“Eu vi o inferno”

Em 1988 eu estava trabalhando para uma empresa de intermediação de comércio internacional chamada Triestes Ltd, com sede em Washington.

Nós tínhamos clientes em todas as partes do mundo e não raro, eu precisava viajar a Europa três vezes ao ano para resolver problemas de contratos, pois havia uma série de “complicações cambiais” que muitas vezes precisavam ser negociadas no esquema olho-no-olho-dinheiro-no-bolso, se é que você me entende.  Claro, alguns países europeus eram mais corruptos que os outros. Mas foram dois os que mais se destacavam nesse aspecto: A Espanha e a Itália.

Especialmente na Itália, sabíamos que os problemas aconteceriam em função de interesses de figurões influentes na Sicília. Volta e meia carregamentos de vinho eram travados e mercadorias desapareciam no pátio do porto de Nápoles.

Foi numa dessas viagens que seguindo para Nápoles, que ouvi uma das histórias mais estranhas da minha vida. Eu embarquei de Nova York com destino a Nápoles. Faríamos uma parada Em Portugal.
No assento do meu lado no avião, sentou-se um homem magro com bigodinho engraçado.

Ele tinha um grande nariz adunco e vestia ternos caros, escuros, com uma gravata vermelha. Sua roupa era de boa qualidade, mas era um homem muito feio. Ele parecia nervoso, e suava muito antes da decolagem. Pensei que não seria uma boa aguentar aquele cara do meu lado por quase nove horas de voo.

Imaginei que o homem, que julguei medir cerca de 1 metro e sessenta de altura não gostasse muito de aviões. Ele estava desassossegado, muito ansioso. Mexia toda hora nuns papeis que trazia dobrados no colo.

Nesses momentos, eu nunca sei bem o que falar, não tenho jeito para psicólogo, então me limitei a dar-lhe às costas e olhar pela janela, vendo as luzes da cidade ficando cada vez menores conforme subíamos.

Quando o avião deu sua guinada em curva e avançou sobre o mar, pude dar uma última  olhada na “Grande Maçã” que se esvaía no lusco-fusco do início da noite. O horizonte parecia uma mancha acinzentada, levemente alaranjada em cima e escura em baixo, onde era ponteada por milhares de pequenas luzes, e os prédios pareciam palitinhos pretos que estavam cada vez menores. Quando o avião finalmente estabilizou sobre o oceano, já estava bem escuro lá fora.

O homem ao meu lado pareceu mais calmo. Não suava tanto. Ele pegou uns papéis dobrados que trazia no bolso interno do casaco e estava lendo com atenção.
A luz de desafivelar os cintos se acendeu e ele rapidamente tratou de puxar aquela geringonça com dificuldade, tentando se livrar do cinto. Eu vi que ele estava meio atrapalhado pelos papéis no colo e disse, “Ei amigo, puxe essa lingueta ali!”.

Ele conseguiu e me agradeceu. E então, perguntou se eu não ia desafivelar meu cinto. Eu respondi a ele que nunca faço isso.

É estranho, eu sei, mas eu também me dou ao direito de ter algumas manias. Eu nunca desafivelo o cinto no avião enquanto ele está voando. Só ato o cinto quando ele está no chão e só abro quando está no chão novamente.

Eu não sei como nem porquê comecei a fazer isso, mas já me poupou bons sustos com zonas de turbulências inesperadas.
Eu expliquei isso ao meu amigo de poltrona e ele ficou me olhando sério por um segundo, talvez esperando que fosse uma piada, mas quando ele viu que não era, sorriu amarelo e disse que era uma boa ideia. Então, pegou seu cinto de segurança e começou, tão desajeitadamente quando tirou, voltar a prendê-lo. Os papéis no colo estavam atrapalhando, então ele me entregou aquilo:

–“Segure pra mim um momentinho, por favor”.

