O pianista misterioso

Marco Rossi atravessou a rua, vindo do metrô 72nd Street. Como sempre fazia, ele passou numa cafeteria e pegou dois cafés sem açúcar.  Estava sendo difícil a adaptação do paladar ao café sem açúcar, mas ele fazia tudo para agradar ao senhor Moishe.

Marco reclamou do preço, mas Alif se justificou dizendo que tudo estava aumentando, diante da forte especulação imobiliária no bairro, que estavam pressionando os aluguéis.

-Eu não faço mágica, garoto. – Ele disse, passando um pano molhado sobre o balcão de vidro, onde diversos doces coloridos eram banhados pelo sol, o que ressaltava ainda mais suas cores.

Marco já estava saindo pela porta quando Alif gritou:  – Ei Marco.

-Sim.

-Mande um abraço para o velho.  Tem tempo que ele não aparece por aqui. Tá tudo bem com ele?

-Tá sim. É que chegaram mais pianos essa semana e ele está lá… Sabe como ele é.

-Sei bem.

-Pois é, então… Tá lá, agarrado.  Mas eu mando o abraço, seu Alif. Tenha um bom dia!

Marco saiu da loja carregando os cafés.

Seguiu pela calçada movimentada da cidade. Era ainda bem cedo e as pessoas estavam chegando para trabalhar. Entre as buzinas e o falatório da cidade, Marco sentiu o prazer do sol quente no rosto. O verão em Nova York era delicioso, pelo menos nas primeiras horas da manhã. Ele sabia que o calor escalaria brutalmente nas horas subsequentes.

Marco Rossi finalmente adentrou a Steinberg Pianos, que ficava no térreo de um belo prédio de  tijolinhos vermelhos em uma rua tranquila, porém movimentada. Após as nove da manhã a rua ficava caótica  por estar entre as ruas 72nd e 79th, perto da Broadway. A loja estava lá, no mesmo lugar há mais de meio século  e Moishe  Steinberg amava aquele lugar. Apesar de sua rabugice, ele era bastante querido pelos vizinhos. A área onde seu pai, o famoso pianista Samuel Steinberg abriu a loja de compra e venda de pianos usados, era conhecida por seu charme e sofisticação, com uma mistura de residências elegantes, lojas exclusivas e uma atmosfera cultural vibrante. Sua localização oferecia fácil acesso aos clientes que procuravam pianos de alta qualidade, além de estar em uma área residencial muito bem estabelecida, onde músicos e amantes da música frequentavam regularmente. A boa localização também ajudava a Marco que vinha do Brooklin de metrô. Não raro, pessoas bem conhecidas do Showbiz passavam pela loja, que se beneficiava do fluxo de pedestres e da atmosfera cultural do Upper West Side.

Marco passou na frente do Antiquário e viu Élise Dupont. Ela estava sentada numa cadeira de ferro em estilo Art nouveau, na porta da loja.

-Marco! – A idosa disse sorrindo.

-Dona Élise, como a senhora está?

-Estou bem. Esse café é pro Moishe?

-Sim senhora.

-Espera espera um segundo. Ung… – Ela se levantou com dificuldade. Foi lá dentro da loja.

Marco ficou ali do lado de fora esperando. Consultou o relógio. Estava atrasado. O trânsito naquela hora era ruim, mas com o acidente na Broadway os metrôs lotaram na linha 2.  Temeu que o velho brigasse com ele.

Marco ficou admirando a loja e sua multiplicidade de itens, Quadros, moveis, aparadores antigos, bibelôs de louça, de prata e itens de todo o mundo pareciam se acumular numa enorme confusão de estilos. O fundo da loja ostentava diversas pinturas. Quadros antigos e clássicos disputavam a mesma parede que artes impressionistas de franceses desconhecidos.  Uma coleção de bengalas de todos os tipos ficava bem na vitrine. Marco se encantou por uma cuja manopla era um cão dachshund.

Élise voltou com um pacotinho de papel.

-Que isso?

-É um Croissant. Receita da minha mãe. Eu estava devendo ao velho.

-Ah sim, obrigado. Eu levo pra ele.

-Diga que mandei um beijo e que é para ele aparecer. Ele ainda está contando aquelas histórias do ratpack?

-Sim senhora. Todo dia, num dia é Sinatra, no outro Dean Martin…

-Imagino. Mas ele anda sumido. Não o vi passando por aqui faz uns dias.

-É que chegaram novos pianos essa semana e sabe como ele é…

-Eu sei.

-Então… Bem, vou nessa, Bom trabalho dona Élise.

-Bom dia Marco.

Marco finalmente chegou na loja. Entrou encontrou Moishe sentado na poltrona de couro diante de um piano Yamaha.

-Bom dia, senhor. A Dona Élise do antiquário mandou um croissant…

-Shhhhh! – O velho sussurrou.  Em seguida, ele apertou com os dedos duas notas. E ficou ali, teclando as mesmas notas sem parar.

Marco ficou segurando o café ao lado do velho e o pacote do croissant.

-Tá ouvindo?

-Não senhor.

-Dá com desvio no ré ainda. Olha aqui. Presta atenção, Marco.  – Moishe disse, tocando repetitivamente as notas.

-Sim, sim senhor. E o seu café? Aqui está. Toma.

-Tá sem açúcar né?

-Sim senhor.

-Então me dá o seu.

-O meu também está, seu Moishe.

-Então me dá, ué. Se eu pedi é porque eu quero ter certeza.

-Ôôô… Confiança zero hein? – Toma então, prova aí.  – Marco estendeu o café para Moishe.

O velho bebericou o café do rapaz.

-Muito bem. Sem açúcar. Achei que você não ia conseguir. – Ele disse, abrindo em seguida o pacote do croissant.

-Que é uma merda, é…

-Daqui a cinquenta anos você vai me agradecer. – Ele disse sorrindo. Deu uma bela mordida no croissant.

-Hummmm. Delícia. Essa moça é demais!

-O senhor está fazendo falta lá no antiquário hein?

-O que você quer dizer com isso? Que brincadeira é essa, meu rapaz?

-Nada, nada. Cala-te boca.  -Marco preferiu fingir que não entendeu a piada do “daqui a cinquenta anos”, já que o velho Moishe tinha quase noventa.  O velho ficou ali teclando no Yamaha.

Marco foi ate os fundos guardou suas coisas, pegou a vassoura e foi varrer a loja.

-Pode largar isso aí que eu já varri, garoto. – Disse o velho, sem tirar a cara do piano.

