Estranha obsessão -Parte 3

Arnaldo veio direto na direção de Carlos.

-O que está fazendo? – Perguntou de forma quase mecânica.
-Eu, eu estava tentando ligar para a emergência, claro.
-Deixa que eu ligo. – Disse Arnaldo, pegando o telefone das mãos de Carlos. No momento em que se tocaram, mesmo que por um brevíssimo instante, Carlos sentiu as mãos frias de Arnaldo. Imediatamente flashes de memória surgiram. Ele quase podia rever Arnaldo com sua expressão vazia enfiado naquele macacão inteiriço preto, enquanto o alien carrancudo lhe enfiava aquela coisa na cabeça.

-Liga aí! Liga aí. Eu vou ali acudir ela! – Disse Carlos, quase tendo um ataque de medo. O coração batia na boca. O olhar vazio de Arnaldo parecia varrer-lhe a mente como um raio X. Carlos ficou trêmulo, tentou disfarçar. E sem saber como lidar com aquele turbilhão de confusão, medo e angústia, saiu correndo.

-Você tá bem? Yara? Yara? – Ele disse, assustado, segurando na mão dela. Na mesma hora, Yara sacou que já era o momento de encerrar o teatrinho e fingiu recobrar os sentidos.
-Que? Hã? O que foi? – Ela perguntou.
-Ela está voltando, gente. Vamos abrir pra dar um ar, afasta aí! – Gritou a Neide, empurrando o pessoal para trás.

Minutos depois, Yara ficava de pé, amparada por Carlos e Neide, que estava acreditando piamente na atuação de Yara.

Eles passaram levando Yara, que fingia estar meio zonza. Enquanto passavam, Carlos olhou discretamente para trás.

Parado em pé na frente de sua mesa estava o Arnaldo. Os olhos fixos nele. Arnaldo não movia a cabeça, apenas os olhos… E aquilo dava-lhe uma aparência bastante ameaçadora.
Eles foram até o outro andar.
-E agora? – Perguntou Neide no elevador.
-Segura as pontas aí que eu vou levar a Yara ali no posto de saúde.
-Tem um logo ali na Dois de Março. – Disse Neide. – Quer que eu ajude a levar? – A peituda perguntou.
-Não, não precisa. Eu já estou melhor… Acho que nem é o caso… – Disse Yara, se arrumando diante do espelho. ]
-Não senhora! Vamos lá sim, medir sua pressão. Né Neide?
-É menina, não pode ficar de bobeira com saúde não… Sabe que eu tenho um tio que morreu de tanto…
-Neide, ok, ok! Já chegou no nosso andar, tá? Mais tarde a gente conversa. Brigadão pela força aí. Como já são quatro e meia, a gente só volta amanhã, tá?
-Beleza crianças. Se precisarem de mim é só ligar. Deixa que eu seguro as pontas aqui. Yarinha! Vai com deus milha filha! Qualquer coisa já sabe, né? Tô aqui para o que der e vie…- A porta do elevador fechou antes que Neide terminasse a sucessiva, quase infinita lista de recomendações e bênçãos.

-E aí? – Perguntou Yara, quando se viu sozinha com Carlos no elevador.
-Caralho, Bibi! Caralho… Só digo isso. Ca-ra-lho!
-Como assim Cacá?
-Ele está se comunicando com eles, Bibi!
-Ah, não é possível.- Diz Yara. – Vc ficou maluco, Cacá.
Aporta do elevador se abre e eles vão para a garagem. No caminho continuam a confabular.

-Você viu… Ele é estranho. E a mão gelada? E o olho? Percebeu que ele quase não psica?
-Você está imaginando isso! Ó, Cacá, eu não quero mais tomar parte nessas suas maluquices. Me leva pra casa tá?

