é minha doença, desculpa.

Às vezes um nome de remédio me faz pensar em uma maquina do tempo e eu não faço a mínima ideia do que um nome de remédio pode ter a ver com a viagem no tempo, mas essas duas coisas me fazem pensar num remédio que eventualmente tenha um efeito adverso que faz a pessoa acordar dias antes de ter tomado o próprio remédio. E assim uma história vai se criando na minha cabeça. Se eu estiver o tempo todo vendo gatos tocando piano, carros quase batendo na Rússia, pessoas pulando de aviões sem paraquedas ou respondendo a uma militar americana nos EUA que descobriu uma fortuna no Afeganistão e precisa da minha ajuda para repatriar dez milhões de dólares, como que eu vou pensar na porra da minha história?

Não estar disponível é importante

Eu preciso do ócio. Desculpa se isso me faz parecer um vagabundo implorando por uma migalha de tempo. Preciso de um momento sem fazer nada.  Eu quero, desesperadamente, vagabundear. A verdade é que é isso mesmo. Estou mendigando o meu direito de estar a toa.

No mundo acelerado em que vivemos, é cada vez mais difícil encontrar a tranquilidade e reflexão. Para poder ter isso, os ricos pagam para fazer cursos de meditação, ou sobem montanhas, ou vão ver o Titanic.

O sossego entrou em extinção. A constante presença das tecnologias em nossas vidas tem comprometido nosso tempo para pensar e refletir de forma significativa. Mas a importância de ficar um tempo ocioso é CRUCIAL para o processo criativo. Estamos perdendo a capacidade de ter momentos de contemplação profunda.

Em uma sociedade que valoriza a produtividade constante, a ideia de ficar ocioso pode parecer estranha ou até mesmo improdutiva. Um exemplo que fala alto sobre isso é a curiosa mania dos japoneses de dormirem em lugares estranhos, o Inemuri. Pessoalmente eu acho isso uma verdadeira aberração. Mas lá todo mundo respeita e até acham legal.

Parece derrame, mas é inemuri.
(essa é uma ilustração do midjourney, pq a foto original tem direitos autorais)

Inemuri – o que é essa joça?

No Japão, a vida cotidiana é agitada. As pessoas lotam suas agendas com encontros de trabalho e lazer e quase não têm tempo para dormir.
Muitos japoneses reclamam de suas jornadas exaustivas: “Nós, japoneses, somos loucos por trabalhar tanto!”.

Mas a verdade é que essas queixas revelam certo senso de orgulho de ser mais aplicado e moralmente superior ao resto da humanidade.

Apesar de trabalhar feito máquinas num ritmo de vida obsessivo, ver  pessoas dormindo no metrô ou em lugares estranhos se tornou uma coisa comum nos grandes centros. Alguns até dormem de pé, e ninguém parece se surpreender com isso, já que a sociedade japonesa tende a ser mais tolerante ao ato de dormir em público. Parece contraditório? Não é.

Mulheres, homens e crianças aparentemente não se inibem em cair no sono quando chega a  vontade. Enquanto o ato de dormir numa cama  visto como sinal de preguiça, dormir no trabalho ou durante um evento, o inemuri, não é considerado como sono absoluto nem preguiça. A chave para entender isso está no próprio termo, formado por dois caracteres. “I”, que significa “estar presente”, em uma situação em que se está alerta, desperto; e “nemuri”, que significa” sono”.

Apesar de a pessoa que faz inemuri poder estar mentalmente distante, ela tem que ser capaz de voltar à situação social quando necessário. Também deve manter a impressão de seguir condutas sociais por meio da postura, linguagem corporal e vestuário. Fazer inemuri no local de trabalho é visto como resultado de esgotamento. Pode ser algo justificado por reuniões longas e tediosas, onde o esforço de participar é mais valorizado do que o resultado. Cumprir longas jornadas de trabalho e se dedicar ao máximo a ele é apreciado como um traço moral positivo no Japão. Como o cansaço e a doença costumam ser vistos como frutos de esforços no trabalho, o inemuri é visto como sinal de uma pessoa esteve trabalhando duro, mas ainda tem a força e a virtude moral para manter a si mesmo e seus sentimentos sob controle.

Assim o inemuri é um traço cultural mas também é uma afirmativa social de “eu trabalho até cair”.

Veja uma galeria de fotos de pessoas em inemuri (tem gente até em pé)

Um mundo que vê pessoas como máquinas, não vai respeitar o momento em que “essa máquina está parada”. Mas o ser humano não é máquina. É um animal.

A ociosidade desempenha um papel crucial em nosso bem-estar mental e emocional. Quando estamos ociosos, temos a oportunidade de relaxar, deixar nossas mentes vagarem e permitir que ideias e insights surjam de forma natural. A ociosidade é essencial para o processo de criatividade. Muitas vezes, as melhores ideias surgem quando estamos desligados das distrações do mundo exterior e permitimos que nossas mentes façam conexões inesperadas. Durante esses momentos de tranquilidade podemos ter insights, resolver problemas complexos e desenvolver novas perspectivas. Sem ter um encosto eletrônico drenando nossa atenção e inundando nosso cérebro de dopamina barata.