-Mas Moishe. Nós combinamos… Assim não dá, pô. O senhor vai acabar no hospital. O medico falou que não pode varrer. Não pode. A coluna…

-Não enche, moleque. Minha saúde é melhor que a tua!

-Ah tá, sei. Vou contar pro doutor Phillips e pra Valéria hein?

-Deixa minha neta fora disso. Pensa que eu não sei que tu anda de olho nela, seu gavião safado? Vocês italianos são foda. Eu lembro do Sinatra. O maldito morreu me devendo 400 dólares. Carcamano safado duma figa… Fora que…

-Ah, o senhor vai contar toda aquela história da Ava Gardner de novo?

A porta da loja se abriu e dois sujeitos fortes entraram.

-Yo!

-Salve mano!

-Já falei que não gosto dessas porcarias de papo de gangue na minha loja! – Disse o velho.

O homem que vinha na frente, olhou para Marco. – Ih, ele tá atacado já? Essa hora?

-Pra você ver. Já vai contar de como ele comeu a Ava Gardner… De novo.  – Disse Marco tomando um gole do café.

-Vou nada. Nem comi… – Ele deu ênfase – Eu QUASE comi. Quase, entendeu? Quase, mas ela…

-Preferiu o Frank Sinatra – Os três homens disseram, em uníssono.

-Pois é… Pior pra ela. Eu, pelo menos estou vivo.  – Disse o velho sorrindo.  Depois, se virou para os dois rapazes e apontou os fundos.  –  Andrew e Paul, vocês podem ir lá pra oficina. Eu quero aquele Steinway & Sons finalizado ainda hoje.

-Ih, seu Moishe… Não sei se vai dar não, hein? Ainda nem chegou o verniz.

-Porra ainda não? Mas esses caras da loja estão de sacanagem! Tinham ficado de entregar ontem.

-Mas aí eles vieram e trouxeram as tintas poliéster e o fundo PU, mas o verniz ele esqueceu.

-Merda. Marco, liga lá e manda trazer. Fala pra ele que se ele quer me foder, tem que me beijar primeiro. O cronograma está ficando apertado, com o comprador do Fazioli enchendo o saco já. O cara liga todo dia.

Os dois homens foram para a oficina e Moishe voltou a ajustar o piano no salão.

O interior da loja era relativamente amplo, mas era tão lotado de pianos de todos os tipos e idades, que parecia apertado e confuso.  Enquanto tomava o café, ele ia apertando as teclas e fazendo anotações num caderninho.

Marco Rossi começou a ajeitar a confusão de papeletas no pequeno balcão nos fundos da loja.

-Moishe, tá uma zona isso aqui. Você pensou naquele negócio da dedetizadora e do computador?

-Shhhh…  – O velho gemeu novamente, prestando atenção no som das teclas.

Moishe alternava o temperamento. Num minuto era um idoso bem divertido e severo e rabugento em outros. Algo que ele não gostava era que perturbassem sua concentração quando estava afinando os pianos.

Depois de alguns minutos, ele rompeu o silêncio.

-Essa merda está empenada em algum lugar. Vou mandar lá pra oficina.  Marco, chama o Andrew lá e manda ele levar esse piano e desmontar tudo. Vamos montar todo de novo. Tem alguma coisa empenada nele. Com certeza tem problema estrutural no cavalete.

-Sim senhor.

-Mas, marco, falando na minha neta…

-Ah, não, deixa disso, seu Moishe.

-Eu sei. Eu vi você olhando pras pernas dela, safado. Mas olha, só quero dizer que pra você, tudo bem…

-Que isso, Moishe… Tô de boa! Nem gosto dessa fruta.

-Tô sabendo. Um-hum… Até parece que você me engana.  Ó… Pega essa flanela ali e dá uma limpeza ali nos pianos da frente que hoje é quinta.

-Ah, sim, ele ainda nem chegou. Daqui a pouco ele está aí. – Marco consultou o relógio.

-Ele tá atrasado hoje. – Disse o velho.

-O trânsito está horrível.  Um carro bateu e pegou fogo lá na Broadway.

-Deve ser isso, porque o professor sempre chega na hora. Vai lá tirar o pó do piano. E se ele chegar aí, bate ali na porta do escritório. Não vou perder o show de hoje igual semana passada.

-Sim senhor.

Marco pegou a flanela e foi até a frente da loja. Abriu as enormes portas francesas. O ar gelado entrou num sopro para dentro da Steinberg Pianos.
Ele começou a limpar os pianos da frente da loja com bastante cuidado.

Os melhores pianos eram normalmente colocados na frente, para chamar os fregueses.
Depois de alguns minutos limpando, Andrew chegou, vindo da oficina nos fundos. Já estava vestido no macacão azul com o logo da loja.

-Marco,  avisa o velho que a loja de tinta vai entregar hoje o verniz. Eu mandei um email esculachando lá e parece que deu certo.

-Andy, vamos esperar a parada chegar.  Se falar com ele e depois o material não chegar, fudeu. Você sabe como o velho é…

-Eu sei… O que eu não sei é como que a gente aguenta esse coroa.

-Ele é legal… Mas porra, ele tem quase noventa anos, meu.  Acho que na idade dele, eu vou ser bem mais chato.

-Não sei se a gente chega lá.

-A disposição do velho é invejável. Abrindo essa loja de segunda a sexta, desde que eu nasci.

-Marc, não é hoje que vem o professor? Já era para ele ter chegado, não?

-Tá um caos ali pra baixo porque deu acidente na Broadway. Mas ele chega. Ele sempre vem. O professor nunca falta. Se há duas certezas nessa vida, uma é a morte e a outra é que o professor passa por aqui toda segunda e quinta e toca o piano da frente da loja.

-O que será que ele vai tocar hoje? Quer apostar? Eu vou de Mozart.

-Mozart foi semana passada, acho mais provável um Rachmaninoff, o que e uma merda, porque o Moishe sempre fica atacado da ansiedade se o professor soca muito nas teclas.

-Porra mas como que faz com Rachmaninoff  sem socar a tecla?  Sabe, Marc, eu acho isso uma coisa muito louca. Como que um coroa vem do nada, durante décadas, entra nessa loja, senta num dos pianos toca uma música e vai embora e nunca disse uma única palavra com vocês? Como que o velho deixa isso, ele que é tão ciumento com os pianos…

-Eu tenho pra mim que o velho conhece o professor, Andy. – Disse Marco, enquanto passava a flanela num dos pianos.

-Ali ó… Tá engordurado ali…. Mas como assim, conhece e não fala, nem cumprimenta. Coisa bizarra. Será que o professor também é judeu?