Eu gentilmente segurei os papéis e bati o olho no material. Havia ali o inconfundível selo papal, notei que o papel era um pouco velho, um pouco oxidado. Sob um texto datilografado em máquina de escrever, eu pude ler uma série de siglas que não me diziam  nada, a princípio.

Quando o homem me viu olhando o papel, ele rapidamente estendeu sua mão magra e com dedos compridos, para que eu lhe devolvesse. Eu devolvi, é claro.
Ele me agradeceu e virou-se para olhar a comissária de bordo que estava passando. Assim que ela se aproximou, o homem perguntou se ela poderia trazer um pouco de água.

Voltei minha atenção para a escuridão lá fora. Na ponta da asa, eu via a luz vermelha do avião brilhando e perdendo luminosidade quando ele atravessava nas nuvens.
Enquanto olhava, fiquei mentalmente tentando entender aquelas siglas do papel do homem feio.

–“Me dá agonia não conseguir ver nada lá fora…” — Ele me disse.

Eu me virei para o homem: –“Estamos nas mãos do piloto.” — Respondi.
–“Permita-me discordar. Estamos nas mãos de Deus.” — Ele replicou de forma mordaz, pegando a água que a comissária estendia pra ele.

Ela me ofereceu uma bebida. Peguei um uísque e continuei:

–“Pois foi o que eu disse. Eu só não expliquei quem era o piloto.”
Começamos a rir, e assim, já estava quebrado o gelo.

Olhei para os papéis dobrados no colo dele e perguntei à queima-roupa: “O senhor trabalha no Vaticano?”

Ele me olhou, como que escolhendo cuidadosamente as palavras. “Sou pesquisador para eles.” –Disse. E antes que eu pudesse pensar numa outra pergunta, me bombardeou:

— E o senhor? Está viajando a passeio?”
— “Bem que eu gostaria…” — Respondi.

Expliquei a ele a natureza dos meus negócios de intermediar compras de diversos produtos. Na Itália, tínhamos a representação de uma linha de importação de vinhos e pedras de Mármore para Nova York que não raro, acabavam em problemas com a Máfia Russa nos EUA (que dominam vários portos na costa leste) e a máfia italiana do outro lado. Problemas com duas máfias de uma só vez. E ainda tinha os romenos…

O homem magro do nariz grande e bigodinho parecia muito interessado. Notei seus olhos esbugalhando conforme eu explicava a ele que não raro, era preciso pagar propinas para liberação de documentos básicos nos despachos aduaneiros. E os caminhoneiros romenos eram uma pedra no sapato, pois se eles se negassem tudo parava.

“A propósito, Douglas McKinnon, muito prazer.”
Ele apertou minha mão com força e disse: “Simon Paluzzi”.

Pela cara dele eu achei que ele estava usando nome falso. Eu não sei como consegui esse feeling para pegar mentirosos. Talvez de tanto negociar com os gerentes belgas e com os despachantes aduaneiros na máfia.

Nos acomodamos para esperar a viagem. Eu até tentei dar um cochilo, mas logo seria servido o jantar. Fiquei de olhos fechados pensando naquela figura ali do meu lado.

Eu simplesmente sabia que aquele nome não era o verdadeiro, e então, de imediato, como que num sopro mágico, veio na minha mente: Ali estava um agente secreto.

Foi aí que a sigla fez sentido.

Eu sabia! Eu sabia que tinha visto aquela sigla! Ela estava num livro que eu tinha lido há muitos anos atrás, sobre uma organização secreta do Vaticano, chamada “O Círculo de Octogonus”. Esse homem certamente pertencia a Santa Aliança – hoje conhecida por outro nome “A entidade” – o serviço secreto mais antigo e mais eficiente do mundo. Por isso, ele tinha ficado incomodado quando eu olhei para o papel.

“Então, senhor Simon… O senhor pesquisa o quê para o João Paulo Segundo?”
“Bem, não exatamente para o Papa, mas para um… Um… um… (ele estava gaguejando, imaginei que estava tentando falar sem entregar algum segredo) …consórcio de pesquisas internas do Vaticano sobre a física quântica…”

Se até no nome o que ele dizia parecia mentira, você certamente concordará que puxar “física quântica” para o Vaticano pareceu meio despropositado.

