quinta-feira, dezembro 12, 2024

O Experimento Carlson parte 14

O frio era crescente. Carlson tentou desesperadamente reiniciar o computador do traje, sem sucesso. Seria necessário retirar o traje, desmontá-lo para encontrar a razão do problema. Os sistemas auxiliares também estavam inoperantes, o que parecia indicar uma falha profunda no modulo de aquecimento. Pra piorar essa falha comprometera a eficiência do sistema de geração de água na mochila.  Mexer as mãos estava se tornando cada vez mais difícil. Os dedos pareciam estar agarrando. Ele sabia que as extremidades seriam as primeiras a pagar o preço do defeito no controle de temperatura. A grande planície que se estendia diante do labirinto de pedras roladas canalizavam o vento, miseravelmente, inclemente e constante.

Carlson se escondeu atras de uma pedra grande o suficiente pra bloquear o vento. O som produzido pelo ar passando entre as rochas era uma zoeira insistente.
Tentou se enrolar mantendo seu corpo o mais junto possível. Carlson não era mesmo uma pessoa de sorte. Para seu azar aquela noite prometia ser uma das mais frias. Sem o microclima estabilizado do interior da cratera, ele estava a mercê do frio. Cogitou voltar, subir de novo a montanha até a caverna e tentar passar a noite lá, mas seria uma subida ingrata, por laves soltas e pedras escorregadias. Ele já tivera sua dose de acidentes da semana e não pretendia arriscar subir de noite para a caverna. Fora que talvez o lacraião ainda estivesse por lá…

Conforme o vento sacudia aquela incrível pelúcia de vegetais que se assemelhavam a algas filamentosas da Terra, mas de cor roxa e púrpura, elas formavam fiapos compridos que se sacudiam em movimentos serpentiformes.
Morten arrancou com as mãos um punhado que estava perto de sua perna. Eram bem fortes, lembravam fios de cabelo. Eram apenas um pouco mais espessas que seu próprio cabelo. Estruturalmente formavam raízes, que se espalhavam em padrões de ziguezague poucos centímetros sob a terra. Sua forma de expansão era similar a grama da Terra, sem flores, sem nenhum indício de reprodução. Talvez por esporulação, como as antigas plantas da Terra como as samambaias. Apesar da hipótese, ele não encontrou qualquer indício de núcleos esporulantes nos fios, o que o levou a imaginar que talvez essa planta se espalhasse formando chumaços arrancados pelo vento que acabavam voando e se prendendo no solo, e ali se espalhando. Isso poderia explicar essa solução evolutiva dos fiapos finos. Mas e a cor roxa? Diferente das ervilhas gigantes do outro lado da cratera, esses “cabelos” roxos eram intrigantes. Possivelmente o roxo era produto da antocianina, mas o que intrigava mesmo era esse tipo de vegetal adaptado ter raízes pouco profundas. Morten Sabia que no deserto, as plantas costumavam ter soluções para captação de líquidos e a mais obvia eram as raízes profundas. Como os cabelos eram rasteiros, deviam pegar a água de alguma outra maneira, talvez filtrando a umidade do ar, por meio de uma “rede” de fiapos embolados.

Foi olhando para o pequeno chumaço de cabelinhos roxos em sua mão endurecida pelo frio, que Carlson teve uma ideia para salvar sua própria vida: Fazer uma fogueira daquele treco!
Com dificuldade ele se abaixou e começou a puxar mais e mais fiapos, formando uma pequeno amontoado deles. Sacou o mini-maçarico do bolso e tentou acender. Para sua tristeza, o troço simplesmente não pegava fogo. Era como tentar botar fogo na cortiça. Eles ficavam pretos onde a poderosa chama atingia, soltavam uma fumacinha preta fedorenta, mas não havia chama.
-Maldição. – Morten gemeu com sua foz trêmula.
Ele sabia o que estava acontecendo. Provavelmente a planta alienígena tinha um gene similar ao da cortiça, produto da casca do Sobreiro, que é usada para fazer rolhas de garrafa. Na Terra, a cortiça também não pega fogo. Dizem que a cortiça surgiu porque havia muitos incêndios no Mediterrâneo e foi a própria árvore que criou aquela película cheia de ar em forma de defesa, como uma espuma. Carlson sabia que a cortiça é composta em 27% de um material chamado lenhina, que é isolante térmico. Provavelmente esse fiapo desenvolveu algum tipo de revestimento celular de proteção térmica similar. Talvez o clima seco e de rápida amplitude térmica do planeta misterioso tivesse levado a planta a se proteger de incêndios ou… Uma forma de conservar sua temperatura no calor e no frio!