-Ah, sim, valeu. – Disse Marco, limpando a mancha na tampa do piano de cauda branco. – Eu não sei. Não parece. Ele parece professor de história, sempre com aquele paletó horroroso… Mas o lance é que durante um tempo o Moishe não gostava, né? Ele só passou a gostar quando viu que o professor tocava tão bem que as pessoas da rua paravam para ver ele tocar e era uma propaganda grátis.

-Ah, se tem um negócio que esses caras aqui sabem é apreciar uma propaganda grátis. Ganhar dinheiro, bro! Show me your money, suckers! Mas é estranho que vocês nunca falam nada com ele.

– Eu já pensei em falar, mas o Moishe não deixa. Ele diz que “se funciona assim, deixe assim”. Sabe, esses ditados de velho, né?

-Ha, ha, minha mãe era assim também, cheia de ditados… Ah, dona Yvonne…

-…Daí eu simplesmente obedeci ao Moishe. Se não é para falar com o professor, a gente não fala. Ele chega, senta no piano, toca a musica dele e vai embora. Sem um bom dia, sem um obrigado nem um adeus. Toda segunda e quinta. Dez e vinte da manhã.

-Bom, hoje ele furou olha aí. Dez e quarenta já.

-Falando nele, olha ele ali. Vai atravessar a rua. Vem! Vamos lá pra trás do balcão.

-Rápido Marc, pega o celular pra filmar!

-Opa, tá na mão. Se não botar o video o pessoal do YouTube fica lá chorando.

Os dois empregados da loja correram para os fundos e se instalaram atrás do balcão. Andy puxou um dos banquinhos e se sentou.  Marc bateu na porta da diminuta saleta de Moishe.

-Senhor Moishe, ele chegou! O professor está aí!

Moishe abriu a porta apressado e se posicionou diante do balcão de braços cruzados como sempre fazia.

Lá fora, do outro lado da rua, estava o professor. Ele era um homem de cinquenta anos ou talvez um pouco mais. Os cabelos eram ralos e quase todos brancos. Ele vestia um paletó marrom e calças de linho. Ele trazia consigo uma pasta de couro, e um jornal. Sempre tinha um jornal sob o braço.
Ele atravessou a rua e adentrou direto, pelas portas abertas da loja, como sempre fazia. Lá no fundo, Andy, Marc, Moishe e Paul, que surgiu nas escadas, vindo lá da oficina e se juntou a eles bem na hora do “show”.

O professor entrou, olhou os pianos na frente da loja, olhou um a um e então sentou-se diante do que estava mais perto da entrada. Era o piano branco. Um piano que Moishe detestava e por isso sempre colocava na porta para ver se sairia logo, mas nunca vendia. Como Moishe sempre dizia,  “tirando o Liberace e o Richard Clayderman parece que ninguém mais gosta dessa merda!”.

O professor deu duas socadas numa nota.

Moishe olhou para Marco e sussurrou: – Vai ser Chopin.

Marco olhou para Andrew. Andy fez com a boca: “Rachmaninov”

Marco negou com a cabeça. Enquanto isso, na na porta, o professor socava a mesma nota. “tunnn, tunnn, tunnnn…”

Então ele começou a tocar uma música tão rapidamente que Andy arregalou os olhos.

Moshe sorriu satisfeito. – Eu sabia! Chopin. – Ele sussurrou entre os dentes. – Está filmando, né?

-Sim. – O jovem disse baixinho, com o celular em mãos.

Era mesmo Chopin.  Mais precisamente, Étude Op. 25 No. 11, o famoso Winter Wind. A energia frenética e à sua sonoridade que evocava a imagem de um vento furioso de inverno. As notas ecoaram na sala. As pessoas que passavam pela rua pararam para escutar. Os velhos da barbearia saíram para a calçada.  Aquela  peça era marcada por uma sucessão rápida de notas em oitavas e arpejos, exigindo uma gigantesca habilidade. A forma elegante e enxuta com o qual o professor a tocava,  e destreza técnica por parte do pianista para executá-la com precisão e fluência mostravam que ali estava um artista de talento gigantesco. Ele tocava de memória, sem partitura.

-É um gênio. – Sussurrou Andy.

-Essa foi uma das melhores, hein seu Moishe? – Paul assistia vidrado, sobre os ombros do velho.

Quando o professor terminou de tocar numa escala ascendente e finalizou a música, as pessoas lá fora aplaudiram. Moishe, Marco, Andrew e Paul também aplaudiram, como sempre faziam. O professor, impassível, ajeitou os óculos, colocou o jornal sob o braço. Ele pegou sua pasta de couro e saiu, ganhando a calçada e sumiu em meio a multidão.

O velho dono da loja se aproximou na porta. -Obrigado pessoal, não deixem de seguir nossa loja no… – Ele virou-se para Marco, que salvava o vídeo. – Como é mesmo o nome desse troço?

-YouTube.

-Sigam a gente no youtrubiu!  E se precisarem de um piano, estamos às ordens. Os melhores pianos são aqui! Obrigado, obrigado. Tenha um bom dia, senhora. Obrigado.

As pessoas na rua retomaram seus afazeres. Moishe voltou para o interior da loja.

-Muito bem, muito bem…. O show acabou, rapazes. Voltem ao trabalho. Marco, liga lá para a loja de tinta.  Andrew e Paul, desçam lá e finalizem a desmontagem do Yamaha. Não quero ninguém parado de papo furado. Bora! Bora! – Disse o velho, batendo palmas.  Os empregados da loja de pianos desceram para o porão comentando sobre a incrível habilidade do pianista misterioso.

Moishe já ia entrando para seu apertado escritório quando a sineta da porta tocou. Ele e Marco olharam para a porta e ali estava um velho chinês, careca. O chinês possuía longos bigodes e uma barba fina, brancos, óculos de aros redondos  e uma expressão esquisita. Seu rosto era completamente vincado de rugas, e ele parecia ter mil anos de idade. Vestia uma bata branca comprida.

-Pois não? Posso ajudá-lo, senhor?

O homem idoso andou com grande dificuldade, muito lentamente ate chegar no balcão. Ali ele disse num inglês quase incompreensível que queria vender um piano.

Marco disse a ele que eles compravam pianos usados mas era preciso uma avaliação técnica.

-Me passe seu endereço que mandamos nosso técnico lá no local avaliar.

-Non, non. Non plecisa. O piano está ali fola”. – Disse o chinês.

Marco olhou para Moishe que estava de braços cruzados, impassível, olhando por cima dos óculos de leitura.