-Pelo menos vamos sair mais cedo!
– Ah, pelo menos isso. Bom que não vai ter engarrafamento hoje. Fica a maior confusão por causa daquela obra lá do viaduto.
-Falando nisso, em confusão… O que foi aquela sua interpretação do desmaio, hein Bibi?
-Foda, né?
-Que isso, meu! O cinema mundial está perdendo uma grande estrela! – Disse Carlos.
-Tá, agora para de puxar o meu saco e v~e se presta atenção aí, ó. Você acabou de furar um sinal.
-Ih, caceta! Será que vai dar multa?
-Provável, eles estão chutando o balde com essas maquininhas de multar…

Os dois foram para casa. Carlos estava esgotado, chegou em casa, comeu um cachorro quente com pão francês, caprichado na maionese e bebeu uma taça de vinho Merlot.
Enquanto comia, na cozinha, pensou em quão chique era comer “podrão” com vinho importado. Pensou em ver Tv. resolveu dar uma olhada no que estava passando. Ao ligar o aparelho, Carlos colocou no documentario. Era um documentário que ele ja tinha visto umas dez vezes sobre as borboletas Monarca. Elas migram aos milhões em certas épocas do ano… No documentário, apareceu uma outra borboleta, que não era a monarca, mas teria evoluído numa forma incrivelmente similar. Os cientistas teorizavam que a razão daquilo era para se passar por um animal que tinha gosto ruim para os pássaros. Antes que Carlos desligasse a Tv, ouviu uma frase que até aquele ponto parecia meramente inocente:

-Muitos animais usam da camuflagem como uma forma de escapar dos predadores. Mas muitos predadores também se disfarçam como suas presas, para se aproximarem delas sem serem notados…”

Carlos desligou a Tv e se jogou na cama. Durante a noite, Carlos não tirava aquela misteriosa expressão de Arnaldo da cabeça.
Estranhos pensamentos começaram a lhe assaltar na escuridão do quarto.
-“Merda, eu tava morrendo de sono. Agora eu deito e fico aqui fritando bolinho…” – Pensou.
Enquanto se concentrava em dormir, volta e meia se pegava analisando e conjecturando coisas do dia. Lembrou do desmaio de Yara e dos comportamentos das pessoas do escritório. Estabeleceu ali uma comparação entre a reação das pessoas normais e do Arnaldo. De fato, algo ali não batia bem. O que seriam aqueles cliques que ele ouviu no telefone? Aquele som não lhe era estranho e ele ficou tentando se lembrar de onde já tinha escutado aquilo. Então lhe veio uma memória num insight, um lampejo de consciência que lhe clareou tudo. Ele ouviu aquilo pela primeira vez na nave!
-“É a língua deles!” – Pensou. – “Só pode ser.”
Carlos sabia que de alguma maneira aqueles seres conseguiam se comunicar mentalmente, então estavam usando o telefone por alguma estranha razão. Então, ele lembrou-se do documentário. A frase… O telefone talvez fosse apenas um elemento de disfarce, um tipo sofisticado de mimetismo, mas se fosse somente o mimetismo, qual seria o sentido dos cliques?
“Fato é: Se há cliques, eles estão enviando alguma coisa. Talvez informações, talvez ordens…” – Refletiu Carlos.
Então, por um breve instante Carlos conseguiu manter sua mente livre de pensamentos. Preparava-se para dormir quando outro pensamento, este bem desagradável, o assaltou de surpresa.
Se os seres pudessem ler mentes, qual a garantia de que Arnaldo não teria completa ciência do que ele e Yara aprontaram? E se naquele brevíssimo segundo em que a mão fria do Arnaldo tocou o braço dele, o alien tivesse adentrado seus pensamentos. Seria a mente humana frágil ante o poder mental dessas criaturas? Se isso fosse verdade, talvez naquele exato segundo Arnaldo tivesse acesso ao fato de que Carlos agora sabia do que se passou na nave e estava enterrado na penumbra de uma amnésia artificialmente gerada.

Nisso o telefone tocou.

Carlos levou um susto que chegou a quicar na cama.

