quinta-feira, dezembro 12, 2024

Gringa – Parte 16

Evandro abaixou-se e tocou no peixe. Ainda estava gelado. Parecia ter sido pescado naquele minuto. Ele ainda estava pingando água.  Notou um rastro de pingos pelo chão da varanda. Ele teve certeza que a gringa tinha pescado, mas como? Ele foi até o interior da casa e encontrou o kit de pesca no quarto das ferramentas, agora lotado de sacos de cimento para todo lado.

O jovem não sabia como a gringa tinha feito aquilo, mas ele foi lá fora e pegou o peixe. Era pesado.

“Talvez ela tenha achado algum tipo de rede na ilha…” – Pensou.

Evandro pegou o peixe e colocou no isopor com o gelo. “Preciso assar esse peixe hoje. Com o pouco de gelo que resta, ele não vai demorar a estragar.” – Pensou.

Ele foi até lá fora, lavar as mãos no galão da varanda. E olhou de um lado a outro e não achou a Gringa.

-Gringaaaaa? Gringaaaaaa? – Mas ela não respondeu, e nem parecia estar em qualquer lugar que ele conseguisse ver.

Evandro se sentou no toco de madeira e ficou pensando sobre isso. Todo dia a Gringa sumia pela manhã. Tudo bem que ela era arredia e temia os homens da obra, mas era sábado, e eles não vieram, no entanto, a gringa desapareceu, mas antes, deixou-lhe aquele estranho “presente”, como um gato que larga passarinhos na porta de seu tutor.

Evandro contemplou o dia. Era um dia de sol entre muitas nuvens. No horizonte as nuvens iam se agrupando em maciças formações. Havia uma nuvem cumulo nimbos gigantesca para os lados da costa. Ela era uma nuvem muito alta e muito escura. Felizmente o vento parecia estar soprando ela para a direção do oceano.

Evandro pensou na gringa, e lembrou-se da noite de amor dos dois. Pensou que à aquela altura, talvez ele já até pudesse se considerar “namorado” da gringa.  A mulher não saía da cabeça dele.
Alex havia dito que a gringa eventualmente aparecia durante a noite, e havia roubado o facão. Isso parecia apontar para o fato de que a gringa tinha em algum lugar, um esconderijo, uma proteção, uma cabana, algo assim. Mas por que ela aparecia à noite e sumia pela manhã?  Era um mistério.
Evandro pegou o violão e ficou dedilhando e treinando algumas musicas. Ele estava tentando tirar uma musica mas acabava sempre errando as notas. Foi perdendo a paciência. Não estava concentrado. As imagens da gringa e o gosto do beijo dela, sua pele na dele, os dois suando naquele sofá horas atrás… Tudo isso atrapalhava seu desempenho no violão. Além disso, a hora parecia não querer passar. Ventava bastante e as ondas lá em baixo ficaram agitadas, com pequenos montinhos de espuma que lembravam carneirinhos pastando ao longe.

Talvez pela ociosidade, talvez porque não conseguia sequer pensar em outra coisa senão naquela mulher, Evandro decidiu procurar por ela.

“É uma ilha, ela só pode estar aqui em algum lugar!”- Pensou.

Evandro desceu até o píer, na esperança de encontrá-la pescando no costão. Mas não havia qualquer sinal dela, apenas o píer de madeiras bambas se balançando ao sabor do impacto das ondas.

Evandro voltou a subir pela trilha. Ele resolveu que já era hora de entrar seriamente na mata e buscar o seu amor.

Ele foi ate o quarto dos bagulhos, pegou a lanterna e a faca de Alex. Ele verificou a afiação da lâmina, cortando pelinhos do braço. Ela era super afiada. Evandro pegou também algumas cordas e passou a mão num pacote de biscoitos Água e Sal. Jogou tudo na mochila.  Com medo das cobras, ele vestiu uma calça e depois calçou os tênis de escalada. Tantos dias de chinelo faziam os tênis parecer muito apertado e desconfortável. Evandro saiu, encostando a porta da casa.