-Está aí fora? O piano?

-Sim, sim senhor. O piano está no “calo”. – Ele disse.

Moishe deu de ombros, bateu na mão de Marco e disse baixinho:

-“Vem, vamos ver o que o Fumanchu tem pra nós!”

Eles saíram, com o velho chinês careca saindo na frente. Do lado de fora, parado perto da porta da loja estava uma caminhonete enorme. Era uma RAM gigantesca, toda preta. E ela puxava uma carretinha do tipo semi-reboque, com um enorme pano de cauda, coberto numa cobertor amarrado com cordas.

Marco olhou para Moishe que mexia a cabeça negativamente.

-Devem ter fodido o piano todo. – O velho disse, apenas olhando a forma como estava amarrado.

Da caminhonete desceram quatro caras todos enormes e fortes. Eles eram todos chineses. O velho falou coisas em chines com eles e eles chamaram Moishe e Marco para se aproximar. O mais forte deles puxou as cordas com cuidado e removeu um dos cobertores que cobriam o piano.

Moishe, ficou estático quando viu a madeira laqueada surgindo debaixo do cobertor vagabundo.

Moishe estava balbuciando coisas baixinho. Marco temeu que o velho estivesse tendo um derrame. Ele chegou perto e colocou a mão no ombro de Moische.

-Bubele! Oy gevalt!

-Tudo bem, senhor Moishe?

-Mande o fumanchu me encontrar no escritório para assinar a papelada. Já está vendido.

-Mas o senhor não vai nem avaliar?

-Meu filho, se isso fosse um violino, seria um Stradivarius! – O velho sussurrou no ouvido de Marco.  – Manda chamar o Paul e o Andrew e tragam o piano pra dentro.

Moishe fez sinal para que o velho chinês o acompanhasse para dentro da loja.  O velho careca disse mais algumas coisas e os quatro chineses começaram a desamarrar o piano.

-Parem, parem! Pare agora! – Moishe gritou, saltando pela calçada.  – Deixem que meus rapazes assumem daqui. Obrigado, obrigado, não se incomode, meu rapaz. Vai, Marco, chama os meninos!

Marco saiu correndo para a porta da loja e chamou Andy e Paul. Eles vieram correndo para carregar o piano.

-Muito cuidado hein? Se alguém marcar esse piano, morre! – Gritou Moishe.  – Venha, venha, por aqui, senhor?

-Doutor… Lao. – O chinês disse sorrindo.

-Venha, doutor, Venha. Vamos fazer a papelada. Por favor, tenha a bondade, cavalheiro.  – Ele disse, abrindo a porta para o velho chinês.

Eles entraram e Marco ficou do lado de fora da loja, ajudando Andy e Paul a descarregar o piano.

-Esse troço é mais pesado que de costume. – Disse Andy, conforme fazia uma cara feia.

-Com cuidado. Devagar!

-Nota-se que é coisa antiga.  Vamos pela passagem lateral ou pela frente? – Questionou Paul, com grande esforço.

-Por aqui pela frente mesmo. Estaciona o monstro ali, perto do piano do Clayderman.

Eles haviam acabado de colocar o grande piano de cauda no lugar quando Moishe e o velho saíram do escritório.

Andy sussurrou: -“É hoje a convenção das múmias do Upper West!”

Marco teve que conter o riso. O velho chines caminhava devagar, segurando um enorme pacotão de papel pardo.

Andy olhou para Marco.  Eles sabiam o que aquilo significava.

Moishe parou junto a porta e viu os chineses embarcando na caminhonete. O “Fumanchu” deu um adeus discreto, com sua mão frágil e trêmula e eles partiram.

Santo Deus, seu Moishe!

-Ele limpou o cofre! – Disse Moishe, passando a mão pelo cabelo branco.

Marco notou que o patrão estava suando. Talvez pelo calor, pois já era quase meio dia.  Mas não, as mãos trêmulas e o jeito de quem está sem ação diante dos acontecimentos estavam bem claros no comportamento do dono da loja de pianos. Marco cresceu naquela loja e sabia bem que Moishe estava abalado. Ele nunca tinha visto o patrão daquele jeito.

Moishe foi até o piano e acabou e remover os panos. Ficou ali de pé, catatônico, diante do piano.

-Eu nunca vi um desses em meus vinte anos de loja. – Disse Andy.

-Eu só vi um desses uma vez. – Gemeu Moishe. Ele limpou o suor da testa. –  Estamos diante de um monolito musical, garotos. Este é um Bösendorfer Imperial.

-Nunca nem ouvi falar. – Disse Paul.

-Não me surpreende, já que você é um completo ignorante. -Moishe respondeu.

-Pô, calma aí, seu Moishe. Pega leve, brou!

-Está vendo?

-Mas seu Moishe, esse piano imperial… Como isso veio parar aqui?

-Não sei. Eu não faço perguntas quando quero muito alguma coisa. Eu só paguei o que o velho Lao pediu. E pronto. Ele assinou a papelada e agora é meu.

O piano era uma obra de arte. Dois dragões decoravam suas pernas dianteiras e ele era todo em madeira antiga, com um riquíssimo trabalho, decorado com folhas de ouro em algumas partes.

Moishe abriu a tampa frontal e examinou lá dentro.

-É impressionante, parece ter sido fabricado ontem! Não vejo praticamente nenhum sinal de desgaste.

-Será falso?

-Não, com certeza não. – O dono da loja disse.  – Está muito bem conservado mas é um piano original. Foi fabricado pela Bösendorfer na Áustria em 1829.  Eles ficaram famosos em meados do século XIX.  Escute isso. – Ele disse, apertando as teclas. O som era límpido e cristalino.

-Andrew, observe aqui, venha mais perto. Note que os Bösendorfer Imperiais são de 97 teclas, em vez de 88.

-Que interessante! – Disse Marco, chegando junto de Andrew e  notando as teclas. O marfim ainda estava branco.

-Está bem pouco amarelado. Quase não deve ter sido usado! – Notou Andy.

Moishe estava empolgado dando aula para os rapazes.

-Essa extensão extra permite uma expressão musical ainda maior e um alcance tonal incomparável. O som dele é bem característico, olha só. – Disse ele, fazendo um arpejo simples.  – Não vamos ter problema de vender.

-E o senhor vai ter coragem de vender? – Questionou Andy.

-Olha ali fora e leia o que esta escrito no vidro, Andrew. Está escrito “compro seu piano para morrer abraçado com ele” ou está escrito “compro e vendo pianos”?

Andy apenas concordou com a cabeça. O patrão bateu palmas e os tocou da loja.