-Alô? – Ele atendeu. Mas não falaram nada.
-Alô! Alô! – Carlos insistiu. A ligação estava ruim, meio chiada, mas ele quase teve certeza de ouvir um som baixo, parecido com os cliques vindo do outro lado.
-Quem está falado, porra? – Carlos estava nervoso.

Então desligaram.

Se antes ele estava nervoso, agora estava sem ar! Eram eles! Eles! Definitivamente!

-“Por que me ligaram? O que querem comigo?” – Pensou.
Ah, talvez não fossem eles. Talvez aquilo fosse apenas um engano… Como as botas sob a cortina. – Tentou se convencer. Mas logo depois, o pensamento voltava ao círculo de suposições e medo: – “Seria aquela ligação para sondar se eu estava em casa? Ou seria um aviso? Uma ameaça velada, agora que eles sabem que eu sei que eles estão aqui?”

Carlos afastou-se do aparelho. Correu para trancar as portas e as janelas. Após verificar que estava seguro, ficou encolhido na cama. E tremia.
Frio? Medo? Um pouco dos dois talvez.

Levou um bom tempo até ele conseguir anular todos os pensamentos negativos que insistiam em desfilar na sua mente, e finalmente dormir.
Já haviam se passado muitas horas quando uma luz sobrenatural entrou pela janela do quarto. Carlos acordou de supetão. A luz se apagou na janela, mas não rápido o suficiente para que ele não a visse.
-Putaquepariu! – Gemeu…
Carlos saltou da cama a e correu até a janela. Escondeu-se atrás da cortina e observou pela greta.
Ele viu, ao longe, num terreno baldio que ficava a umas duas quadras dali um objeto escuro que se moveu lentamente pelo céu. Ele só percebeu porque estava chegando na época de natal e os vizinhos de uma casa longe tinham feito uma papagaiada enorme de luzes na casa. Quando a coisa escura passou na frente da casa e obliterou as luzes pisca-pisca, ficou claro que havia alguma coisa escura voando lá em baixo.

Carlos ficou sem ação. Sua garganta queria fechar e ele começou a tremer dos pés à cabeça. Estava empapado de suor. Suando frio. Veio a tontura.
-Fudeu… – Pensou ele, já sentindo as pernas começando a bambear.

Carlos se apoiou na moldura da janela para não cair. Uma nova crise começava a se avizinhar.
Ele olhou assustado para a rua e viu duas figuras sombrias se movendo sob a luz alaranjada do poste. Vinham do terreno baldio, na direção do prédio dele.
-São eles… Eles estão aqui! – Disse Carlos, com a mão na boca de horror.

Então ele pensou que precisava se controlar. Carlos firmou bem os pés no chão. Não podia se dar ao luxo de desmaiar agora. Aquela era a hora da verdade. Ele correu até a porta. Abriu com cuidado. E ficou parado, escutando.
Sim, aquele era um som inequívoco. Era o som do rangido da portaria sendo aberta lá em baixo.
Em seguida, o prédio voltou a ficar em um silêncio sepulcral.
Então ele ouviu alguns passos. E um enorme estalo. Era o elevador. O estalo do elevador ecoou vindo da casa de máquinas lá no alto. O motor ligou. O elevador agora estava descendo.

Carlos não sabia o que fazer. Agora era sério. Ele estavam vindo pegá-lo. Imediatamente ele se arrependeu de ter tentado aquela loucura com Arnaldo… Burrice! Ele devia ter pedido demissão e se mudado para Salvador de mala e cuia quando teve chance. Agora ali estava ele, fechando a porta da casa com cuidado para não fazer barulho e correndo descalço pelas escadas acima, numa tentativa vã de se esconder dos homens estranhos.