Andou pelo lado esquerdo, passando pelas obras da cisterna. Contornou as enormes árvores caídas ao final do caminho de pedras e seguiu por ele. O caminho ia serpenteando por entre a densa vegetação. “Alex limpou bastante!” – Ele percebeu, ao avançar pelo caminho.  – “…Antes tava cheio de mato por aqui”.

Evandro foi dando a volta na ilha e de vez em quando, ele parava e gritava por ela.

– Gringaaaaaaa?

Mas fora uma ave marinha ou outra voando na copa das árvores, nada parecia dar qualquer sinal de vida ali.  Conforme avançava, ele ia pensando nela. Como era possível que ela andasse pela mata sem se machucar? Havia plantas espinhentas para todo lado.

Ele então decidiu que devia entrar na mata mais fechada, e cruzar a ilha pelo meio. Era a segunda vez que adentrava a mata em busca da gringa, e nessa ele estava decidido a encontrar. Evandro entrou na mata por um espaço que parecia uma trilha. Ele tinha o facão na mão e eventualmente era preciso cortar as plantas para seguir em frente, sempre de olho no chão. As cobras já haviam provado que eram traiçoeiras.

Eventualmente uma ave cantava, uma folha caía, galhos estalavam, e o seu caminhar esmagando folhas secas era só o que se ouvia. Conforme andava, Evandro ouviu um estrondo distante. Era um trovão da tempestade.  Ele olhou para cima e entre as copas das árvores viu muitas nuvens cinza.

“O vento mudou de direção” – Ele notou. O vento açoitava as árvores, que balançavam derrubando folhas para todos os lados na mata.

Foi seguindo sempre em frente, guiando-se puramente por suas impressões. Ele sempre observava aflorações das rochas e na mata virgem do centro da ilha elas eram muitas. Havia pedras de todos os tamanhos. Algumas enormes.

Evandro esperava que certamente iria encontrar algum tipo de cabana primitiva, feita pela Gringa mais cedo ou mais tarde. Havia no meio da ilha um grande rochedo, uma pedra enorme. Certamente em algum lugar na base dessas rochas deveria servir como abrigo, talvez uma caverna ou gruta onde ela se escondia.

“As arvores estão balançando com vento forte. Está entrando o sudoeste.” – Pensou, percebendo o aumento do vento.

Enquanto andava pelo mato, abrindo picadas com o facão, o vento lhe trouxe um odor estranho. Um cheiro ruim. Era um cheiro que ele conhecia bem. Cheiro de morte.

-Será que um bicho morreu aqui? – Pensou.

Havia o ruido de moscas. Ele estranhou. O cheiro estava ficando mais forte para o lado leste. Evandro avançou seguindo o rastro dos odores pútridos, temendo pelo pior.

“Ah, não… Ah não… Por favor, que não seja ela!” – Ele gemia, conforme o odor ia aumentando.

Ele então chegou numa grande pedra. Era uma pedra redonda, e olhando direto para ela, Evandro notou um desenho na superfície. Alguém havia cinzelado a pedra cortando nela a forma de uma grande cruz de Malta.
-Mas… que merda… É essa?  E esse cheiro?  – Ele falou.

O cheiro estava bem forte. O vento atrapalhava as vezes seguir o rastro do cheiro, poios quando o vento mudava de direção, o odor da carniça desaparecia por completo.

Ele seguiu em frente e viu uma pedra com o que parecia ser algo pintado nela. Ao chegar mais perto, notou que era uma mão manchada de sangue que havia sido impressa na pedra. Logo atras dessa rocha estava, cerca de uns seis metros adiante dele, um conjunto de rochas numa disposição circular como que formando um estranho platô. Ele subiu numa pedra pequena e olhou no centro do platô. A imagem que ele viu o aterrorizou.

Era ela!

Havia uma mulher morena, morta, emborcada ali no meio. O corpo estava descarnado, com grandes partes faltando. As costelas estavam repletas de vermes que passeavam pela carcaça.