“Então o senhor é um físico?”
“Podemos dizer que sim, mas não dos melhores. Mas trabalho com eles.”

Simon disse rindo, e ali eu senti um tom de forte mentira. Ele era bom. Ele sabia que era e estava tentando soar humilde pra mim, não sei o motivo, afinal mal nos conhecíamos. Talvez ele estivesse temendo que eu fosse algum agente da KGB ou do MI6, sondando ele.

Passamos a conversar amenidades. Quanto mais ele falava, mais eu ia observando suas características, e como ele parecia assertivo ao falar sobre o que ele dominava. Eventualmente nosso papo derivou para tecnologia e computadores. Eu disse a ele que havia acabado de comprar um computador IBM para meus filhos e agora havia briga em casa para usar o computador.
Aproveitei para perguntar se ele tinha filhos, ele me disse que não, e passou ame contar uma história muito trágica de como sua esposa grávida morreu atropelada no Queens.
Nesse momento, testemunhei uma forte emoção que tomou conta dele, e o vi pegando o lenço para enxugar as lágrimas.
Sem saber como agir, peguei minha carteira do bolso e mostrei a ele as fotos das crianças. Ele elogiou a beleza da minha esposa Lucy. Então, vendo que talvez eu estivesse mostrando pra ele a família que ele nunca mais iria ter, guardei a carteira e tentei trocar de assunto, falando do ar condicionado do avião.

A essa altura ele havia também pedido a comissaria um uísque para ele e eu mandei vir outro pra mim. Quando fomos servidos, brindamos e voltamos a falar sobre amenidades, o que nos levou a falar sobre filmes.

Eu havia acabado de assistir o filme do Scorsese “A ultima tentação de Cristo” e ele também.

Meu anovo amigo Simon, agora muito mais aberto e falador, devido às propriedades mágicas de um Scotch 12 anos,  confessou que ficou muito impressionado e num segundo fugaz falou algo que eu ainda não sabia naquele momento, mas iria provocar uma das mais estranhas experiências de minha vida:

Ele disse “…Eu gostei daquele rapaz que interpreta Jesus… (ele estava falando do Willem Dafoe) …Ele é mesmo muito parecido com o verdadeiro… — E prosseguindo na frase sem sequer perceber o que havia me dito, continuou — …Sabe aquela hora que ele pega uma pedra e traça um círculo no chão? Foi bem assim mesmo e…

Eu fiquei parado, bebendo um golinho do meu copo e então ele pareceu cair em si e percebendo que falou demais, se retraiu rapidamente, o que só me deu uma enorme certeza de que Simon havia sido traído pela língua.

” Bem, isso ninguém sabe, ninguém sabe, não é mesmo?” — Ele sorriu amarelo.

“Sem dúvida.” Respondi. Mas para não deixar o assunto morrer, levantei a bola para “Mas o que você achou do Bowie como Pilatos?”
Meu amigo Simon deu uma risada um pouco alta, fazendo uma senhora da fileira em nossa diagonal se virar de cara feia para trás.  Ele percebeu e sussurrou:

–“Nada a ver. Pilatos era bem mais gordo e o olho não era daquele jeito. Coisas de Hollywood. Sabe como é: Vamos botar o astro de rock e atrair uma molecada para o cinema!”

— “Simon, você parece conhecer bem a História de Jesus, não é?”
Simon apenas sorriu e me fitou no fundo dos olhos. Então ele falou assim:

–“Mais do que qualquer um no mundo, senhor McKinnon.”

Eu senti que era a verdade.

— “Por que um físico se interessa tanto por história e religião, senhor Simon?”
–“Bem, tem essas pessoas que gostam de Jazz, outros gostam de carros de corrida, você sabe. Eu sou um, digamos, aficionado pelos tempos de Jesus. E o senhor? Também gosta?”

