O experimento Carlson parte 19

Morten Carlson desceu a colina, tentando não cair. A perna dava umas fraquejadas inesperadas e por isso, ele ia se apoiando nos braços quando o solo tinha uma inclinação forte.
Após a descida, era preciso vencer cerca de cem metros de caminhada penosa até chegar a construção.
Carlson estava tão focado em atingir a base do Ramsés que esqueceu da bola por vários minutos. Quando finalmente pensou em olhar para trás, não viu mais a esfera.

Ela não estava mais na beira da colina. Talvez até ainda estivesse ali, mas em algum canto em que as estrelas não davam boa visibilidade.
Carlson tentou olhar pra ver se a bola havia descido atrás dele, mas não encontrou nada. Além disso, a escuridão o impedia de ver qualquer coisa abaixo do horizonte. O frio era agoniante. O vento ali em baixo era um pouco mais ameno, mas o buraco onde os chineses montaram a base, provavelmente uma cratera pequena antiga, já carcomida pela erosão dos ventos do deserto, parecia ainda mais frio.
Ele avançou com pressa em direção a base. Avançou cerca de cinquenta metros e parou. Algo estava errado. Ele precisava pensar.
O frio o deixava tonto e confuso, mas uma fagulha de pensamento o deteve.


A base chinesa era rodeada por um sistema de postes altos, que terminavam em uma espécie de antena, cada um com uma luz vermelha em cima. Desses postes haviam poderosos refletores iluminando a base. As luzes estavam voltadas para dentro, e não para fora. Era estranho. Era incomum.
Carlson tremia feito uma vara verde, com os braços cruzados sobre o peito, os ombros encolhidos, o corpo recurvado para a frente. Seus olhos estavam embaçados. A dor de cabeça era terrível. Eram os efeitos claros da hipotermia e ele sabia disso. Mas apesar de tudo, ele também sabia que estava num planeta desconhecido, e já havia tido contato com as formas de vida esquisitas do lugar.
“A base tem que ter um sistema de proteção”. – Ele pensou.

Invadir o perímetro certamente desencadearia algum tipo de protocolo de defesa, que poderia matá-lo.
Assim, mesmo quase morto de frio, Carson andou lateralmente, tentando se aproximar de uma das torres. Destacava-se um grande domo geodésico recoberto de painéis solares de alto ganho, no que parecia ser o centro do complexo. Ao redor da base, toda branca, tinham postes pretos altos. Havia uma placa numa deles com coisas escritas em chinês que ele não sabia o que significavam. Certamente, era algum tipo de alerta.


Os postes estavam posicionados de forma equidistante, dando a volta na base. Não havia nenhum fio ou cerca ligando-os. Em cada poste havia câmeras apontando para a base. Então ela era monitorada. Não era preciso saber chinês para saber isso. Carlson tentou verificar se algum dos postes continha qualquer tipo de armamento, canhão, metralhadora ou algo do tipo para impedir invasores, mas não encontrou nada assim pendurado nas torres. Se esses armamentos de defesa estivessem ali, certamente estariam virados da base para fora, o que faria algum sentido, já que se o tiro viesse do poste para dentro fatalmente poderia perfurar a parede da base comprometendo a segurança.

Infelizmente, a base de Ramsés era longe demais para ver detalhes nesse grau.

Carlson pegou uma pedra média no chão e lançou para dentro do perímetro iluminado. A pedra quicou no chão e parou.
Nada aconteceu.
O vento começou a aumentar sua força. A tremedeira era tão violenta que Morten Carson mal conseguia ficar de pé.
Carlson começou a gritar por socorro ao lado da torre. Gritou até não ter mais forças, mas nada aconteceu. Nenhuma luz acendeu, nenhum alarme tocou, nada diferente aconteceu.

-Ah, que se dane. – Ele gemeu, quase sussurrando.

Carlson entrou no perímetro, mancando e avançou para a base, esperando que um tiro viesse a qualquer momento.

Mas nada aconteceu. Ele continuou a mancar e avançar lentamente para a base, até que enfim, um alarme disparou. Um alarme alto. As luzes aumentaram de intensidade.
Carlson parou e levantou os braços. “Agora fudeu!”
O alarme vinha dos postes ao redor da base. De fato, havia algum tipo de monitoramento de segurança.
Ele ficou ali com os braços para o alto a espera de alguma coisa, mas nada acontecia além do alarme alto tocando sem parar. Seus dedos estavam dormentes com a friaca, e ele baixou as mãos e tornou a cruzar os braços.
Voltou a avançar, um passo por vez. Havia alguém monitorando seu avanço, com certeza. Aquele alarme altíssimo não dava para passar desapercebido por quem estivesse de guarda.
Ele chegou finalmente perto da parede da base e ela parecia lacrada. O alarme tocava sem parar, irritante. Ele começou a dar a volta na instalação. A primeira entrada que achou estava lacrada. A segunda também, e assim ele foi, andando e se apoiando nas paredes. Quando conseguia, gritava por socorro e pedia ajuda.
Mas a ajuda nunca vinha.