E foi assim, simplesmente pensando, que Carlson conseguiu uma forma de sobreviver. Se a planta tinha evoluído para sobreviver ao calor e ao frio, parecia logico que se cobrir com um monte daqueles fiapos, ele teria um tipo de cobertor. Era mais ou menos a solução do Han Solo para salvar a vida de Luke em Hoth.
Logo, Carlson estava vagando por entre as pedras recolhendo enormes chumaços de fiapos roxos. Foram algumas horas de trabalho duro num frio absurdo, mas valeu à pena. Logo seu “cafofo” protegido do vento entre as pedras estava pronto. Uma especie de iglu roxo. Uma montanha enorme de fiapos. Carlson se meteu ali no meio e puxou a montanha sobre si. O bolo de fiapos o cobriu.
Não demorou para que a temperatura se elevasse e ficasse incrivelmente confortável e macio.
Carlson dormiu rápido.

Apesar de todo o conforto, talvez pelo barulho do chiar do vento incessante através das pedras, ele sonhou com ambulâncias. Era um monte de sons confusos, e pessoas falando. Sangue, luzes brilhantes e gritos. O som da sirene da ambulância constante. Ele sentia dor. Sua barriga e cabeça doíam. Sentiu o gosto metálico do sangue na boca. Tinha vontade de vomitar. De pedir socorro. Tentou respirar, o ar não vinha. O peito chiava. As luzes e os barulhos. Alguém o sacudia. Ele ouviu um choro de mulher e vozes ecoando ao longe: “Ele está morrendo!”
O barulho chegou a níveis insuportáveis em seu sono e então ele viu imagens de si mesmo pedalando sua bicicletinha montanha abaixo em direção ao píer.
Acordou assustado com a voz: “Estamos perdendo ele. Estamos perdendo. Ele vai…”

-Puta que pariu! – Acordou gritando e se sacudindo. Os fiapos estavam todos embolados em cima dele. Se agitou e tentou se soltar daquele enorme bololô.

A ideia tinha sido um sucesso, tirando a parte da coceira: De fato, os fiapos eram excelentes isolantes térmicos, mas deram uma coceira nele que deixou seu pescoço quase em carne viva.  O dia estava amanhecendo. Ainda era frio, mas lentamente a temperatura iria subir até chegar numa boca de inferno desgraçada.  Carlson olhou para o monte de fiapos arrancados e pensou que se tivesse tempo a perder seria uma boa ideia sentar ali e trançar aquilo tudo para formar um tipo de coberta.  Mas a ideia era inviável, não só pelo tempo que ele não tinha, como principalmente para a habilidade manual, que não era seu forte. Nunca foi.

Morten Carlson olhou para o céu, o azul misturado aos primeiros raios do alvorecer formavam um fundo cor de rosa, meio lilás que se unia ao enorme tapete felpudo roxo. Uma paisagem incrível. Ele fotografou aquela visão mentalmente e seguiu em frente. Sabia que se não consertasse o gerador de água logo, quando o calorão chegasse, aquele poderia ser seu último dia no planeta misterioso.