Carlos foi subindo os andares. Escondeu-se na escada do décimo pavimento e ficou olhando pela passagem de respiração da área de serviço, que era um vão entre as escadas.
O elevador ainda estava subindo e pela primeira vez ele agradeceu por ser aquele um prédio antigo com elevador pantográfico Atlas, lento e barulhento. Então o motor parou. A porta pantográfica e barulhenta se encolheu, e ele viu a luz âmbar do elevador iluminar fracamente o corredor escuro no andar dele. Agora já não havia mais dúvidas.

Carlos escutou os passos. Eles foram até a porta dele.
Enquanto montava mentalmente a cena, Carlos se mantinha em silêncio, tentando conter a respiração ofegante. Seu coração quase saindo pela boca.
Houve cerca de três minutos ou mais de silêncio. Aquilo já estava provocando nele uma crise de ansiedade. Carlos então se aproximou novamente do vão e viu a mão pálida, igual a de Arnaldo, tocar o corrimão da escada. Uma cabeça careca com olhos profundamente azuis surgiu no vão, olhando para cima. Carlos se se escondeu, desesperado.
-“Putamerda! Acho que me viram!” – Pensou.

Mas o silêncio continuou.
-“Talvez não tenha me visto… Estou no escuro…” – Tentou se consolar.

Mas foi aí que ele ouviu os passos nas escadas. Estavam vindo correndo.
Carlos disparou a toda velocidade escada acima, saltando de quatro em quatro degraus.

Chegou no terraço. Uma escada chumbada na parede dava acesso ao alçapão que conduzia ao telhado, onde ficava a caixa d´água do prédio. Carlos saltou para a escada da parede e trepou na direção do telhado.

O vento da madrugada era cortante e lambeu seu rosto.
Carlos podia ouvir os sons dos passos aumentando. Eles estavam chegando cada vez mais perto.

Ele saiu para o terraço. Estava escuro de modo que Carlos mal conseguia enxergar onde pisava. As telhas de amianto estalavam sob os pés dele.
Carlos correu pelo terraço, tentando encontrar uma saída, mas não havia. Somente viu um outro prédio, a construção vizinha, que era extremamente próximo na parte da área de serviço.

Ali de cima, Carlos ouviu os homens abrindo o alçapão. Já não havia para onde fugir. Lutar com dois era impossível. Ele seria facilmente abatido.

Carlos tomou distância, fez o sinal da cruz e prendendo a respiração, correu o mais rápido que pôde em direção à beirada. Ele se jogou no ar, esticando os braços. Os segundos passaram em câmera lenta, enquanto ele sentia um arrependimento crescente surgir no peito.
Então, veio o impacto.

Carlos atingiu com toda força o peito na parede. Ele conseguiu agarrar-se à mureta do terraço do prédio vizinho. Foi necessária uma força hercúlea para se içar e virar uma cambalhota desajeitada para dentro do telhado.
Carlos esgueirou-se pela calha e abaixou-se atrás da parede, onde um cano de escoamento passou a funcionar como uma vigia na parede, por onde ele podia ver sem ser visto.

Após uns dois minutos, ele viu os dois homens surgindo no terraço do prédio dele. Ambos andavam com certa facilidade entre as telhas, e não portavam lanternas. Pareciam enxergar como gatos na escuridão da noite.
Eles mal se olhavam. Agiam roboticamente. Nãos e falavam, e nenhum dos dois era o Arnaldo, mas eram parecidos nos modos. Eles vestiam roupas sociais, algo que na escuridão, parecia com jeans e jaqueta de couro, mas não dava para saber direito os detalhes, ainda mais vendo do estreito cano.

Os dois homens mais tarde apareceram lá na rua, onde iluminados pela luz do poste, Carlos notou que um era careca e o outro um barbudo cabeludo. Ambos estavam com roupas iguais, jaqueta preta e calça jeans. Pareciam completamente normais à distância.
Os dois seguiram para a rua de cima, indo na direção do terreno Baldio até sumirem atrás do galpão da quitanda.

-Caralho… Essa foi por pouco! – Sussurrou.

