O experimento Carlson – Parte 5

Morten Carlson correu pelo meio das bolotas ate chegar no local onde estava o globo branco brilhante. Era mesmo um corpo.  Estava emborcado, de bruços. Havia um emaranhado de raízes cobrindo boa parte do corpo repleto de bolotas de todos os tamanhos crescendo sobre ele. O restante estava severamente empoeirado pela areia do deserto. A sujeira certamente teria coberto o capacete se não fosse a forma e o polimento da parte metálica posterior.
Deu um grande trabalho arrancar as bolotas do corpo para poder movimentá-lo. Ele era pesadíssimo. Morten arrastou o corpo do jeito que deu, puxando pelas pernas. Como já estava morto mesmo, o defunto não iria se importar com o mau jeito.

O sol era tão forte que o ato de puxar aquele defunto se tornava uma missão hercúlea. Puxou o mais que conseguiu, para tetar sair pelo menos do amontoado de bolotas que estouravam soltando uma baba cremosa. O corpo ia passando sobre as bolas e estourando criando um arrasto desgraçado que tornava o esforço ainda mais penoso.
Morten ia puxando e parando para descansar. Depois teve uma ideia melhor. Abriu caminho para passar com o corpo chutando bolotas para todos os lados.  Isso ajudou.
ele finalmente conseguiu puxar o explorador morto pela perna até uma pequena “clareira”.  Sentou-se numa pedra para pegar um ar. O defunto jazia diante dele, ainda de bruços. Não havia nenhuma tag ou inscrição no corpo. Era estranho. O uniforme era um elemento à parte. As cores eram diferentes. Era um uniforme todo cáqui, com o capacete branco. Lembrava o traje espacial de Yuri Gagarin. A mochila era integrada ao traje, como uma espécie de casco de tartaruga, como nos EVAs do projeto apolo.
Quem seria aquele cara? Certamente era um explorador também. Se ele era um explorador, não tinha como não conhecê-lo.
Morten virou o corpo de barriga para cima. Era difícil pois o corpo estava rígido, e havia pressão de gases dentro do traje.

O visor do capacete estava completamente turvo. Ali dentro mal se via a face. Dava pra ver que o sujeito estava de boca aberta e o ressecamento do corpo expôs seus dentes, numa horrenda e grotesca careta.
Parecia uma múmia. Por isso, Morten resolveu batizar o corpo de “Ramsés”. Era um homem baixinho, com certa de um metro e sessenta e cinco, ou menos.  O traje era sob medida.

Uma coisa não fazia o menor sentido. Ramsés estava coberto de bolotas e raízes. As plantas cresceram sobre ele, o corpo estava também bem coberto de poeira, para estar naquele estado, Ramsés devia estar ali há muito tempo, mas se Morten havia sido o primeiro a atravessar para o planeta, como esse cara poderia ter morrido lá antes? Resolveu em seguida observar o traje. O painel de acesso ao computador pessoal estava danificado. A tela quebrada.
As coisas ficavam cada vez mais complicadas à medida em que ele investigava Ramsés. Olhou com cuidado o traje. A roupa de Ramsés parecia mais avançada que o dele.  Juntas elásticas nas dobras pareciam muito bem feitas, e o nivel de acabamento do traje era ótimo. As luvas pareciam ser de algum tipo de silicone. Ele também era mais justo, mais compacto, apesar da mochila tipo tartaruga não parecer uma boa ideia para um explorador que precise de mobilidade.
Morten olhou sob as botas. Encontrou uma única inscrição que trouxe uma pista sobre Ramsés: estava escrito “Made in China” na sola.

Ok, essa é uma inscrição que você vai encontrar em praticamente tudo hoje em dia, mas pelo menos ficava claro que Ramsés era da Terra.
Morten vasculhou com cuidado o corpo em busca de alguma coisa, e encontrou um pequeno bolso lateral a perna esquerda, onde havia um tipo de celular desconhecido. Parecia um smartphone, mas era mais fino. A espessura não passava de oito milímetros, e de um lado era uma tela e do outro uma chapa inteiriça de painel solar. O dispositivo tinha pequenos botões integrados na estrutura bem difíceis de acessar com a enorme luva dele, mas logo Morten descobriu que o dispositivo estava sem energia. Colocou com cuidado sobre a rocha com a face coletora de energia virada para o sol.