Carlson sabia que sem água para beber e se alimentar, o gasto energético de vagar no planeta misterioso logo drenaria suas reservas. Seu plano de encontrar o abrigo chinês precisou ser deixado de lado. Agora era fundamental encontrar abrigo e água.  Ele escalou uma das pedras e olhou ao redor. Do alto o que via era um grande vazio. As montanhas das bordas das crateras atrás de si eram a unica elevação considerável em quilômetros e quilômetros de planeta.  Seguir reto significaria estar bem no meio de uma planície sem sombras para protegê-lo do sol durante o dia e o pior: do vento quando a noite chegasse.
Carlson sabia que em um dia, em condições normais, em terreno plano, conseguiria percorrer cerca de 40km até a noite fria inviabilizar seu avanço.

Olhando em 360 graus de onde estava, considerando que não pretendia voltar à cratera, suas melhores chances seriam seguir para sudoeste de sua posição, onde uma série de colinas distantes pareciam contrastar com toda a planície esturricada dos arredores. As colinas poderiam estar ocultando algum abrigo. Elas pareciam grandes dunas ao longe. Talvez ao descer por entre as elevações do terreno, ele escaparia do açoite do vento. As ondulações também pareciam mais promissoras para escavar e tentar achar água.

Assim, Carlson pôs seu corpo dolorido em marcha. Pretendia chegar ao anoitecer nas colinas.

A janela de conforto térmico foi mais curta do que previu inicialmente. Começou a mentalmente refazer as contas. Talvez com defeito no arrefecimento do traje e o gerador de água, sua capacidade de avanço se reduzisse pela metade ou talvez em 40%. Quanto mais andava chutando pedrinhas, mais distantes as colinas pareciam. Agora elas flutuavam com o efeito do calor. O sol já havia raiado e começava a se suspender, alto no céu.  O bafo quente parecia vir de todos os lados.

Resolveu cantar “We are champions” do Queen para distrair sua mente dos pensamentos negativos que insistiam em pegar carona em seu progresso. Cantava cada verso entre arfantes respirações. Depois não teve mais como cantar. Cantou mentalmente. A boca seca. Tentou extrair água da mochila. O sistema só liberou o que parecia preso nas mangueiras.  Estava engasgando.
Morten bebeu cada gota sabendo de sua importância. O sol estava a pino. Sua sombra  funcionava como um relógio soltar. Continuou a prosseguir, parando de vez em quando para sentar no solo pedregoso onde tentava acumular forças.

-Planeta desgraçado. – Disse, tossindo.

Pensou que talvez não fosse conseguir. As colinas estavam longe, muito longe. “Eu daria tudo por um  moto de cross agora”.

Olhou sua própria sombra. O sol era tão rápido em sua passagem no céu, que se ele ficasse olhando fixamente para uma pedrinha aleatória escolhida no chão, logo a sombra chegava nela.

Ficou ali olhando a pedrinha e sua sombra que lentamente avançava, ameaçadora sobre a diminuta bolinha de rocha, quando a bolinha deu um pulo. Era um novo terremoto chegando. O solo balançou. Carlson se colocou de pé. O chão deu uma boa sacudida, de um lado para o outro e então os tremores se reduziram, e pararam.  Pensou que talvez o planeta estivesse mandando ele trabalhar.  Riu do próprio pensamento idiota e colocou-se novamente em marcha.

Seguiu por mais duas horas de caminhada. Tentava manter a mente vazia, e focar no avanço. Era preciso um grande controle mental para não pirar e tirar a rupa. Sua vontade era de ficar pelado. Mas com certeza isso significaria a morte.  Enfio, a tarde veio caindo e o avanço se tornou melhor.  Era mais confortável andar na janela que antecedia o por do sol e o amanhecer.  Ainda havia bastante luz, e o vento era menos como a saída de ar de um forno industrial. Morten sabia que logo essa brisa agradável iria se acentuar e baixaria de temperatura ate chegar num sopro agoniante, como o sopro congelante do Super-Homem.