Carlos decidiu que não tinha condições de ficar em casa. Assim que conseguiu descer pelas escadas do prédio ao lado, pegou o carro e atravessou a cidade em alta velocidade, entrando nu motel. Ele precisou ligar a Tv e ver um filme antigo da Ginger Lynn em alto volume para poder dormir. Antes, ajustou o relógio para despertar de manhã, pois ele precisaria correr em casa para pegar algumas coisas.

No dia seguinte, Carlos apareceu esbaforido na borda da mesa de Yara.

– Cacá? Que cara é essa? Você tá bem? – Questionou Yara, vendo a aparência degradada do amigo.
-São eles, Bibi!
-Ah, não! Nem vem que hoje eu tô de bom humor! Hoje é sexta feira! Dia da cerveja… – Ela cantarolou a musiquinha.
Carlos meteu a mão no bolso, arrancou a fita e jogou sobre a mesa dela.
-Que isso?
-Apagaram.
-Apagaram?
-É… Não tem mais nada gravado aí!
-Como?
-Eles… Eles voltaram.
-Eles quem, criatura?
-Os etês Bibi! Eles foram na minha casa. Tentaram me pegar!
-O Arnaldo? – Yara sussurrou com cara assustada e incrédula.
-Não… Ele não. Homens iguais a ele. Bibi, presta atenção… Tô falando sé-sério! Eu acordei e vi a luz… Aí eles entraram no prédio e eu ouvi… Daí eu corri e…

Carlos contou tudo pra ela, que escutava em silêncio.

-E então, Bibi? O que você me diz?
-Sabe… Acho que você não está bem. Falando sério. Sou sua amiga, você sabe. Tô aqui para o que der e vier… Mas amigo… Você tem que assumir que está ficando doente…
-Porra! Não tou! – Carlos se exaltou.
-Shhhhh! Ô porra, Cacá! Quer pagar de pirado aqui?
-Desculpa.
-Calma. Calma.. Olha só… É normal isso, cara. Estresse… Esse lance dos fechamentos das filiais tá mexendo com você, Cacá. A morte da sua mulher, o Júnior… Isso não é fácil de digerir, meu amigo. E ainda vem aquele mexicano lá… Sua mente, sei lá… Deu tela azul, pô.
-Tela azul é o meu caralho! Porra, Bibi, como que você pode pensar que eu pirei? Você viu! Ele é estranho… Ele fica la sentado, com o telefone na orelha, não fala nada e disca sem olhar!
-Ele é estranho? É! Mas isso não faz dele um alien, né?
-Você diz isso porque não estava lá… Não viu. E a gravação que eles apagaram?
-Olha, primeiro que eu não ouvi a tal gravação. E se não tivesse nada na fita? E se você, sei lá… Imaginou?
-Imaginei? Você acha mesmo que eu sou pirado né? Eu ouvi, porra! Eu ouvi! E agora não tem merda nenhuma gravada aí! Sei lá… Desmagnetizaram. Isso é coisa do Arnaldo… Ele estava lá, eu vi! Eu juro que eu vi, Yara!
-La onde?
-Na nave… No meu… sequestro!
-Ah… É foda. Maldita hora que eu aceitei pegar essa bosta de fita do boiola mexicano! Ô piração!!!
-Eu te juro, por tudo que é mais sagrado! Eu tenho certeza… Ele é … Eu sei que parece retardado dizer isso, mas ele é… – Carlos sussurrou quase chorando – … de outro planeta!
-Tá… Vamos apenas supor… Veja bem, supor, que você esta certo. E o que ele esta fazendo aqui?
-Sei lá… Não pensei nisso… Me vigiando?
-Ah, então o senhor se acha tão importante para fazer um etê sair lá do caixa prego, do quinto dos infernos, da puta que o pariu, para vir aqui só te vigiar? …Ah, Cacá, não fode, viu? Conta outra!
-Os documentos!
-Que que tem?
-Eu consegui pegar a cópia. Copiei no fax da Márcia do RH quando ela foi no banheiro.
-Porra maluco! Isso dá demissão por justa causa! – Disse Yara.
-Pssss! – Carlos faz um sinal de silêncio colocando o indicador na frete da boca. – Olha… isso aqui… Eu levantei a ficha do cara… Ele não existe!
-Que merda é essa? Como não existe?
-Eu… Eu vi la ficha dele… O endereço dele… Eu verifiquei. É um terreno baldio.
-Endereço falso… Ou demoliram e ele não atualizou o cadastro. – Yara diz, bebendo água num squeeze.
-Olha Bibi, eu tenho certeza.
-Certeza, certeza, não tem não! A memória pode ter sido implantada. Você sabe! Eu já te falei que…
-Mas… Ele é estranho.
-Ah, merda… Lá vou eu de novo.
-Bibi, pelo amor de Deus, me ajuda!
-O que a gente vai fazer?
-Dá mole pra ele?
-O QUE?
-PSSSSS! Fala baixo porra.
-Ta pensando que eu sou puta?
-Não… Nada disso, tu vai se aproximar… Para sondar. Sei lá. Ele é estranho, né? Vc vai chegar perto e vai ver que essa estranheza dele é muito mais que apenas humana.
-Hummm. Você é o maior chave de cadeia da paróquia mesmo, né Cacá?