-Não, não pode ser! – Ele horrorizou-se, ao ver a caveira sem a pele do rosto, já sem os olhos. As orbitas vazias repletas de vermes, que se agitavam em meio aos cabelos pretos lisos que ele conhecia bem.  – É ela! É ela! Meu Deus! Meu Deus!  – Ele se assustou, andando para trás em choque.

Então, ele pisou em falso e ouviu um “creck!”

Antes que pudesse fazer qualquer coisa, Evandro caiu num buraco fundo de cerca de quatro metros de profundidade, colidindo com um monte de entulhos úmidos. Muitas plantas e raízes caíram sobre ele.

-Ahhhhh.   – Ele gemeu, sentindo o sangue jorrar do braço. Havia cortado o braço num galho. Era um corte fundo de onde minava sangue vivo.

Ele procurou os óculos. Não enxergava direito. Eles tinham sumido na queda.

Evandro se sentou e tirou a mochila. Estava com o coração a mil por hora.

Ele tirou a camisa e amarrou ela no braço para estancar o sangramento. Puxou com os dentes o nó, bem apertado.

-Que porra de lugar é esse?  Ele olhou ao redor. Era completamente escuro, e com cheiro de mofo.

Evandro abriu a mochila e pegou a lanterna. Ele iluminou o lugar. As paredes eram de pedra. Parecia um tipo de templo abandonado. Eram paredes feitas de grandes blocos justapostos, formando uma espécie de corredor. Evandro foi iluminando tudo ao redor. Havia cacos de cerâmica no chão. Ele pegou um caco e algo lhe dizia que aquilo ali era cerâmica indígena.

-Será que cai numa sepultura? – Pensou.

Evandro se levantou e seguiu iluminando mais à frente. O lugar media seis metros por dois de largura. Era praticamente um corredor profundo. Ele notou algumas estacas caídas pelo chão. Estacas afiadas.
Olhou para cima. O “teto” era formado de grossas madeiras redondas, certamente troncos de árvores e palmeiras da ilha. Essas madeiras se entremeavam, tampando a visão do tal buraco.

“Parece uma armadilha!”

Ele foi iluminando mais à frente. O lugar certamente era bem profundo quando foi escavado originalmente, mas com o passar dos anos, terra, detritos e folhas foram se acumulando ali dentro. Andar por ali era sempre estranho, pois o pé afundava no monte de folhas em decomposição. Era como um pântano raso. Estava meio encharcado.  Ele pisava e depois de uns segundos a agua suja minava para dentro do tênis.
Evandro foi observando tudo. Via tudo embaçado por estar sem os óculos.  A parede parecia terminar reta, mas ele notou um certo decaimento lá na outra extremidade, que indicava que talvez houvesse uma escada ou passagem descendo para o subterrâneo.  Essa parte mais profunda estava cheia de água com cheiro horrível.

“Eu vou acabar pegando uma pereba braba nessa porra aqui!” – Pensou ao ver a cor da água. A luz da poderosa lanterna de led mal avançava poucos centímetros na água escura.

Evandro voltou iluminando tudo ao redor.

Percebeu que não havia saída. Ele estava preso num tipo de cubículo de pedra sem portas ou escadas.

“Só pode ser um armadilha”.

Evandro se conscientizou que estava enrascado.

“Puta que pariu, puta que pariu…” ele gemia, tentando achar um jeito de sair dali. Mas não tinha. Os blocos de pedra eram colocados de maneira extremamente apertada. Os dedos não entravam nas cavidades.  As paredes estavam afastadas demais para que ele pudesse escalar usando as mesmas.  Evandro apenas se sentou. A camisa estava encharcando de sangue.

“Preciso dar um jeito de sair daqui.”

Evandro tateou em busca de alguma coisa que o ajudasse. Sua primeira ideia foi pegar as estacas e tentar se apoiar nelas para subir, mas as madeiras estavam podres. Pareciam até um isopor. Séculos de exposição à umidade tinham feito as madeiras se esfacelar facilmente. Ele foi escavando os detritos, raízes, pedras e folhas em busca de alguma madeira melhor quando encontrou algo inesperado. Era uma espada!