Talvez por força do uísque – que a essa altura já era meu terceiro – acabei falando o que não devia:

–“Eu não acredito em nada dessas balelas. Pra mim Jesus foi inventado, e tudo aquilo que fizeram foi só para controlar as pessoas…”

Imediatamente Simon pareceu levar um choque. Ele ficou quieto me olhando. Pareceu um pouco triste. Olhou para baixo e manuseou os seus papéis no colo em tenebroso silêncio que me fez sentir mal por expor meu ateísmo cético. Estava claro pra mim que apesar de cientista -ou agente secreto – Simon era, antes de tudo, um crente.

Temi ter ferido seus sentimentos e me culpei por ser tão delicado quanto um elefante numa loja de louças.

Nisso, a comissária apareceu com o carrinho perguntando do jantar e felizmente a decisão entre massa ou carne afastou um pouco aquele clima.
Pedimos massa. E um vinho de boa qualidade acompanhou. Entre garfadas no meu Fettuccine ao molho branco e o vinho tinto, pedi desculpas por minha resposta tão contundente ao meu companheiro de poltrona.

Eu era um ateu convicto, mas isso não me tornava uma pessoa com ódio da religião ou mesmo da História de Jesus. Eu justamente gostava porque achava que era uma história muito boa, feita por muitas pessoas através de séculos, e disse isso a Simon.

O físico assegurou que não havia problema algum com isso, e começou novamente a me explicar que ele não era exatamente um crente. Ele apenas “sabia” como eram as coisas. E ele me disse com tanta certeza, que me intrigou como ele estava literalmente convencido de Jesus e tudo mais.  Era estranho para um cientista.  Eventualmente, nossa conversa (já na sobremesa) terminou numa frase:

— “Mas isso é sua fé. Você não sabe, você acredita. Acredita tanto, que sua mente o convenceu de que você sabe.” — Afirmei taxativo.

Simon apenas me sorriu, saboreando o pudim.

Vendo que daquele mato não iria sair coelho, resolvi deixá-lo em paz. Peguei meu tapa olhos pedi licença e me virei para a janela. Em minutos eu estava dormindo pesado, cheio de vinho na cabeça.  Sonhei com leões do Zoológico.

Só fui acordar quando uma criança desatou a chorar. Levantei meu tapa-olho e vi que já estava de dia. O sol entrava forte por algumas janelas do avião. As poucas que estavam abertas. Meu amigo do bigodinho dormia segurando os papéis. Aproveitei para dar uma olhada no que era possível ali sob a mão dele.  Parecia um trecho de um relatório, um memorando, cheio de siglas.

Logo a comissaria veio com o carrinho oferecendo o café da manhã. Meu amigo acordou todo amassado.  Disse que ia mandar arrumar um tapa-olhos daquele e um protetor de ouvidos porque a criança estava fazendo um verdadeiro escândalo no nosso voo.

Não me lembro bem como foi, mas no café da manhã voltamos a falar de nossas crenças e sobre  Jesus e o que ele imaginava saber.

–“Não, Doug. Eu sei. Entenda, eu não acho que é, eu não imagino que é. Eu sei porque… ”

Então ele meio que se tocou e tentou parar de falar bem no meio da frase. O porque saiu quase como um arroto baixo. Mas então, eu não ia deixar essa bola quicando no meu campo. Disparei à queima-roupa o argumento definitivo:

— “Sabe como? Você não estava lá!”
–“Eu vi, Doug. ” — Ele sussurrou.

Nesse momento, eu comecei a temer que talvez estivesse viajando de avião com um mitomaníaco. Talvez ele estivesse apelando para invencionices apenas para não perder no argumento. Sabe como são os cientistas e sua vaidade que beira o patológico. Parei e perguntei a ele:

–“Você Viu?”

Simon balançou a cabeça assertivamente comendo a ultima colherada no potinho de salada de frutas. Depois, entregou o material com o resto do suco de laranja para a comissária que estava recolhendo as bandejas e o lixo.
Quando voltamos a ficar a sós, notei Simon olhando ao redor para se certificar de que todos no voo estivessem distraídos.