Carlos era chato. E também era tão persistente que Yara quase nunca conseguia ganhar dele, ainda mais quando ele entrava “no modo insistência”.
Então no fim daquela tarde, ela Yara foi lá falar com Arnaldo.
-Arnaldo?
-Sim?
-Você…. Topa tomar um chopp?
-Chopp?
-É.
-Eu… Não… Bebo. – Disse ele.
-Ah, tudo bem… É que todo mundo ia, mas aí a galera deu bolo. Eu não bebo sozinha. Poderia me acompanhar pelo menos?
-Veja bem, Dona Yara…
-Olha, você desde que chegou aqui não vai em nada, aniversário, festa de fim, de ano… Que foi Arnaldo? Vamos enturmar, pô! O pessoal já está te chamando sabe de que?
-Quê?
-Azeitão! …”O que não se mistura”! – Disse ela rindo, agarrando a mão de Arnaldo. Mas a mão era tão gélida que Yara largou assustada.
Arnaldo apenas olhava pra ela com os olhos azuis esbugalhados.
-Por favor? Vamos?- Ela perguntou, tentando disfarçar seu medo, quase sussurrando.
-Aceito. – Ele respondeu, também mecanicamente. Sem sorrir.

-Então até mais tarde. – Ela disse.
Yara virou-se e saiu, andando dura.

De longe, Carlos viu Arnaldo sacando mais uma vez o telefone e constando o aparelho no ouvido daquele jeito robótico. Só então notou uma peculiaridade que até então nunca tinha notado. Ele não parecia estar respirando.

Yara apareceu lá na baia de Carlos.
-Puuuta que pariiiu! – Ela disse sussurrando.
-Viu? Viu a mão dele?
-Ele ta morto, meu! – Ela disse. – Não tem como aquela mão ser de gente viva!
-É assustador, né?
-Cruzes!
-Viu como ele é pálido? E aquele olhão esbugalhado?
-Meu Deus… Eu tô com medo. Ele tem cara de doido!
-Você não sabe da maior!
-Hã?
-Eu acho que… Ele não respira! – Disse Carlos. Yara não falou nada. Apenas fez uma cara de estarrecimento, de boca aberta. Passaram-se alguns segundos com um olhando em estado de espanto para o outro.

-Confia em mim… Vai dar certo! – Carlos disse, saindo da baia e largando Yara em estado de choque ali.

Meia hora depois, ele estava no banheiro, cagando.