Ela estava bem enferrujada, mas era sim uma espada. E ainda tinha restos da madeira no cabo. Parecia ser uma lâmina do século XVI. Lembrou de já ter visto algo parecido, mas em estado bem melhor num museu de Amsterdã.

Evandro não demorou a concluir que se havia uma espada ali na armadilha, era muito provável que o dono dela estivesse lá também.

Com a própria espada, sentindo muitas dores no braço ele começou a revirar os entulhos do chão até encontrar um crânio. Ele era marrom escuro, quase preto, o que indicava estar afundado ali por séculos.

Evandro seguiu escavando as folhas e plantas, até encontrar outra espada. E logo ao lado dela, mais uma. Eram agora três espadas, sendo que duas estavam em melhor estado que a primeira que era mais um pedaço de ferro carcomido e enferrujado.

Evandro encontrou também o que parecia ser um livro. As folhas estavam se desmanchando conforme ele tentava mexer. Na luz da lanterna, ele conseguiu ver algumas palavras em latim. Mas Evandro não sabia latim e largou o livro de lado em meio aos detritos.

Lá fora, os trovões estavam ficando cada vez mais violentos e então começou a chover. Era muita chuva. Agora a água descia com profusão pelas bordas, escorrendo pelas pedras. Evandro olhava para cima do buraco e a chuva caía na cara dele. Lá em cima, as arvores se balançavam ao sabor dos fortes ventos que vinham do mar.

Evandro olhou a espada.

“Será coisa de pirata?” – Pensou.

Ele sabia que precisava sair fora do lugar, porque estava começando a encher de água rapidamente.

Iluminou uma cobra que passou nadando perto da pedra. Aquilo mexeu com o psicológico dele. Agora ele estava realmente desesperado para sair.

-Socorro! Socorro! – Ele gritava, mas era inútil.

“Ninguém vai ouvir. Ninguém vai vir aqui até segunda-feira!” – Ele pensou, se dando conta que não haveria socorro.

“Merda… Estou por minha conta. Se ao menos eu tivesse trazido o celular… Se bem que nem na casa ele funciona, que dirá num buraco!”

Evandro olhou as paredes de pedra tentando ter alguma ideia de como poderia escalar. Elas eram bem lisas, certamente tinham sido feitas já planejando impedir a saída de quem caísse ali. Evandro pensou que talvez o dono da espada, ou mesmo os donos, estivessem tentando esconder alguma coisa. Era possível que tivessem matado o único que sabia o segredo da armadilha, deixando-o para morrer ali dentro? Sem dúvida, era uma possibilidade.  Provavelmente a armadilha originalmente era forrada de estacas pontiagudas, para perfurar os corpos de quem caísse ali.

“Porra isso aqui parece um bagulho típico do Indiana Jones!” – Pensou, olhando a espada e o crânio que sorria para ele parcialmente afundado na água escura que estava subindo lentamente conforme a armadilha enchia.

“O que o Indiana Jones faria nessa situação?” -Ele se perguntou olhando para as espadas.

Evandro teve uma ideia. – É isso!

Ele pegou a espada e tentou enfiar sua lâmina através das reentrâncias entre as pedras mas a lâmina não entrava.

-Uuuung, vai porra, entra! Uuuunng! – Ele gemeu tentando enfiar a espada na greta, mas a pedra era muito bem colocada e a lamina não entrava.

Ele então começou a fuçar pelo meio dos detritos, que agora era um monte de lama escura e aguada. Finalmente, depois de revirar os detritos e machucar o dedo,  num canto encontrou uma pedra oval, mais ou menos do tamanho de sua mão.

Com essa pedra ele bateu no pomo da espada, fazendo-a penetrar mais e mais através da fresta. Conforme foi conseguindo uma grande euforia tomou conta dele e ele ia batendo e cantando a musiquinha do Indiana Jones, do John Wilhams:

-Pãpãrãpammm…. Pãmpãmpããããããã…

Ele conseguiu enfiar a primeira espada com facilidade. A segunda, era a mais enferrujada. Logo na primeira batida, o pomo já quebrou, mas a lâmina parecia mais dura. Ele continuou a bater e foi batendo até metade da espada penetrar na greta das rochas.