Uns liam a Newsweek, outros ainda estavam dormindo, a velha estava fazendo palavras cruzadas e o bebê havia finalmente aliviado um pouco o berreiro.
Simon ajustou a poltrona, se aproximou de mim e falou baixo, tão baixo que quase nem consegui ouvir direito:

–“Eu trabalho com um equipamento do Vaticano que é capaz de mostrar imagens do passado. Mas é secreto.”

Entre a total incredulidade e a perplexidade de me deparar com um mentiroso de tal calibre a 30.000 pés de altitude, eu fiz o que sabia fazer de melhor: Eu dei corda!

Simon então começou me fazendo jurar segredo sobre o que iria me falar. Obviamente, prometi nunca contar a ninguém.
O cientista ao meu lado começou me falando que o projeto começou com um padre que era físico, chamado Pellegrino Ernetti. Ele começou a servir a igreja e a humanidade a partir dos 16 anos. Além do sacerdócio, foi um estudioso musical e também um exorcista proeminente. Ele tinha grande interesse em assuntos ocultos, mas o fato mais fascinante sobre Ernetti foi seu amor pela Física quântica. Esse carinho o transformou em um cientista, e entusiasta de um novo tipo de ciência, que segundo ele soube, era uma tentativa de comunicação com “pessoas mortas”.

Simon disse que naquela época, o Vaticano tinha montado um laboratório desse tipo de investigação, que era na época o mais avançado do mundo. Ernetti era extremamente engenhoso e curioso e começou a construir equipamentos visando uma comunicação com seres desencarnados, e até segundo ele, “de outros mundos” usando tal dispositivo. Não era bem claro como, já que Simon não deu detalhes, mas Ernetti conseguiu um positivo sucesso nessa comunicação com seres chamados de “Povo do outro lado”.

Essas pessoas orientaram Ernetti no desenvolvimento de um sistema de antenas, que consistia em múltiplas  faixas de captação de ondas possíveis de som e luz.

O dispositivo tinha uma ferramenta de localização de direção. E com a ajuda de comprimentos de onda, a ferramenta era ativada e recebia sinais. O dispositivo precisava, no entanto, de um elemento complicado. Era chamado “O canal”.

O canal era uma pessoa. Por alguma razão, a chave para o funcionamento daquele aparelho dependia fundamentalmente da presença de um certo indivíduo. Foi necessária uma longa busca para localizar o “canal”. Ernetti finalmente conseguiu um menino órfão, de nove anos, vindo de um orfanato Católico em Gallipoli chamado Miguel Geri.

Tempos depois, eles descobririam que o aparelho só funcionava com crianças até 10 anos.

Miguel era dopado com um tranquilizante leve. Depois seu corpo era atado a uma cadeira onde duas hastes de cobre eram presas em suas mãos. Essas hastes levavam a um aparelho complexo.  Era necessário esperar até que Miguel G. começasse a dormir para que o aparelho funcionasse em plenitude. Isso vinha durante o estágio REM do sono.

Inicialmente, Ernetti pensou que o aparelho que ele construiu era um dispositivo para registrar em imagens estáticas os sonhos do menino, mas conforme as comunicações com “o outro lado” continuaram, mais e mais informações levaram Ernetti a entender que ali estava não uma máquina de ver sonhos, mas uma máquina de ver o tempo. A essa maquina ele deu o nome de “Cronovisor”.

Mas o Cronovisor tinha um problema: Ele de alguma maneira levava o pobre Miguel G. à exaustão física. O menino ficava terrivelmente debilitado após cada sessão.
Um intenso trabalho foi feito e o Vaticano, diante das primeiras provas de que Ernetti estava certo, investiu fabulosas somas de dinheiro no aperfeiçoamento daquela máquina.
Ernetti então mobilizou uma equipe de doze cientistas para trabalhar no equipamento sob sigilo. Em paralelo, o serviço de inteligência do Vaticano foi acionado para encontrar outra criança no mundo que pudesse oferecer o serviço de “canal”. Miguel G. Morreu quando fez exatos dez anos, após diversas tentativas de verificar a história de Jesus no aparelho.