O vento soprou com força do deserto. Morten se deu conta que concentrado em Ramsés e seus mistérios, havia se descuidado do tempo. Já começava o entardecer e a noite chegaria rápido. Estimou que em quarenta minutos ou menos, o sol iria se por e a noite chegaria trazendo o frio consigo. O tempo de investigar o defunto estava se esvaindo rapidamente.
Morten tornou a virar o corpo de barriga para cima e analisou. A questão era: Quem poderia ser Ramsés?
Mas havia uma segunda questão entre as muitas que Ramsés trazia consigo. Como ele morreu? Havia tido um infarte? Teria sido envenenado? Defeito no traje?
Morten notou que como o dispositivo de controle do traje estava danificado, com uma enorme rachadura na tela, talvez Ramsés tivesse caído e batido o braço numa pedra, isso danificou o acesso ao traje e pode ter estragado o controle de gerenciamento de gases da roupa. Sem ela, Ramsés logo iria sufocar até a morte. Mas se foi isso, por que o desgraçado não tirou o capacete?
Morten tentou remover a trava do capacete mas ela estava agarrada. Parecia até soldada. Era estranho. A trava era completamente diferente da usada no capacete dele, embora em termos gerais, a roupa de Ramsés parecia uma evolução do traje dele.  Bater com uma pedra no vidro do visor não teria funcionado. O visor estava gravemente arranhado, e isso indicava que ele ate tentou fazer isso. Mas teria sido inútil. Aquele visor certamente era de “anacrolon”, um material à base de polímeros ultra-resistente e cristalino, criado pela Rodhia. Anacrolon era desenvolvido para resistir a qualquer pancada, explosão, tiro, ácidos, calor, frio, raios cósmicos, radiação… Enfim, um material super leve, caríssimo com um processo de fabricação tão sofisticado que levou quase uma década em desenvolvimento. Bater uma pedra nele era tão inútil quanto uma mosca tentar destruir um para-brisa de carro.

Se bater no visor não dava certo, Ramsés devia ter percebido isso e tentado destruir a trava, que era de metal aeronáutico. Ainda seria bastante resistente, mas estava claro que ficando sem ar, ele entrou em desespero e parou de raciocinar. Um erro fatal.
Morten pegou uma pedra de tamanho médio e tentou acertar a trava no angulo certo. Ela estava realmente emperrada.  Foi preciso umas dez batidas com toda força no encaixe da trava para deslocar a mola de posição e finalmente poder remover o capacete. Quando um silvo fino emanou do encaixe do traje, Morten percebeu que havia conseguido.
O cheiro de podre se elevou no ar.

– “Meu Deus,cara… O que você comeu para peidar assim, meu filho?” – Morten riu da própria piada, mas o fedor de decomposição era mesmo de lascar.

A luz do sol chegou ao fim. Já não se via mais nada. A noite estava vindo com tudo. O explorador ativou a lanterna. Removeu o capacete com cuidado e a cabeça de Ramsés bateu no solo com o som de um coco. Iluminado pela lanterna, a expressão grotesca de Ramsés era ainda mais sinistra. Usava uma touca creme de proteção térmica. Os cabelos eram pretos e lisos. Ramsés morreu gritando de pavor. A pele estava completamente ressecada, parecia mais uma estátua que uma pessoa morta. A cor era de um marrom-chocolate quase preto. Os olhos rasgados não deixavam duvida que ali estava um chinês. Ramsés estava mais pra Bruce Lee.  Morten Carlson largou Ramsés caído no solo e voltou-se para o aparelho sobre a pedra. Tentou ligar. Notou que estava trêmulo, pois mal conseguia segurar o aparelho para ativar. Era o frio. A temperatura estava caindo rapidamente.
Morten guardou o aparelho no bolso.  Precisava sair dali. Ventava muito perto das pedras e isso fazia com que o vento canalizado pelar cordilheira acentuasse o frio.
Seguiu à diante, abrindo caminho com chutes nas bolotas em direção à montanha. Certamente deveria ter alguma caverna para se abrigar.
Algum tempo depois, Morten encontrou uma fenda em que podia se abrigar do vento. Estava repleta de bolotas e de uma coisa que mais lembrava um tipo de fungo. Essa coisa era levemente brilhante à escuridão, emitindo uma fraca luminescência esverdeada. Brotava como prateleiras da rocha.
Morten recostou-se na pedra e retirou a mochila. Dela tirou a manta térmica e se cobriu. O frio era horrível, mas pelo menos o traje estava dando conta do aquecimento. Morten ficou olhando os fungos brilhando na escuridão abissal da fenda e pensou: “Será que essas merdas pegam fogo? Uma fogueira agora não seria nada mal”.

Pegavam. E bem. O micro-maçarico era um item importante do equipamento de sobrevivência. Com toda tecnologia embarcada em seu traje, quem diria que o fogo, o melhor amigo do Homem, o que nos fez sair das árvores para dominar a face da Terra e agora, até outros planetas, poderia ser tão fundamental?
Aparentemente os fungos brilhosos pegavam fogo bem, mas as bolotas, não.  Morten também descobriu que os fungos ressecados queimavam melhor. Certamente havia ali algum tipo de resina, parecida com as das coníferas, que estimulavam as chamas. Mas embora queimassem rápido e com grande geração energética, logo o fogo se apagava, porque a resina era inteiramente consumida. Os fungos novos demoravam para queimar, mas geravam uma chama mais duradoura que os secos.