Ele então subiu na primeira lâmina e pisou bem rente a rocha, usando a espada enferrujada como degrau.  Ele esticou-se todo. Já estava quase alcançando a borda. Seus dedos se esfregaram na rocha úmida. Mas ao forçar o peso, a lamina quebrou e ele caiu deitado de costas dentro da poça fétida.

A chuva estava caindo torrencialmente lá em cima.  Evandro começou a gritar palavrões.

-Porra! Caralho!!!! Filho da putaaaaa! Ahhhhh! Ahhhhhh! – Estava irado.

Pegou a espada que estava com melhor qualidade e lançou com ódio lá para fora do buraco.

Sentou na poça e começou a chorar. Seu braço latejava. Suas pernas ardiam. O buraco ia encher de água. Se ele não fizesse nada era só esperar e sair nadando, mas e se a chuva parasse?

Pior, e se ele só enchesse até o ponto em que ficar de pé fosse impossível, mas sair também fosse?

Ele sabia que muitas horas naquela água iria apodrecer sua pele. Talvez um dos objetivos do buraco fosse aquele.  Quem sobrevivesse às estacas, morreria de infecção causada pelo apodrecimento das carnes.

Evandro ficou olhando uma centopeia enorme subindo pela parede de pedra, tentando escapar da água.

“Ela sabe que enche” – Ele pensou.

Precisava de um plano. Precisava fugir.

-Socorro! Socorroooo! – Ele ainda gritava Às vezes, mas sabia que era inútil. A gringa estava morta. Ninguém estava lá para ajudar.

Gritava apenas para emitir algum som. Ficar em silêncio ali com os barulhos da água pingando e infiltrando era muito assustador. Agora, com a gringa morta…

Ele começou a chorar.

“Quem matou ela? Quem matou?” – Se perguntava. Teve vontade de desistir. Talvez esse seria o final para ele. A morte na ilha Atlas. O fim.

Refletiu sobre o fato de que ele não era o Indiana Jones. Era só um moleque criado em condomínio. Um fracassado, que colheria o preço da própria irresponsabilidade.

Evandro viu a lanterna passar boiando acesa ao lado dele. Era escuro ali dentro. Ele apontou para cima e viu as grandes madeiras que fechavam o teto. Esse teto da armadilha era muito mais reforçado de um lado que do lado que ele caiu. Talvez propositalmente.
Evandro mirou bem numa das vigas que parecia ser a principal. Ela cruzava de um lado para outro e estava enfiada em um nicho escavado nas pedras. Parecia ser uma madeira bem dura. Tudo mais estava apoiado de uma forma ou de outra em travessas que se apoiavam nela.  Talvez ela fosse forte o suficiente para aguentar o peso dele…

Assim, Evandro  recuperou suas esperanças. Ele pegou a mochila ensopada e tirou as cordas de dentro dela. A primeira coisa que fez foi dar vários nós na corda. Precisou vasculhar com as mãos pelo chão gosmento para achar a pedra. Quando ele puxou achando que tinha encontrado, era a cabeça da caveira do pirata. Ele jogou longe:

-Vai se foder, Willy Caolho!

Continuou a tatear em busca da pedra, e finalmente achou. Evandro pegou a pedra e amarrou a corda com varias voltas ao redor dela, prendendo bem a pedra na extremidade da corda.
Evandro girou a corda com a pedra e lançou. No primeiro lançamento a pedra bateu numa travessa e caiu na água. Era difícil de fazer a jogada certa, porque ele não enxergava direito sem os óculos. E estava escuro. Mal dava para ver alguma coisa.  Os relâmpagos lá fora eventualmente ajudavam. A água continuava a descer pelas laterais como pequenas cascatas, trazendo galhos e folhas consigo para dentro do buraco.

Evandro viu a cobrinha nadando ali perto. Um calafrio percorreu sua espinha.  A água já estava acima dos joelhos.