Os cientistas que trabalharam nesse projeto já haviam conseguido saltar tecnologicamente de imagens estáticas para curtos trechos em filme. Mas isso veio com um preço muito alto a pagar. Infelizmente, a perda do canal impossibilitou as pesquisas por nada menos que sete anos.

Após sete anos de buscas, mais de 100 crianças foram aprovadas nos testes iniciais para serem usadas como uma parte do cronovisor. A maioria delas foram sequestradas, e acabaram sendo sacrificadas no processo. Segundo Simon, esse foi um tenebroso e triste “efeito colateral” da pesquisa do aparelho. Uma verdade que a Entidade enterrou o mais fundo que podia.

A essa altura, Simon parecia tão sério e verdadeiro, que eu já não me questionava em absolutamente nada. Apenas absorvia com total atenção tudo que ele me contava, porque com aqueles nomes, datas e informações técnicas, ele não tinha como estar inventando tudo aquilo!

–“Mas o que deu? Conseguiram fazer funcionar?” –Perguntei afoito.

Simon moveu sua cabeça positivamente, e me contou que Houve um grande “erro” no projeto. Ele me disse que Ernetti havia falado com um amigo, que julgava de sua total confiança sobre o Cronvisor.  Sem que pudesse impedir, esse amigo revelou os fatos ao jornal Domenica Del Corriere, que acabou publicando a história.

Logo, Ernetti se viu cercado por jornalistas. O grupo de desenvolvimento do cronovisor percebeu o grande risco dos jornalistas especulando sobre a máquina. Logo, um gabinete de crise foi montado no Vaticano. Nele, os sacerdotes do Vaticano, do serviço de espionagem Papal e da contraespionagem, o Sodalitium Pianum decidiram estabelecer uma contrainteligência para descredibilizar os rumores do Cronovisor. Assim, imagens claramente falsas seriam atribuídas ao Cronovisor, e depois elas seriam desmascaradas levando o assunto ao descrédito, criando também uma cortina de fumaça para as operações e pesquisas com o aparelho.
Isso então foi feito usando a foto de uma estátua e fotos de pinturas e correu exatamente conforme planejado. Queimados, os jornalistas do Domenica del Correiere saíram da jugular dos pesquisadores e o trabalho continuou. Mais seis crianças pereceram durante os estudos.

–“Você tomou parte nisso?” — Questionei surpreso.

Simon olhou para o alto e disse que não. Ele falou apenas que fazia parte do “terceiro grupo”. Eu não soube bem o que esse grupo fazia. Quando ele entrou no projeto, o  projeto cronovisor já estava começando a ser desmantelado.

Fiquei curioso pois me parecia um contrassenso. Algo que já havia levado à morte de tantas crianças sequestradas de suas famílias em todo o mundo pelos agentes do governo do Vaticano… Foi então que Simon me disse algo que me arrepia até hoje:

— “O povo do outro lado… Eles não eram confiáveis!”

Segundo o homem da poltrona ao meu lado naquele voo, o “povo do outro lado” parecia muito interessado em que nós aperfeiçoássemos o cronovisor conforme suas orientações. Muitas vezes, esbarramos em impedimentos teóricos da Física e da Matemática, e eles nos deram respostas que avançaram em muito nossa compreensão do universo. Mas de alguma forma, alguém dentro dos círculos mais altos na Cúria Romana, que Simon suspeita que seja o próprio Papa, estabeleceu que “o Povo do outro lado” estava interessado em abrirmos um canal direto entre nós, neste lado e eles do outro lado. Mas a troco de quê?