-Bem, vamos, vamos! Vocês estão em horário de almoço. Me deixem em paz. Vou ficar aqui dando uma olhada melhor.

Os três rapazes viraram a plaqueta de horário de almoço na porta e saíram para a lanchonete.

Quarenta minutos depois, quando retornaram para a loja, encontraram Moishe caído dentro do piano.  Marco se assustou com a cena. O velho estava com meio corpo dentro da caixa do piano. Suas pernas finas balançavam no ar.

-Moishe! Moishe! O que aconteceu?

-Shhhhh! Calem a boca, estou testando essa belezinha.

-Porra Moishe! Quer matar a gente de susto, cara? – Reclamou Andrew.

Ele estava montado dentro do enorme piano, verificando cada reentrância, com uma pequena lanterna, em busca de sinais de cupim ou rachaduras no corpo do piano, especialmente nas áreas de tensão, como a tábua harmônica e o cavalete.  Moishe saiu dali com a ajuda de Paul e Marco e mencionou uma pequena trinca numa das teclas de marfim.

-É o único problema desse piano. – Disse, satisfeito.  Vamos tomar um café para comemorar!  Eu pago!  – O velho foi até o balcão e pegou seu chapeuzinho antiquado.  – Vamos?

Os rapazes se entreolharam espantados. Era mesmo o dia das novidades, ao ponto de Moishe se oferecer para pagar alguma coisa.
Eles concordaram e fecharam a loja. Foram os três para a loja do Alifi na esquina, tomar um café.

No caminho, Moishe contava sobre as incríveis propriedades musicais daquele piano e eles debatiam como aquele instrumento tinha vindo parar em Nova York.

-Certamente pertenceu a alguém muito importante. – Ele disse, enquanto andava com seus passinhos apressados. – O chinês não fazia ideia do que ele tinha em mãos. Ele vendeu mais como uma antiguidade, como um móvel. Para aquele velho estúpido isso não passava de uma peça de decoração, veja só.  Queria que meu pai estivesse aqui para ver isso. Ele ia cair duro.

-Ele ia fazer a mesma cara que você fez, Moishe. Tinha que ver!  – Marco imitou a cara de espanto do patrão e Paul e Andy caíram na gargalhada.

Após tomarem um café e Moishe bater um papo rápido com Alifi, os três voltaram para a loja.
-Bem, vamos ao trabalho. Desçam lá e terminem a desmontagem do Yamaha.  Paul, depois de desmontar, você vai ficar no Yamaha e o Andrew vai finalizar o verniz do Fazioli. Marco, Tá com você o apito! Resolva lá o negócio da tinta e vernizes. Eu vou estar ocupado.  – Ele disse, entrando na pequena saleta e batendo a porta atrás de si.

Marco concordou e minutos depois o pessoal da loja de tinta já estavam entregando os galões lá nos fundos.
No final do dia,  Marco chamou Moishe para dar o veredito final no acabamento do Fazioli.
Moishe estava animado. Elogiou a pintura de Paul. Andrew se desculpou e disse ao patrão que Paul era melhor na pistola de pintura que ele. Depois passou para os detalhes com Andrew nos acabamentos do Steinway & Sons que estava com um problema nas teclas, que embora mantivessem sua tradicional ação suave, havia duas notas presas, com dificuldade de retorno.

Marco perguntou a Moishe se ele já tinha uma ideia do que seria preciso fazer no Bösendorfer Imperial.

-O piano está perfeito. – Ele disse.

-Sim, mas aquela pequena rachadura na tecla…

-Faz parte da história do instrumento, Marco. A gente não pode vilipendiar a história. Estamos aqui para assegurar a qualidade. A qualidade está lá, sem sombra de duvidas. Não estamos aqui para “dar um trato”. Não são carros velhos. São obras de arte. Tem coisas que a gente não deve mexer e tem coisa que a gente não pode mexer. A tecla fica como está. Finalizando o Steinway, o Paul e o Andrew vão fazer apenas uma limpeza leve no Bösendorfer, ouviram?

-Sim senhor.

-Quando será que os compradores vão aparecer?

-Calma, garoto. Essa semana ainda eu vendo ele. Já fiz algumas ligações. -Disse o velho, esfregando as mãos.

Marco sabia que Moishe ia ganhar uma fortuna naquela venda, por isso ele estava tão animado.
No final do dia, eles se despediram e  foram para casa.

No dia seguinte, quando chegou, trazendo os tradicionais dois cafés sem açúcar, Marco encontrou Moishe falando animadamente ao telefone.

-Muito bem, muito bem. Aguardo seu contato então… Sem problemas. Quando quiser, ou precisar, sabe onde me encontrar. Estou sempre aqui, hahahaha. É um prazer. Igualmente. Tenha um bom dia.  – Ele disse, antes de desligar o telefone.

-Bom dia senhor Moishe.

-Bom dia Marco.

-Conseguiu dormir, seu Moishe? Aposto que ficou sonhando com o Bösendorfer.

-Hahahaha você me conhece bem mesmo, garoto.  Fiquei pensando nesse piano por muito mais tempo do que eu gostaria – e poderia. – Ele disse, pegando o café.

-Tá sem açúcar?

-Sim senhor.

-Então me dá o seu.

-Ahhhh. Puta merda, seu Moishe.

-Vai rapaz, para de chorar e passa pra cá.

O sino da porta tocou. Eram os outros empregados.

-Bom dia seu Moishe, fala Marco! – Disse Andy. Ele e Paul entravam na loja.

-Bem na hora! Meninos, metam seus uniformes e finalizem aquelas duas merdas lá em baixo! Quero começar o processo de limpeza do bichão ali ainda hoje.

-Sim senhor.  – Disse Andy.

Marco ficou ali na recepção, atendendo ao telefone e recebendo clientes que entravam em busca de um piano. O que mais saía na loja, eram os piano básicos, chamado de upright , como os Baldwin da linha BP, que saíam por volta de nove ou dez mil dólares. Naquele dia, um casal apareceu querendo um piano para a filha, mas estavam reclamando dos preços. Sempre tinha um comprador entrando em busca de algo mais simples, mais “de entrada”, e nesse caso, era o trabalho de Marco explicar que a Steinberg Pianos era mais voltada para pianos profissionais. Ele entregava um cartão de uma outra loja do Queens.

-Lá vocês vão encontrar um Johanes Seiler, ou um Pearl River, num valor mais em conta.

Os clientes agradeceram, e saíram.

Logo, surgiu Moishe. Ele parecia animado.