Ele tentou outro lançamento. A pedra subiu e bateu no teto.

E assim Evandro tentou cinco, depois sete, depois nove depois vinte e seis lançamentos, até que já começava a  sentir perdendo as forças.

-Só mais um. – Ele dizia para si mesmo, sempre que lançava a pedra.

Então, por uma sorte inesperada, a pedra finalmente passou no espaço estreito entre a enorme viga e as outras madeiras acima dela, caindo do outro lado do corredor de rocha onde ele estava preso.

Evandro deu novos nós na corda, criando laços para enfiar os pés. O plano estava claro que ia funcionar.  O rapaz agarrou a mochila e colocou nas costas.

Ele então se pendurou na corda e começou a subir, mas conforme subia, ouviu um “Craaaaaak!”

O teto inteiro desabou sobre ele. A madeira estava podre. Ele caiu com madeiras desabando por cima e afundou na água nojenta. Com dificuldade, conseguiu se desvencilhar das toras.  Ele ficou em pé e a água já estava na cintura.

A depressão voltou forte. Evandro achou que agora estava acabado. Sem o teto para segurar um pouco da chuva. Mais e mais água ia entrando no buraco.

-Poooorraaaaaaa! Porrrraaaaaaaaaaa! – Ele berrava ensandecido.

Não tinha como escalar, não tinha como usar a corda mais. Agora sim. Ele estava liquidado.  Era o fim.

Sem esperanças, restou a Evandro ficar no canto, olhando a cobra listrada que serpentava nadando de um lado para o outro, lá do outro lado.  Lá fora um raio atingiu a ilha num estrondo espetacular. Evandro estava com medo. Não parecia um bom dia para morrer.

Ele ainda estava mirando a lanterna na cobra que felizmente, nadava longe dele.

– Calma Evandro, calma… Ela ta com mais medo de você do que você dela! – Disse para si mesmo.
Notou varias madeiras do teto que haviam despencado. Elas estavam boiando na água do buraco. Evandro puxou uma delas. Era uma madeira grande, um pedaço de tronco. Estava bem podre em algumas partes, mas era um pouco rígida junto ao miolo.

Ele teve mais uma ideia.  Pegou na mochila a faca de Alex. Com a faca começou a cortar essa madeira escavando com a lamina afiada lascas da madeira. Ele foi cortando as lascas e picando com a ajuda da pedra. A chuva estava se reduzindo lá em cima, o que era uma noticia boa por um lado e ruim por outro. Se a agua continuasse a encher rápido ele poderia tentar sair nadando. Mas sem chuva ele ficaria preso numa banheira de pedra com a água podre.  Ele parou de pensar em coisas negativas. Manteve sua mente focada na missão. A missão era cortar a madeira o mais rápido possível, escavando nela pequenas reentrâncias.  Então ele cortou a madeira com golpes de faca. Logo chegou na parte densa da tora, onde a lâmina entrava com dificuldade.

“Ah se eu tivesse aquela serra do seu Messias…” – Pensou conforme usava a pedra para bater na faca e cortar mais a madeira dura.

Com dificuldade ele conseguiu cortar o galho, criando um dente bem profundo nele.  A lanterna ele colocou na boca para conseguir enxergar.

Já estava de noite lá fora. Olhar para cima agora, só dava numa escuridão ameaçadora de onde a chuva descia como vindo do espaço.