O calor do fogo gerou uma sensação tão boa de familiaridade com a Terra que Morten pôde desligar as lanternas do traje e se dedicar a investigar melhor o dispositivo de Ramsés. Que segredos o aparelho revelaria? Com a potencia do sol, duas bolinhas luminosas na lateral indicavam alguma carga. Após alguns segundos a tela se acendeu. Um logotipo misterioso surgiu na tela. Era uma espécie de bola com uma estrela. Sob ele, uma coisa escrita em chinês toda em vermelho.
Algo piscava na linha debaixo. A pela se apagou. Em seguida surgiu um monte de coisa escrita em chinês.

-Maldição! Não entendo nada! – Morten Carlson gemeu. Lembrou de uma amiga, Chen Lam, que ele conheceu numa festa. Chen era dona duma floricultura e falava chinês fluente. Morten havia tido um pequeno Affair com Chen, mas o relacionamento não engrenou porque Chen odiava sexo.

Morten ficou tentando encontrar alguma pista nas telas.  A maioria do texto lembrava bastante um tipo de diário do explorador. Talvez fossem as experiências de Ramsés no planeta, transcritas para uso futuro. Estava claro para Morten que a mesma transmissão que as antenas do Chime, um radiotelescópio poderoso haviam recebido, os chineses também tinham recebido. De alguma forma, talvez por espionagem, a China poderia ter descoberto os planos para a construção do Rovotron. O mais estranho era como a China teria conseguido tantas informações sobre o projeto para ser capaz de enviar o Ramsés, pois segundo diziam no buraco – os segredos do projeto estavam bem acima do nível de acesso dele – muito da construção do Rovotron teria sido descoberto a partir de diagramas gravados numa série de discos de ouro descobertas num túmulo no Peru. A localização desse túmulo, conforme a “lenda” que corria entre os membros do projeto, teria sido descoberta após uma transmissão de rádio alienígena ser captada pelo radiotelescópio chamado “Chime”.

De fato, O Chime era um radiotelescópio localizado em um vale na Colúmbia Britânica, no Canadá. O Chime começou captando pequenas rajadas FRB  (rajadas rápidas de rádio).  A maioria das rajadas FRB apresentavam sinais de dispersão, que é um traço que pode ser explicado por objetos astrofísicos poderosos em locais específicos, como no centro de uma galáxia ou nas partes mais densas e emissões de  restos de uma supernova. Mas os FRB que deram origem ao projeto, eram diferentes.  Suas frequências eram  estranhamente baixas. Ao contrário das FRBs normais, com 1,4 mil megahertz, as NFRB´s como passaram a se chamar,  giravam em torno dos 800 MHz. Sete delas bateram a marca de 400 MHz, frequência mais baixa em que o Chime operava.
Os dados recebidos logo se revelaram um tipo de codificação matemática de base sete e foram agrupados. Uma extensa análise dos dados usando supercomputadores teria finalmente ordenado o conjunto de informações codificadas e revelado que se tratava de coordenadas geográficas. Durante muito tempo essas coordenadas foram imaginadas como sendo o ponto no espaço de onde proveriam os aliens, mas nada era localizado lá. Somente quando alguém sugeriu que em vez de buscar no espaço, as coordenadas podiam estar apontando um local da Terra que a coisa avançou.  Essas coordenadas indicavam um maciço rochoso no Peru.  Inicialmente se levantou a hipótese de que as coordenadas indicariam o local para um contato extraterrestre formal. Mas expedições enviadas para o local, não viram nada de diferente acima da Terra. Foi frustrante, mas não tardou a descobrirem que os segredos que se esperavam virem do espaço já estavam aqui. Enterrados. Há milênios!

Morten Carlson continuou a investigar as paginas repletas de chinês quando enfim clicou num botão que abriu um mapa. E logo ele conseguiu reconhecer o grande macico rochoso. Morten avaliou com atenção o mapa. Viu o deserto e tudo mais. Avançou mais e mais e perplexo, descobriu que as montanhas não eram montanhas. Eram a borda de uma cratera colossal. Nela, vários pontos estavam marcados de vermelho, que Morten pensou que poderiam se tratar dos pontos em que Ramsés havia estado, mas havia pontos amarelos. E num deles, um pequeno desenho de uma barraca de camping. O que seria aquilo? Uma base?

– …Uma fucking Base?

CONTINUA 

 

Receba o melhor do nosso conteúdo

Cadastre-se, é GRÁTIS!

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade

Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

Artigos similares

Comentários

  1. Mano, ce é foda, seus contos são impecáveis em pesquisa e a própria história.
    Não pare de escrever nunca, vc não perde em nada desses famosões aí da literatura.

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

Últimos artigos

Gripado

O dia da minha quase-morte

Palavras têm poder?