-E aí? Cliente caroço de novo?

-De novo. Pela sua expressão, imagino que  o senhor vendeu o piano.

-Veja bem, Marco… Não sei. Sinceramente. Estou com um problema, o melhor problema, aliás.

-Que problema?

-Há dois clientes disputando o Bösendorfer.

-Dois?

-Sabe aquele Masestro, Victor Belmont?

-Wow!

-Ele está interessado. Mas o problema é o outro cara.

-Quem seria?

-Salvatore De Luca.

-Não sei quem é.

-Sabe aquele restaurante caro do alto do Time Warner Center?  Salvatore é um restaurante italiano…

-Acho que já ouvi falar. Dizem que os preços dos menus degustação podem chegar a várias centenas de dólares por pessoa!

-O dono tem seus contatos… Pelo nome você já entendeu.

-Ah, pro senhor todo italiano é mafioso.

-É tipo quando eu saía com o Sinatra e o Dean. Sabia que o Dean não bebia? Aquele negócio não era uísque, nunca foi. Ele tomava chá. Já o italiano, enfiava o pé na jaca. O fraco dele era o Gin.

-Ei, ei, seu Moishe, seu Moishe? O senhor estava falando do piano.

-Ah sim, então aquele carcamano rico está louco pelo piano também. Coisas do Alifi. Ele contou pro italiano e agora ele quer o piano lá em cima no restaurante. Já mandou até tirar o Steinway grand piano lá.

-Puts e agora? Quem vai comprar?

-Meu filho, por mim, eu vendia para o maestro Belmont, mas eu acho que quem vai levar é o dono do restaurante.

-Um pecado, seu Moishe.

-Dinheiro é dinheiro, Marco. Não estou nos negócios há meio século fazendo caridade.

-O Salvatore tem dinheiro infinito, né?

-É o que dizem.

-Mas por que ele não fechou?

-Eu estou cozinhando a venda, rapaz. Você precisa aprender muito ainda. Esse negócio funciona com encanto e magia. Como você vende algo para alguém que pode tudo?

-Não sei, como?

-Você sugere que ele não pode.  Um piano caro nunca se oferece apenas para uma pessoa. É uma lição que aprendi com papai.  Milionários não compram. Milionários vencem. E para ele vencer, é preciso que haja outro player. Por isso, já mandei avisar ao Belmont que o Salvatore cobriu a oferta dele. Agora de manhã, o maestro me ligou ele vai tentar levantar no banco um empréstimo.

-Mas ele não vai conseguir nem assim, né seu Moishe?

-Sim, mas aí o cacife já subiu. Eu volto para o Salvatore e aviso que o maestro vai levar. Então ele cobre a oferta novamente e ai fechamos.

-Nossa. – Marco se espantou, pensando com como o patrão era uma verdadeira águia nos negócios.

-Marco, eu vou precisar da sua ajuda, avise aos meninos que vocês três vão fazer hora extra no final de semana. Preciso desse piano em perfeito estado, porque o Salvatore vai vir na segunda feira a noite ver o piano e ainda tem o Yamaha lá embaixo na oficina pra desmontar, e isso só  depois que o Andrew resolver o problema das teclas do Steinway.

Marco não gostou de ouvir aquilo. Estava planejando passear no Central Park com seu novo namorado, mas os planos românticos teriam que ficar pra depois, já que a venda do piano imperial certamente garantiria a eles um fabuloso bônus.

Naquele final de semana, os três funcionários encararam o desafio, na base da pizza e refrigerante. Logo, no domingo a noite, eles haviam finalmente consertado o Steinway e desmontado o Yamaha pela segunda vez.

Os dias se passaram e quando marco chegou na segunda-feira carregando os dois copos de café, encontrou Moishe e Andrew sentados ao redor do piano. Moishe fazia arpejos tentando ajustar a afinação.

-Acho que agora chegou. – Disse Andrew, verificando as cordas na parte traseira do imperial.

-Andy, não acredito que você dormiu aqui.

-Não só ele, como eu. – Disse Moishe, apertando a mesma tecla do piano varias vezes.

-Meu Deus!

-Está perfeito! Maravilha, Andrew! Tire o resto do dia de folga, meu rapaz! Excelente trabalho! – Ele disse, apertando a mão do empregado.

Andy agradeceu e correu para pegar suas coisas e foi embora o mais rápido que podia, certamente, com medo do dono da loja  mudar de ideia.

Moishe, se levantou, espreguiçou esticando os braços para cima e pegou o copo de café.

-Tá com…

-Sim. Toma. -Disse Marco, estendendo o café dele de uma vez.

-Não, não precisa. Eu acredito.  – Ele disse, sorrindo. – Não teve croissant hoje?

-Bem, seu Moishe, eu não passei no antiquário, vim correndo, porque segunda-feira é uma loucura ali na Broadway.

-Tudo bem, tudo bem, besteira. Como estão as visitas no negocinho lá?

-Tudo indo bem, estão aumentando legal. O pessoal gostou da ultima apresentação do professor. Muitos elogios.

-Sabe de uma coisa, garoto? Estou curioso para ver a cara dele quando abrir a porta e der de cara com o Bösendorfer.

-Ih, é mesmo. Hoje ele vem.  Não podemos deixar de filmar essa, porque eu tenho certeza que ele vai ter um troço quando der de cara com esse piano.

-Você vai deixar ele tocar, Moishe?

-Claro, rapaz! Se tem alguém que merece tocar nesse instrumento, é o professor! Tá louco? Quero só ver o que ele vai tirar da cartola hoje! Prepara o celular porque vai ser épico! Épico né que diz?

-Isso, épico.

-Vai ser épico no Youtruibiu!

Marco tentou segurar o riso.  E ficou limpando o balcão.

-Vou para o meu casulo ali. Quando o professor chegar, já sabe.

-Deixa comigo, Moishe.  – Disse Marco, compenetrado.

As horas foram se passando e quando deu nove e meia da manhã, Marco, como sempre fazia, abriu as duas portas francesas da loja. A rua estava bem movimentada com um bom numero e transeuntes.
Marco voltou para  o balcão e as horas pareciam demorar a passar naquele dia.

Quando finalmente ele viu o professor aparecer do outro lado da rua, ele correu e socou a porta do escritório.

-É ele! É ele! Ele esta lá!

Moishe estava no telefone e rapidamente fingiu um problema na ligação, desligou o telefone e o tirou do gancho.
Ele veio correndo e prostrou-se como sempre fazia, de frente ao balcão da loja com os braços cruzados.

