quarta-feira, dezembro 11, 2024

O cão da beira-rio

Na beira rio tem um cão

Uma criatura da escuridão

Seu coração palpita

Seu pulmão preto apita

Sua forma é esquisita

Sem raça

Com fome

Sem graça

Sem nome

Com a boca já quase sem dente

Seu latido é um murmurar

com o olho que olha pra gente

mesmo sem conseguir enxergar

Ele é o cão da beira-rio

Aquele que treme sem sentir frio

Ele nunca teve dono

Nem fez alguém feliz

Em estado de abandono

Nunca viveu em canis

Ele come o lixo da casa da moça

E mata a fome bebendo da poça

Na porta do bar petrifica

parado, estático ele fica

espera um pedaço de caridade

e abana o rabo com agonia

morde o pedaço com vontade

tão fiel como uma vadia

foge sem humildade

sua pele rachada é coisa ruim de ver

Fica difícil até descrever

Berne, pulga, carrapato

Bicheira, moscas, podridão

Todo tipo de maltrato

Infesta aquele cão

O cão da beira-rio

está sempre no cio

Nem parece um bicho

revira as latas de lixo

porque é um cachorro

procurando socorro

Corre no mato

Sobe no morro

um triste retrato

sobre o qual eu discorro

quando a noite cai

ele está perdido

se vai

exaurido

E anda pela estrada

Sem partida, nem chegada

um cambaleio no compasso

das quatro patas mancas de cansaço

meio cego ele deita

Na faixa da direita

dorme um sono sem sonhos

sem amigo ou patrão

sem sentimentos tristonhos

porque não conhece emoção

Sem enxergar

Uma luz a iluminar

do farol do caminhão

na estrada da desolação

Quando vem a colisão

As rodas passam sobre o cão

sem piedade nem sobressalto

pedaços explodem no asfalto

Quando se vai o caminhão

sem perceber o que largou

a escuridão abraça o cão

ou o rocambole que restou

Espalhados na estrada

sangue, tripas, pele e miolo

sem choro, nem gargalhada

nem raiva ou desconsolo

Quem passa na beira da via

o olhar desvia

daquilo no meio da estrada
que assusta qualquer camarada

Com a morte na madrugada

ele encontrou sua função

morrendo sozinho na estrada

debaixo das rodas do caminhão

O cão da beira-rio

na beira do meio-fio

com a carcaça a apodrecer

finalmente vai poder

longe dos lugares hostis

fazer alguém feliz

quando o sol irromper

e a noite enfim ceder

cortando o céu com luz

em meio a claridade

ele finalmente vai fazer

a felicidade

dos urubús.

Fim

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Belo poema,Philipe.Muito legal mesmo.
    Só fiquei triste no final,pq lembrei do meu cachorro que morreu quase do mesmo jeito =/
    Mas muito legal a historia,parabéns =]

  2. [quote comment=”8420″]
    só não muito dessa parte:

    “Nem parece um bicho
    está sempre no cio
    porque é um cachorro”[/quote]

    Eu também achei meio estranha essa parte rs

  3. È que eu escrevi esta poesia duas vezes. A primeira deu pau ontem quando o blog saiu do ar. Aí foi pro saco, a Vivian botou pilha e eu refiz ela toda de cabeça. A primeira era bem melhor, eu acho.
    Essa parada aí tava fora da ordem mesmo. Reorganizei lá. Acho que agora deu liga.
    Obrigado por lerem.

  4. Agora ficou melhor lá aquela parte,ficou com mais sentido =]
    Não consigo imaginar como a outra pode ter ficado melhor do que essa.
    Acho que essa ficou melhor que a outra, isso sim :D

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