Antes que pudéssemos entender se estávamos cegamente construindo uma arapuca para nossa própria existência, veio a ordem papal de desativar tudo e paralisar o projeto. Simon trabalhava no terceiro grupo de desativação. A máquina era tão sofisticada que o segredo dela não poderia estar ao alcance das pessoas que estavam trabalhando nela. Grupos de pesquisas separados e compartimentalizados foram usados para o desmanche do projeto.

–“Mas então você viu o aparelho funcionando?” — Perguntei.
–“Sim”, ele disse. “Vi Jesus e pelo menos quatro dos Apóstolos, mas não sei qual é qual”.
–“Simon, o que foi que você viu que mais lhe impressionou?”
Simon ficou em silêncio um tempo. Pegou o lenço do paletó e passou no bigode. Estava nervoso, parecia tremer um pouco. Ele chegou bem perto do meu ouvido e sussurrou:

–” Eu vi… O inferno.”

Questionei aquele homem sobre sua visão. Não seria um tipo de imagem gerada pela mente das crianças?

Ele negou. Disse que os grupos de pesquisa haviam conseguido aperfeiçoar o aparelho ao ponto de encontrar pontos específicos da História e alguns deles realmente desconstruiriam totalmente o que sabemos. Mas alguns dos fatos Históricos eram reais, como Jesus. Ele então desabotoou o cinto de segurança, foi até o compartimento superior de bagagem de mão e pegou uma pasta de couro. Ele voltou a se sentar, abriu a pasta e mexendo nela puxou um envelope pardo não muito grande, que estava fechado com elástico. Enquanto abria ele foi dizendo:

–“Havia uma menina, chamada Mary Knight, que era muito forte. Essa menina nos permitiu ver outros planetas, lugares ainda desconhecidos no espaço… E então, um dia, ela nos permitiu ver algo que ninguém esperava. Nós vimos o que muitos concordam que é o inferno. E aqui está ele. Ele apareceu nos cronovisors quatro, seis e sete…” — Disse, estendendo o envelope pra mim.

Ali dentro estavam algumas fotos impressionantes. Nela, uns aparelhos de televisão meio antiquados ligado num monte de fios mostravam imagens de escadarias e construções estranhas.

Eu estava perplexo diante daquilo. As horas haviam se passado rapidamente. Foi o voo mais estranho da minha vida.
Pegamos um pouco de turbulência e o avião começou a balançar.

Simon se amarrou correndo na cadeira e tornou a suar em bicas.
Devolvi o pacote com as fotos polaroid do aparelho e ele enfiou no bolso do paletó.
Eu tentei em vão acalmar aquele pobre homem.

–“Como está o projeto agora?” — Perguntei tentando fazer com que Simon concentrasse em outra coisa e não na possível queda do nosso avião.
–“Estamos trabalhando em outro equipamento, mas não posso falar dele.”
–“Uau… Mais complexo?”
–“Muito mais… E temo dizer, meu caro, talvez até mais perigoso!”
–“Mas e o Papa?”
–“Ele está perdendo força lá dentro. Carol não durará para sempre. Em breve virá outro papa, e há grupos interessados na retomada do desenvolvimento. Acredito que o próximo Papa irá conduzir o experimento. Rumores internos já indicam isso.”
Fiquei em silêncio olhando pela janela. Já estávamos descendo em Lisboa.
Enquanto pousávamos, perguntei o que ele achava do próximo Papa.
–“Doug, o que eu sei é que se tivermos problemas sérios, do tipo grave mesmo, o próximo Papa não terá escolha. Ele vai ‘jogar a toalha’.”
–Hã?
–Vai renunciar… — Ele disse.– …Depois vão desmontar tudo novamente. Mas ai talvelz o estrago já esteja feito.

O avião taxiava até o portão para desembarque.

–Como assim? Isso é loucura. Nenhum papa jamais renunciou! Eles morrem no cargo. E aí? Ainda vão sequestrar as crianças?
–Veja, Doug. Esse…É o preço do progresso. Infelizmente.