-Vai, filma! Filma! Está filmando? Pega o quadro dele entrando hein? Dá um close na cara dele!

-Shhhh. Está filmando já! Para de falar, seu Moishe! Vai sair no vídeo, pô.

-Ok, ok. – O velho disse puxando os dedos na frente da boca como num zíper imaginário.

O professor atravessou a rua caminhando calmamente. Como toda segunda feira na última década ele veio de frente com a entrada da loja e entrou e olhou os pianos. E então ele estancou. Estava agora de frente, travado com os olhos esbugalhados diante do majestoso Bösendorfer Imperial. Com as duas tampas abertas em toda sua glória.
Marco percebeu que as risadinhas à socapa de Moishe estavam vazando para o video.

-Shhhhh.  – Ele gemeu entre dentes.

Ali estava o professor diante do piano imperial. Ele então fez algo inédito. Ele olhou para Moishe com um olhar estupefato.

O idoso apenas acenou com um joinha, estendendo o polegar para cima, em riste, num discreto gesto de aprovação.
O professor se sentou na banqueta, diante daquele piano majestoso de 150 anos.

O velho Moishe sussurrou:

-É agora! Aposto que ele tá todo embananado tentando pensar no que tocar.

-Shhhh. Porra Moishe!

-Filma, filma!

-Tô filmando, merda.

O professor deslizou a mão numa carícia sobre as teclas de marfim. E começou a tocar a música.

Nas primeiras notas, Marco ouviu Moishe comentar:

-Ué, Chopin de novo? Esse piano merecia um Bach.

-Shhhh.

O professor estava executando “Fantasie Impromptu”, uma musica rápida com um monte de notas. A maravilhosa sonoridade daquele piano imediatamente congelou as pessoas que passavam em frente a loja. Em poucos minutos, uma pequena multidão se aglomerava para ver o professor e suas ágeis mãos deslizando nas teclas de marfim e ébano.

O som era divino. Especial. Conforme ele tocava, de olhos fechados, era possível notar o forte sentimento na execução da música. Seus dedos enrugados e ágeis deslizavam sobre as teclas com grande maestria. E foi quando algo inesperado ocorreu. Como numa perturbação das formas na superfície reflexiva de um lago, tudo ao redor do piano lentamente foi se tornando menos nítido, e conforme a musica avançava, com os dedos correndo de lá para cá sobre as teclas, havia como que uma bruma, que fazia as formas dançarem, se distorcendo gradualmente, num fantasmagórico espetáculo. As pessoas ao redor estavam se entreolhando perplexas, vendo que todas as superfícies pareciam ondular com a vibração que saía do piano imperial.
Marco acompanhava aquilo pela tela do aparelho celular, e imaginou que estivesse diante de um defeito na câmera, mas ao levantar os olhos por detrás do aparelho, percebeu que o celular funcionava normalmente. Ele ouviu a voz do patrão vazando para o video novamente: – Mas que merda é essa? – Sussurrou.

A perturbação nas formas e a bruma se intensificaram até que era completamente impossível entender o que se passava ali. Quando tudo começou a voltar ao normal, o professor não estava mais lá. Em seu lugar, estava outra pessoa.

Era um jovem rapaz, vestindo roupas estranhas, antiquadas, ele tocava a exata mesma melodia.

O jovem parecia não fazer ideia do que estava ocorrendo, pois ele tinha os olhos fechados, e estava sentindo o estado de fluxo com o qual a musica o encantava.
As pessoas ao redor estavam chocadas. E foi graças aos suspiros e exclamar de susto da plateia que ele despertou de sua concentração na música.

O velho Moishe e o Marco foram se aproximando, e viram que não se tratava de uma miragem. Não era mesmo o velho professor, mas um rapaz de seus vinte e dois anos, no máximo. O jovem abriu os olhos num susto, e pareceu espantado, tão espantado quanto eles.

Parou de tocar subitamente e e olhou ao redor. Eram agora os três homens dentro da loja, se olhando com os olhos arregalados, mais uma pequena multidão de umas doze pessoas, todas aglomeradas diante da porta da loja.

-Quem são vocês? O que fazem na minha casa? – Ele perguntou, num inglês polido.

E então olhou ao redor e parecendo enfim cair na real, perguntou: – Mas que lugar é esse? Aqui não é minha casa. Que brincadeira é essa? Como me trouxeram pra cá? Quem é essa gente?

-Calma, calma! – o velho dono da loja pedia, mais com medo do rapaz estragar o piano do que qualquer outra coisa.

Marco ainda filmava, sem saber direito o que estava acontecendo ali.

O rapaz se levantou de supetão da frente do piano. Ele olhou espantado.

-Este não é meu piano. Onde está meu piano? O que é isso? – Ele estava atordoado e ofegante. -É um pesadelo? Eu estou sonhando?

Ele saiu andando de costas e a multidão se dispersou para que ele passasse. Todos o olhavam intrigados e aquilo assustou demais o pobre jovem, que saiu pela porta aberta da loja, para estancar assustado diante de um entregador que passou de moto fazendo um grande barulho na rua.

Na porta da loja, Moishe e Marco Rossi ficaram parados, sem saber o que dizer.

-Que diabo de cavalo é esse?

O rapaz seguiu andando a esmo pela cidade. Tudo o assustava.

As Buzinas e o som dos caminhões de bombeiro passando estouraram em seus ouvidos. Barulhos de britadeiras numa obra e o som de carros e caminhões. O rapaz levou as mãos nos ouvidos e os olhos arregalados e saiu andando olhando para cima, horrorizado com os enormes edifícios que se alinhavam pela rua 72.

-Grande Lorde Jesus! Que abominação é essa? É o inferno! É o inferno!

Ele olhava para os altos prédios da cidade em estado de choque, saiu andando como se visse tudo que o cercava pela primeira vez.

O misterioso rapaz de roupas antigas parecia consternado e confuso, e após atravessar uma rua sem olhar, foi atropelado por uma van. A van se chocou contra ele num impacto seco, lançando-o a uns três metros. Ele bateu a cabeça no meio-fio de concreto.

Um homem russo saltou do carro e correu para acudi-lo. As pessoas vieram correndo de todas as direções.
O povo cercou seu corpo desfalecido no asfalto.

-Que maluco! Que maluco! – O imigrante russo dizia, com forte sotaque, tentando explicar aos curiosos que o jovem atravessou bem na frente do carro dele.

Logo a polícia chegaria para ver a confusão. Na medida em que a multidão aumentava, ia complicando cada vez mais o trânsito do centro.

-Ele deve ser usuário de drogas! – Disse uma senhora idosa, cheia de compras nas mãos.