Apesar do aumento progressivo do conforto térmico na jornada, era seu corpo que parecia começar a se recusar ao avanço.  Cada passo já começava a parecer um desafio. Ele sentia uma esquisita dor perto da bacia. Horas antes chego a cogitar ser alguma dor muscular por ficar abaixado muito tempo cortando grama fiapenta roxa, mas com o passar do tempo, a dor foi ficando mais incômoda. Parecia vir do acetábulo do fêmur na bacia. Talvez sua queda da montanha tivesse sido mais séria do que imaginou.

A dor foi aumentando mais e mais ao ponto de começar a parecer insuportável. A noite tinha chegado – e com ela, o frio. O frio vinha aumentando rapidamente. Apesar de tudo, as colinas agora estavam incrivelmente próximas.  Carlson já visualizava suas ondulações contra o céu de estrelas.

Estava prestes a enlouquecer de dor e cansaço. Então, pareceu-lhe que estava a ouvir um som diferente do ruído constante do vento. Era uma risada.

Tinha alguém rindo.

-Quem está ai? – Ele gritou.

Não houve resposta. O riso havia parado.  Agora nem certeza ele tinha de que havia realmente ouvido o tal riso. Talvez fosse sua mente sem água já começando a pregar peças.

-Tem ague aí? Socorro! – Ele gritou.  Mas foi inútil.

Carlson se preocupou mais ao perceber que talvez tivesse mesmo dado uma rápida alucinada.

A colina vista de baixo parecia enorme. Seria uma cansativa subida. De perto ela era mesmo como uma duna de pequenos pedriscos escuros. Ele se abaixou e pegou uma. Era vítrea. Carlson colou a pedra escura diante do refletor do traje. Era obsidiana. Rocha ígnea de vidro vulcânico. Ver obsidiana no solo não era nem de longe um bom sinal. Morten sabia que como vidro vulcânico a obsidiana ocorre em formações de lava caracterizados por taxas baixíssimas de umidade local. Se em vez de obsidiana ele encontrasse pedras-pomes estaria mais feliz.
sentou para descansar. O vento frio cortante o apunhalava por trás. Suas orelhas pareciam que iam cair de tão frio.
Respirou fundo. O ar gelado desceu ardendo nos pulmões.

Morten olhou ara a obsidiana em suas mãos. Uma rocha preta azulada muito bonita com arestas afiadas como navalhas.  Morten pensou que talvez devesse batizar o vidro vulcânico com seu próprio nome. “Morteniana” ia ser mais legal que “obsidiana”, assim designada por se assemelhar ao vidro vulcânico encontrado na Etiópia por Obsius.

Obsius era, tal como ele, um explorador, só que a serviço do império romano. Assim, quando ele achou aquela pedra de vidro, fora dado o nome de obsiānus lapis, em honra do seu descobridor.

Carlson começou a escalar o monte de pedras pretas afiadas. Era preciso ter cuidado. Com o solo preto reflexivo refletindo nos olhos a luz do traje, mais o vento, mais as escorregadias subidas dos montes, somado com sua dor na perna, tudo contribuía para um avanço penoso. Escorregar ali era certeza de se cortar todo.

Carlson chegou enfim ao alto da colina e então arregalou os olhos.

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Diante dele estava uma construção. A princípio, devido ao escuro e ao vento que trazia consigo pó e grãos de pedra capazes de cegarem um explorador, ele não conseguiu distinguir direito e pensou ser o acampamento chinês. Mas então quando o vento deu uma leve amainada ele aumentou a luz do traje e se espantou.

Não era a base chinesa. Era uma cidade alienígena!

 

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Philipe Kling David, autor de mais de 30 livros, é editor do Mundo Gump, um blog que explora o extraordinário e o curioso. Formado em Psicologia, ele combina escrita criativa, pesquisa rigorosa e uma curiosidade insaciável para oferecer histórias fascinantes. Especialista na interseção entre ciência, cultura e o desconhecido, Philipe é palestrante em blogs, WordPress e tecnologia, além de colaborador de revistas como UFO, Ovni Pesquisa e Digital Designer. Seu compromisso com a qualidade torna o Mundo Gump uma referência em conteúdo autêntico e intrigante.

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