Tecnologia e Ociosidade

Embora as tecnologias tenham trazido inúmeras facilidades e benefícios para nossas vidas, elas também têm essa bosta de lado negativo, de hyperconexões, onde estamos constantemente cercados por dispositivos eletrônicos, redes sociais, notificações e informações incessantes. Eu preciso mesmo saber a notícia no exato minuto que ela acontece? Melhor dizendo, eu preciso mesmo saber que Caetano estacionou o Leblon bem na hora que ele estacionou? Claro que não.

Essa constante exposição às tecnologias cria um estado de constante estimulação, que dificulta a criação de momentos de pausa e reflexão. Se estamos sempre ocupados respondendo a mensagens, navegando em feeds de notícias ou entretidos com jogos e conteúdos digitais, como iremos criar? Ou você é uma boca ou você é um esfíncter. Se você for boca, só recebendo dados o tempo todo, lentamente você perderá a capacidade de parir coisas.  (tudo bem que a ideia de ser um esfíncter ambulante não seja das melhores imagens que já tive, mas considerando o tipo de produção cultural de hoje em dia, a imagem ate que vem bem a calhar, hehehe)

Enfim, como resultado, nossa capacidade de se desconectar e aproveitar momentos de ociosidade têm sido comprometida pelos excessos da tecnologia e nossa necessidade de muletas.

Recuperando o Tempo para Pensar:

Gosto e me iludir que apesar dos desafios apresentados pelas tecnologias, é possível recuperar o tempo para pensar e desfrutar de momentos de ociosidade. Aqui estão algumas estratégias para alcançar esse objetivo, caso você também tenha a mesma inclinação para a autoilusão de liberdade:

1. Defina limites: Estabeleça horários específicos em que você se desconecta das tecnologias. Desligue as notificações e permita-se ter momentos livres de distrações digitais.

2. Pratique a meditação: A meditação é uma forma poderosa de acalmar a mente e cultivar a ociosidade. Meditar não é ficar igual um otário em pose desconfortável como um monge gemendo ooooooooommmmm.  Reserve alguns minutos do seu dia para apenas se sentar em silêncio e focar na sua respiração.

3. Tenha hobbies offline: Dedique tempo para atividades offline que você realmente desfrute, como ler um livro, caminhar ao ar livre, pintar, esculpir, plantar alguma coisa e até mesmo praticar um esporte. Essas atividades proporcionam um espaço para o pensamento criativo e relaxamento mental.

4. Reserve tempo para o tédio: Permita-se ficar entediado ocasionalmente. Em vez de buscar distração imediatamente, deixe-se sentir o tédio e observe como sua mente começa a explorar novas ideias quando isso ocorre.

Ficar ocioso e ter tempo para pensar são elementos essenciais para uma saúde mental, criatividade e bem-estar geral. Embora as tecnologias modernas tenham impactado negativamente nosso tempo para contemplação, podemos recuperar esse equilíbrio por meio de práticas conscientes de desconexão e valorização da ociosidade.

Se você ousar se permitir mais momentos de tranquilidade, abrirá espaço para o pensamento profundo, insights significativos e uma vida mais rica e satisfatória.

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Nasci e cheguei à idade adulta sem que celulares existissem, então sei que a vida é possível sem estar colado nesses aparelhos. Vez em quando saio de casa sem celular, vou a um bar com amigos, vou ao cinema, vou cortar o cabelo também. Passar 3 horas desconectado não é o fim do mundo.

    Infelizmente a pandemia multiplicou por 5 nossa dependência do aparelho. O trabalho home office ficou sem horário definido. Chefe e colegas de trabalho passaram a enviar demandas qualquer hora do dia e noite. Até domingo cheguei a receber mensagens. Então fosse horário oficial de trabalho estava colado nele, fosse horário de lazer, também, preso aos feeds de notícias e aos grupos de whats, tentando saber se a humanidade iria sobreviver ou não àquilo.

    A pandemia passou, mas notei que fiquei bem mais viciado na telinha preta. Notei que isso também prejudicou minha visão. Notei que não tinha mais ideias aleatórias como antigamente, que não tinha um ócio produtivo como antes.

    Agora o celular se tornou cada vez mais exigido. Aplicativo para obter ‘vantagens’ no mercado, para transporte, para obter tickets para acesso a um museu público ou a um show gratuito.

    Sobre o “inemuri” japonês, lembrei de uma matéria que li sobre a China moderna, onde muitos jovens trabalhadores, com tão pouco tempo livre, optam por gastar as poucas horas de descanso, aquele momento em que deitam para dormir, se distraindo nos celulares.

  2. Realmente ficar desconectado é necessário, outro dia até escrevi sobre isso, “O que fazíamos quando não tínhamos celular”, eu mesma lia mais, contemplava o céu, ouvia uma música prestando atenção na música.
    O que eu faço é n pegar o celular de domingo, só pro necessário mesmo, n pego no celular de manhã até chegar no trabalho, e todas as vezes que eu saio de casa pra encontrar alguém eu n fico no cel, acho muito desagradável e tbm qdo vou a um lugar perto tipo mercado, lojinha n levo o cel.
    Ócio é necessário sim, não dá pra romantizar exaustão física e mental.

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