Com a corda, ele amarrou bem forte um toco de madeira de uns vinte centímetros que também estava ali boiando. Formou uma cruz. Evandro alcançou outras toras que boiavam e com facilidade conseguiu colocá-las em pé. Algumas eram tão altas que saíam para fora da armadilha. Evandro então posicionou as madeiras, prendendo uma na outra com uma forquilha de galhos.  Elas estavam firmes, mas para garantir, ele apoiou na parede onde havia a espada enfiada entre as pedras. As madeiras se apoiaram na pedra e na espada. Ele guardou a faca na capa e guardou a lanterna na mochila. Ficou um tempo no escuro, tentando adaptar a visão.
Evandro colocou a mochila nas costas e com aquele tronco com a cruzeta diante dele, puxou a própria perna com dificuldade para cima. A calça jeans molhada atrapalhava seus movimentos.  Ele conseguiu posicionar o pé sobre a madeira da cruzeta que estava enganchada no dente escavado do tronco. Com as costas, ele se esfregou nas pedras, tirando proveito do limo molhado que escorregava como um sabão.
Conseguiu erguer o corpo assim. Seu medo era que o galho da cruzeta se partisse, mas ele estava aguentando firme, apesar de estalar sempre que ele forçava o corpo para alcançar a borda.  Evandro então se esticou e alcançou finalmente a borda. O tronco se balançou um pouco, mas ele estava fortemente agarrado na borda. Com as pernas ele foi prendendo o tronco para ir subindo. Era escorregadio porque estava tudo molhado e enlameado, mas com muita dificuldade, ele conseguiu. Minutos depois, após  um esforço sobre-humano, ele finalmente caiu de costas deitado ao lado do buraco. Ele tinha finalmente saído.

-Hahahahahaha! – Ele começou a rir de maneira quase maníaca.  Estava livre. Tinha escapado da morte certa.

Evandro se sentou e sentiu a chuva pingando sobre ele.  Levantou-se e deu uma ultima olhada no lugar. Cuspiu lá dentro.

-Filhos da puta! Eu venci! Eu venci!

Ele apanhou a espada no chão e foi embora.

Evandro pegou a lanterna na mochila e voltou andando pela mata. Agora andava com muito menos medo, segurando a lanterna numa mão e a antiga espada enferrujada na outra. Era complicado andar na mata sem os óculos, mas ele seguiu em frente mesmo assim.

Conforme avançava pelo matagal, ia pensando sobre a armadilha. Ninguém faz uma armadilha a toa. A presença da armadilha certamente indicava que havia algo de valor por ali. Seu braço ainda doendo muito, e algumas escoriações  lembravam que ele ainda era humano, mas entorpecido pela adrenalina, apenas seguiu adiante pela mata, até chegar na estrada de pedras. Ao pisar nelas, já se sentia em casa.

Ele foi andando até a casa e então viu, à distância, uma luz iluminando a varanda. Ele enxergava tudo meio embaçado, mas dava para ver a luz.

“Uma luz? Eu não deixei nada aceso. ” – Pensou.

Evandro se aproximou sorrateiro.  Deu de cara com a gringa, sentada no toquinho, diante das chamas de uma fogueira improvisada na varanda, vendo o peixe assar num espeto.

-Gringa!  Gringaaaa! – Ele gritou, sem conseguir conter a emoção.

Ela se assustou num pulo com o grito dele. Ficou chocada ao vê-lo, todo coberto de lama e sangue segurando aquela espada. Evandro deixou a espada cair. Estava exausto.

-Mnhamjn! Mhacaajiz! – Ela disse, aflita.

Evandro a abraçou e começou a chorar.

A gringa gemia. – Mhacaajiz, mhacaajiz… Tentando acalmá-lo.

Quando Evandro se acalmou, ela o empurrou.  Falou alguma coisa estranha e ele entendeu que era sobre sua sujeira. Ele estava imundo.

Evandro tirou as roupas, ficou nu. Pegou o resto de água do galão da varanda e jogou sobre si. Se lavando da imundície.  Ele ia se esfregando e um caldo preto escorria pelas pernas abaixo.

A gringa entrou na casa e trouxe duas garrafas de água.

Ele abriu as garrafas e jogou sobre a cabeça.  Encheu a boca de água, bochechou e cuspiu no mato. O peixe estava com um cheiro maravilhoso.

Evandro foi até o quarto, pegou uma toalha e se secou.  Ele retirou as bandagens das pernas. Estavam cheias de sujeira.
Na caixa de primeiros socorros, ele pegou dois rolos de gaze. Depois pegou o álcool e jogou com força nas pernas. Queimou demais.

-Aaaaaaaahhhhh! – Ele gritou segurando as pernas. Achou que ia desfalecer.