Apertou minha mão com força, pegou sua malinha de couro e desceu, junto com os passageiros que estavam saindo do voo naquela escala. Nos despedimos e vi o homem magro e bem vestido saindo pela porta lá na frente.
Me estiquei na poltrona.
Quando o avião voltou a cabeceira da pista para decolar na direção da Itália, um passageiro me chamou e apontou o chão. Ali eu vi o envelope pardo com as fotos. Simon havia deixado cair ao se levantar apressado.
Guardei comigo e nunca as mostrei a ninguém. Até hoje. Aqui estão elas:

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Excelente conto! Mas se me permite dizer, o ChronoVis não funciona através dos sonhos das crianças. ele funciona com sangue inocente, pode ser ativado mediante sangue vertido por alguém que sofre uma injustiça nessa terra e paga com sua vida. Geralmente são usados homens presos injustamente (de forma proposital pra manutenção do projeto), mulheres e crianças vítimas de abusos.

    O processo como um todo é simples, o sangue dessas pessoas é drenado durante o que posso dizer ser praticamente uma sessão de execução formal, onde eles são amarrados a uma cama e recebem cortes letais nos braços e no pescoço.

    Há alguma relação com a própria morte do Cristo. O sangue é como um preço, o sofrimento e o custo da morte, seu lastro, nesse meio onde nosso mundo é os outros estados de existência se tocam. Quem, nesse encontro, faz a troca de “valores” é justamente quem hoje teimamos em chamar de “o mal”.

    Não nos permitem falar muito sobre isso e muito menos ter acesso total ao que é revelado nessas trocas, mas o pouco que sabemos vem dos nossos contatos dentro da “linha de producao”. Aliás, sabemos bem da consequência de falarmos demais. Há inclusive hoje um departamento todo desenvolvido pra caçar quem ousa tornar público esse tipo de informação. Você sabe se a caça deu certo quando alguém subitamente morre de “causas naturais”.

    Como eu sei disso? Sou parte. Meu papel é selecionar combustível aqui do Brasil e, é claro, exportamos crianças, muitas delas oriundas de sequestros ou compradas de famílias bem pobres. Atuamos sob o disfarce da caridade, num orfanato católico que é referência em todo o país. Nosso negócio é conhecido apenas por alguns membros da CNBB, que por dinheiro não somente se calam, mas acobertam com muito cuidado. Preciso ser sincero, eles acreditam que as crianças serão vendidas para pessoas na europa, não fazem ideia do Real objetivo.

    A ChronoVis, hoje, não só mostra passado, ela realmente mostra planos distintos de “vida”, inclusive nos recipientes cósmicos onde o espaço-tempo não atua (e acreditem, já sabemos também que o que chamamos de tempo é parte do projeto de prisão que nossos corpos arrastam no que conhecemos como planeta.)

    Os mortos, ou seja lá o que você entenda sobre quem já abandonou sua cela, não são confiáveis, muito menos os filhos do grande Erro, o nome dado ao momento onde o Criador teve sua obra alterada pelo contato entre os seres que eram como guardas de nossa prisão, ainda no início do firmamento. Lá, nosso código foi alterado e sim, essa história existe até hoje e está nos apócrifos que o Vaticano guarda com zelo. Sei que o Criador hoje sofre ao ver algo tão terrível como nosso equipamento. Ele, se é que posso dizer isso assim, não pode sequer ser captado nos sinais e nossos contatos extra-prisão não se atrevem a se rebelar. Tudo permanece assim, Ele, aguardando pra cumprir sua professia e finalizar a parte rebelde, e nós, juntos dos outros, tentando achar meios de parar o inevitável. Tudo tem seu tempo, tudo sua ordem. Será.

    É o fim. Me cansei, olho pra minha família e penso no tanto de sorrisos que roubei e, por motivo que não entendo, me entristeço pelo que fiz ao Criador.

    Cani da caccia, sabem onde me encontrar. Só peço que sejam breves.

    Até o fim de tudo, até o julgamento.

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