Carlson continuou a dar a volta na base e então encontrou uma porta de acesso, e ela estava aberta!

Era uma comporta de acesso a um módulo lateral do complexo. A parte de fora estava aberta, mas a interna estava lacrada. O interior estava cheio de areia, indicando que aquela comporta estava aberta há muito, muito tempo.
Uma alavanca na parede fez com que a porta externa se fechasse atrás dele. Aquilo atenuou enormemente o alarme lá de fora. Apesar do frio persistir, o barulho do alarme diminuir foi um bom alívio para quem já estava com dor de cabeça.
A porta interna tinha uma pequena janelinha comprida no canto que permitia ver o interior a instalação. Ela estava ativa. Dava para ver uma luz piscando lá dentro e a luminosidade azulada que certamente vinha de monitores em uma sala.
Carlson esmurrou a porta, bateu até cansar. Mas ninguém apareceu.
Na porta de acesso interna havia uma alavanca exatamente igual a que ele puxou e lacrou a passagem externa. Era obvio que puxá-la faria a segunda porta se abrir, mas essa alavanca parecia danificada. Ele movia de um lado para outro e nada acontecia. Talvez estivesse com defeito ou operando de modo diferente.
Sob essa alavanca, diferente da outra alça de fechamento da porta externa, havia um painel com coisas incompreensíveis escritas em chinês.
Certamente nesse painel é necessário entrar com uma senha.
“É uma ideia estúpida colocar senha de acesso num planeta desconhecido”. – Ele pensou.

Morten investigou com cuidado o painel. Ao lado do mesmo, ele notou uma fina greta, como um pequeno corte de uns dez centímetros. Era um local para enfiar um cartão. Imediatamente lembrou-se dos cartões que roubou de Ramsés.
Ele abaixou-se e tirou a mochila. Os cartões estavam num plástico num compartimento lacrado. Ele os removeu, tentando conter a tremedeira. Seus dedos estavam com pouca sensibilidade, era como se tivesse tomado uma anestesia.
Enfiar cada cartão dentro da greta se mostrou um desafio de coordenação. O primeiro não fez efeito algum. Alavanca pra lá, alavanca pra cá, e nada.
O segundo cartão também não fez efeito algum.
Finalmente, o terceiro cartão enfiado na greta fez uma luz verde acender no canto esquerdo do painel escuro e alguma coisa se iluminou no painel acima. Era um símbolo com uma estrela e uma espécie de raio passando atrás.
Um som de tranca ecoou na cabine de acesso e o som de um escape de gás surgiu sob seus pés, levantando uma nuvem de pó que fez Morten tossir.
A porta se abriu. Morten entrou na base. Estava quente ali dentro. Ele entrou tossindo e caiu no chão. A porta trancou atrás dele assim que passou.
Carlson estava exausto. Fraco demais para pedir ajuda, mas mesmo assim, gemeu por socorro. Ninguém apareceu.
O explorador ficou deitado no chão, apenas descansou. Esperou o calor do ambiente descongelar o suor de seu rosto. Seu nariz ardia. Suas orelhas ardiam muito. Ele não ia conseguir se levantar tão cedo.
Ficou ali, deitado no chão. Sua mente estava confusa. Um sono insuportável começou a se apoderar dele.
A base tinha um cheiro muito ruim de mofo e azedo. Talvez fosse cheiro de gás.
-Socorro, socorr… – Ele gemeu, mas era inútil. Resolveu poupar os esforços. A instalação, pelo menos a parte que ele entrou, parecia que estava abandonada ou lacrada.

Lentamente, o calor do ambiente começou a fazer efeito. Ele já não tremia mais.
Com sacrifício tentou se levantar, mas não conseguiu. Apenas se sentou, com as costas na parede do corredor. Só então ele notou que o alarme externo havia sido desligado. Devia ser um sistema automatizado, baseado em detecção de movimentos.
Carlson ficou ali incontáveis minutos, tentando recuperar um pouco de suas forças. Sentia muita sede, muita fome. Seus lábios estavam rachados. Com o calor da base, o gelo que recobria sua boca derretera e as feridas estavam doendo muito. “Onde está a equipe da instalação?”, ele se perguntou mentalmente. Talvez tivesse saído às pressas. A base não tinha sinais de destruição, não parecia ter sido atacada em parte alguma. Carlson sabia que numa instalação dessas nunca sai todo mundo, a menos que haja uma evacuação. Deveria ter alguém.
Com grande esforço, ele se levantou e seguiu pelo estreito corredor. O corredor dava acesso a três salas. A primeira parecia ser um laboratório. Viu microscópios e computadores bem estranhos. Maquinhas que não entendia a finalidade. Notou amostras de rocha em tubos de vidro. Viu também tubos com vermes e pedaços de criaturas algumas já tivera o desprazer de conhecer, outras eram novidade. Havia, inclusive, um tipo de viveiro na parede, com fungos e algum tipo de vida vegetal com forma de ervilhas, que lembravam as ervilhas gigantes que vira no local da descoberta do corpo de Ramsés. Havia também pranchetas e cadernetas com coisas escritas em chinês.