Mas depois que a queimação passou, ele enrolou as faixas nas pernas. O que ele realmente estava preocupado era o corte no braço.

A gringa estava ao lado dele. Ela ajudou a desatar a camisa amarrada como um torniquete no braço esquerdo.  Logo, o sangue fluiu, escorrendo pelo braço.
Evandro pegou uma gaze e limpou o sangue, abrindo a ferida com os dedos para olhar lá dentro. Não parecia ter nada como veia ou artéria cortados. Era só um corte mais profundo.  Evandro levantou-se segurando o braço e remexeu na caixa dos primeiros socorros. Não havia nada para sutura.
A gringa então começou a falar um monte de coisa que ele não estava entendendo nada.

-Gugxi dnsijz cujtriuzbutu biiga Ingagafalut!

-Quê? O quê? O que foi?

Ela caminhou até o quarto dos bagulhos e trouxe a caixa de pesca. Evandro entendeu.

Abriu a caixa, pegou um anzol fino. Com o alicate, ele cortou a ponta do anzol. Entregou o anzol com a linha mais fina do kit na mão da Gringa.

-Você vai me costurar, ó! – Mostrou com o dedo num ziguezague no ar, conforme ela devia costurar. Ela parecia estar atenta e entendendo o que devia fazer.

Evandro jogou álcool sobre a gaze e esfregou sobre a ferida, passando ate dentro do corte. Ele viu estrelas.

-Vai! vai! – Disse, apontando a ferida.

“Seja o que Deus quiser!” – Ele apertou os olhos.

Com grande habilidade, a gringa suturou o braço dele usando linha de pescar. Foram quatro pontos.  Ela depois colou um esparadrapo bem apertado em cima.

-Meu Deus! Você é médica?

Ela apenas sorria, parecia feliz com a ajuda.

A gringa falou mais algumas coisas incompreensíveis e foi até a cozinha. Pegou um prato. Depois foi lá fora na varanda onde tinha feito a fogueira. Lá fora a chuva estava voltando a cair com trovões estourando lá no mar.

A gringa voltou com o prato, repleto de carne assada do Mero.

-Hummm! Delícia! Obrigado! – Ele disse, pegando um bolo da carne branca com a mão e comendo.

Na verdade, o peixe estava completamente sem sal, mas na altura do campeonato, servia muito bem. Evandro estava morto de fome. Comeu com voracidade.

A gringa também estava comendo com grande vontade, segurando um naco enorme de carne de peixe com a mão.

Evandro olhou para a moça que comia como uma selvagem e agradeceu a Deus que aquela pessoa morta na mata não era ela. Mas era alguém que parecia com ela. Uma mulher morena.  Quem seria? Parecia ser uma mulher jovem, mais ou menos na idade dela. Infelizmente, falar com a gringa era impossível, e ele nem conseguiria explicar o tormento que acabara de passar no coração da ilha.

Quem era a morta? Quem matou aquela mulher?  O cadáver estava ali há alguns dias, e enquanto mastigava o peixe, Evandro não pode deixar de pensar que aquela pessoa ali foi morta quando apenas Alex estava na ilha.

“Só tinha a gringa e o Alex aqui…” – Pensou, enquanto observava a gringa, docemente iluminada pelas chamas da fogueira, com a boca cheia de peixe.

Em sua mente, ecoou a frase de Alex dias atrás:

-“Eu já matei muita gente.”

 

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Philipe Kling David, autor de mais de 30 livros, é editor do Mundo Gump, um blog que explora o extraordinário e o curioso. Formado em Psicologia, ele combina escrita criativa, pesquisa rigorosa e uma curiosidade insaciável para oferecer histórias fascinantes. Especialista na interseção entre ciência, cultura e o desconhecido, Philipe é palestrante em blogs, WordPress e tecnologia, além de colaborador de revistas como UFO, Ovni Pesquisa e Digital Designer. Seu compromisso com a qualidade torna o Mundo Gump uma referência em conteúdo autêntico e intrigante.

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