-Ele tá fantasiado… – Alguém falou.

-Ele deve ser do teatro ali da rua de baixo. -Outro comentou.

Um homem se aproximou dizendo ser médico. Ele empurrou as pessoas e ajoelhou ao lado do corpo. Logo ele atestou a morte do jovem.

-Está morto. – Ele disse.

-Pobre rapaz.
Uma moça cochichou para outra: – Ah, que pecado, ele é lindo.

Tempos depois, o rabecão dos bombeiros resgatou o corpo e ele foi levado para o instituto médico legal.

Marco e Moishe fecharam a loja. Estavam sentados nos bancos dos pianos se olhando sem saber o que dizer. Foi Moishe que finalmente falou alguma coisa: -Mas que merda foi essa que acabou de acontecer, garoto?

-Eu também não sei, seu Moishe.

Impactados, eles fecharam a loja e foram para suas casas.

Horas depois, já em seu apartamento, enquanto comia comida chinesa numa caixinha,  Moishe estava vendo TV quando viu a notícia.

A matéria falava sobre o atropelamento naquela mesma tarde. O jornalista contava sobre um homem desconhecido, sem documentos que foi atropelado na esquina da Broadway.

Em seus bolsos, foram encontradas apenas moedas antigas e um pequeno dado de marfim, além de um relógio de algibeira de prata com as iniciais T.S.

As digitais dele não puderam ser localizadas nos bancos de dados da polícia.

Moishe pegou o telefone e ligou para Marco. Ele  estava no metrô, a caminho da casa de seu namorado quando o telefone tocou.

-Marco? É Moishe.

-Sim senhor?

-Marco… Sabe o rapaz do piano? O garoto que apareceu no piano? …Ele …Ele morreu!

-Morreu?

-A tv diz que foi atropelado.

-Virgem Maria! Pobre coitado. E agora?

-Marco, você precisa levar o video para o canal de Tv! Eles precisam ver isso! Você já subiu o video para o Youtube?

-Não seu Moishe. Não fiz o o upload do video para a internet porque vi que a gente poder vender a história por um bom dinheiro para o canal de tv!

-Hummm!  – Moishe ficou em silencio por um breve período.  – Sim, espera, espera. Não faz nada! Deixa que eu negocio!

-Eu posso levar o video até a CBS amanhã e…

-Não, não. Espera. Esse video vai valer ouro, rapaz! Ouro! Segura esse video, e não mostre pra ninguém! Nós vamos ficar milionários! Eu te ligo mais tarde. Vou telefonar para uns contatos. Vai pra casa e me espere lá!

Marco desligou o telefone. Abriu o video e começou a tirar prints da tela. Ele enviou pelo menos quatro prints para Rodrigo, seu namorado, pelo aplicativo de conversas.

“Rô, você não vai acreditar no que aconteceu hoje a na loja! Vê aí depois eu explico.”

Minutos depois, Marco desceu sozinho no Metro.

Enquanto subia as escadas para sair na estação, se viu cercado por uns caras mal encarados.

-Onde que a biba vai?

-Dá licença. – Ele pediu.

Logo, um sujeito entrou na frente dele e o empurrou.

-Ei, me solta.

-Tem que pagar o pedágio, boiola!

-Sai da frente, porra! Já falei.  – Ele tentou passar, mas inesperadamente um dos homens agarrou a mochila dele e outro o atingiu na cabeça com um taco de baseball. Foi a ultima coisa que Marco viu antes de cair desfalecido no chão.

Quando ele finalmente acordou, estava hospitalizado. Já havia se passado sete dias e ele estava com o braço fraturado.  No hospital, Rodrigo contou a ele que havia sobrevivido por sorte. A pancada havia gerado uma forte hemorragia interna que pressionou o cérebro.
O celular, a bolsa e o dinheiro haviam sido roubados.

-Mas você está vivo, e é isso que importa. – Disse Rodrigo.

Tempos depois, Marco já havia se recuperado o suficiente para voltar a trabalhar. Ele ainda estava com o gesso no braço esquerdo.
Desceu do metrô na esquina da 72 e correu ate a loja do senhor Alifi. Pegou o café do senhor Moishe e seguiu para a Steinberg Pianos. No caminho, encontrou a senhora Élise arrumando a loja.

-Bom dia, dona Élise.

-Ah, Marco, Marco, meu querido! Que bom te ver de novo, rapaz. Nossa, que pesadelo, hein? Eu soube pelo Andrew. Como você está? Precisa de ajuda? Quer alguma coisa?  Olha, se precisar de alguma coisa, fale comigo. Um dinheirinho emprestado? Tá precisando? Pode falar!

-Não, não, tudo bem… – Ele disse, envergonhado. Foi quando Marco notou algo peculiar na parede da loja.

-Ei… O que é isso?

-Ah, estamos arrumando, vai chegar uma cristaleira nova de 1917 hoje à tarde. Vai ficar apertado, mas vai caber!

-Não, não, espere… Espera aí… – Ele disse, entrando no apertado antiquário.

Marco seguiu através das dezenas de quinquilharias de todos os tipos e parou diante da parede repleta de quadros. Lá no alto, havia um quadro intrigante.

Logo Élise se aproximou dele.

-Ah, essa porcaria. Eu sei, eu sei.
-Mas o que é isso?

-Essa babaquice, né? Veja, Marco. – Ela puxou o quadro da parede e mostrou a ele. Era uma moldura pesada e trabalhada em detalhes dourados. No centro, havia a pintura de um homem.  Élise continuou a explicar.

-Isso aí veio junto num lote de um outro antiquário que nós compramos lá em Massachusetts, há uns dez anos atrás… Estava ali no sótão. Esse é um quadro antigo com algo entre 150 e duzentos anos e olha que palhaçada! Esse homem se pintou. Ele até pinta bem, mas maculou a obra antiga. O quadro original devia ser só o piano, como uma natureza morta, mas o homem se pintou por cima. Veja, pelas roupas dele que são roupas modernas.

Marco estava estupefato, não sabia o que dizer, diante dele, na pintura estava o professor, com seus trajes daquele dia, o paletó surrado e até o jornal, apoiado sobre o piano, com uma expressão tão misteriosa e interrogativa quanto Marco podia se lembrar.

Era inequivocamente, o professor.

FIM

 

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.
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Comentários

  1. Genial! Eu fiz questão de vir ler antes de fazer qualquer coisa (menos meu trabalho). Eu estou estupefato com o fato dessa história ter saído do seu subconsciente. É maravilhoso

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