O outro cômodo parecia um refeitório. Havia geladeiras e potes de comida. A comida estava nos potes repletas de mofo. O que não tinha mofado estava azedo. Isso indicava que a instalação tinha sido evacuada às pressas.
Morten começou a imaginar um filme na cabeça. Talvez Ramsés tivesse enviado um pedido de ajuda, um SOS quando se perdeu. Todos saíram da base para tentar salvar o membro da equipe e… Morreram no caminho. Mas mesmo numa situação dessas, não sairiam todos por uma simples questão de logística. Alguém precisa dar apoio no background, organizar a operação do resgate, proteger a instalação.
Ao lado da refeição apodrecida na tigela, Morten viu algo que chamou sua atenção. Era uma lata preta, mas mesmo com tudo escrito em chinês, ali estava uma coisa ele saberia reconhecer até debaixo d’água. Até em outro planeta:
Morten puxou o pequeno anel e um som de gás ecoou na sala: “Tssssss…”
Ele bebeu. Era Coca-Cola.

Sua felicidade de beber um refrigerante da Terra foi tamanha, que Morten chorou. Lembrou de sua infância. Até aquele dia, a melhor Coca-Cola que havia tomado foi uma lata de comemoração de seu próprio recorde na máquina de pimball num fliperama da vizinhança.

Após beber o refrigerante até sorver sua última gota, Carlson seguiu para o próximo cômodo. Era um tipo de alojamento, com camas em beliches nas paredes. As camas ficavam em nichos, iluminados com uma forte luz branca. Era um cômodo bem grande. Esses nichos estavam organizados nos dos dois lados da parede, seis de cada lado. Assim, Morten supôs que a instalação comportaria pelo menos quinze pessoas, porque certamente haveria turnos, e não parecia haver nomes ou qualquer indicativo de propriedade em cada nicho. Escadas em tubos de metal amarelo permitiam o acesso aos nichos de cima. A única indicação visível era que cada nicho estava numerado.
Morten saiu do alojamento e caminhou pelo corredor no sentido contrário. O acesso estava trancado. Era provavelmente o acesso ao domo geodésico central. Seu estômago roncou de fome.
Morten Carlson voltou até o refeitório. Devia ter comida em algum lugar nos armários. No caminho de volta, ele notou que uma porta discreta na parede havia passado desapercebida. Era um… Banheiro. Um banheiro normal. Igualzinho os da Terra, mas imaculadamente branco.

Morten Assustou-se com a imagem que viu refletida no espelho do banheiro. Ele estava um caco! A barba crescida, a boca cheia de feridas. Parecia magro, cadavérico. Despiu-se com grande dificuldade. A figura refletida no espelho da parede não se parecia com ele. Um molambo desgraçado. Seu corpo, antes musculoso e atlético, era agora uma pálida carcaça com cortes, arranhões e roxos para todo lado. Seu joelho parecia uma bola. Viu um edema enorme na perna esquerda. Seu pé estava meio roxo. Com um banho quente, sentiu-se um pouco melhor. Sob a água quente, esqueceu por breves minutos que não estava no conforto do seu apartamento na Terra.
Saiu do banho e pegou uma das toalhas que estava pendurada na parede. Uma toalha preta, muito macia.
Secou-se e saiu a procura de uma roupa. Finalmente achou uma no dormitório da instalação. Painéis embutidos na parede frontal do dormitório revelaram conter roupas de cama, travesseiros e num deles, um monte de macacões de um material elástico, parecido com elastano, mas com o toque de uma flanela. A roupa exercia uma certa compressão, que no início incomodava, mas logo ele a esqueceu.
Deitou-se para descansar num dos nichos da parte baixa. Nicho 002. Um pequeno botão esférico na parede desligou a luz do nicho.
Morten colocou as mãos doloridas em seu peito, respirou fundo…. E resolveu dormir profundamente.

Antes que pegasse no sono, Carlson estranhou. Havia uma coisa roçando em sua perna. Abriu os olhos e deu de cara com uma criatura similar a uma aranha esquisita e preta, agarrada em seu joelho. O bicho estava bebendo na poça de sangue que jorrava de seu joelho inchado.

Carlson gritou e deu um pulo na cama. Era um sonho. O joelho continuava inchado, mas não tinha bicho algum. Era um pesadelo. Ele estava ensopado.
Imediatamente, olhou para o lado e deu outro grito. Dessa vez, de susto.

Parada, diante dele, com os braços cruzados e uma expressão pouco amistosa, estava uma mulher oriental de aproximadamente uns 60 anos. Era o primeiro ser humano vivo que ele encontrava no planeta.

Assustado, ele perguntou a ela:

-Quem… Quem é… Você? –

CONTINUA


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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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