Carlos estava lendo o jornal. Notícias de economia, crise… Aquilo o distraía. Ele também gostava de ler o horóscopo, mas a merda do horóscopo é que eram textos pequenos, e ele acabava sempre lendo todos os signos do zodíaco de uma só vez, e isso gerava uma confusão enorme na cabeça dele, que já não sabia mais qual conselho era de Áries, qual de Escorpião… Então Carlos ouviu a porta do banheiro abrir.

Passos.

Carlos ficou quieto. Parado. Os passos vinham aumentando. Começou a sentir aquele frio na espinha…
Ele verificou se a porta do sanitário estava fechada. Estava.
Levantou os pés e esperou em silêncio.
Carlos ouviu os passos vindo. As portas lentamente se abrindo. Uma a uma elas gemiam num ranger ameaçador. A tensão aumentava.
Ele prendeu a respiração. Olhou do alto do vaso. Viu os sapatos lustrosos de Arnaldo. Os sapatos pararam na frente da porta dele.
Não houve um som sequer. A situação era deveras bizarra.
Então Carlos viu que a maçaneta da porta do sanitário estava começando a tremer. Ela começou a girar.

Carlos agarrou aquela tranca e forçou-a o mais que pôde. Começou então um estranho cabo de guerra. Foi quando houve um estalo. Seu coração quase saiu pela boca. Mas aí ele ouviu vozes, alguém entrou rindo no banheiro, contando piada. Nisso, Carlos olhou para baixo e já não viu mais os sapatos lustrosos de Arnaldo.

Ele esperou alguns minutos antes de abrir a porta.
Saiu do banheiro se tremendo todo.
Os dois caras da contabilidade estavam discutindo futebol com seus paus nas mãos enquanto faziam xixi na calha de inox no fim do corredor.
-Vocês… Viram o Arnaldo aqui?
-Quem?
-O Arnaldo…
-Aquele branco do segundo andar?
-Isso.
-Não, não.
Carlos agradeceu e saiu.
Voltou até sua baia, com medo, ressabiado.
Ao fim do expediente, ligou do celular para Yara e combinou de segui-los até o bar do Joaquim.

Carlos entrou no elevador. Ele estava esperando a porta se fechar quando viu Arnaldo surgir de trás da pilastra. Ele vinha decidido, aqueles olhos esbugalhados, azuis, fixos nele como um guepardo olha para a gazela. Algumas pessoas fizeram menção de tentar segurar a porta, mas Carlos foi mais rápido e apertou o botão de fechar.

A porta do elevador se fechou na cara de Arnaldo, que não se moveu nem se apressou. Também não demonstrou raiva nem surpresa.

Carlos respirou aliviado enquanto o elevador descia. Minutos depois, ele estava no carro. Os olhos prescrutavam a portaria da empresa à espera de Yara. Ela desceu, parou na porta e olhou discretamente para ele. Era o sinal.
Logo depois, surgiu o Arnaldo. Eles saíram pelas ruas, andando lado a lado.
Atravessaram alguns quarteirões. Chegaram ao bar. Ao longe, Carlos ia dirigindo, seguindo por entre os carros. Ele achou uma boa vaga e parou do outro lado da rua, bem oculto por uma banca de jornais. Carlos saiu do carro e esgueirou-se atrás da banca.

De lá, via perfeitamente Yara e Arnaldo sentados numa mesa estratégica, na varanda do botequim.
Ela pediu uma cerveja. Arnaldo sentado, tal qual um impecável manequim de cera.
Eles conversaram um pouco. Daí logo depois, Arnaldo levantou e entrou.
Carlos não entendeu. Ela olhou para trás. Daí a dois segundos, tocou o telefone no carro. Era ela.
-Que foi Bibi?
-Vou deixar ligado. Vai, ouve a conversa aí! -Ela disse.
-Ah, boa ideia, Bibi! Cadê ele?
-Foi no banheiro… E… Porra, não me chama de Bibi!
-Tá bom… Bibi.
-Ele ta voltando. – Ela disse antes de largar o celular displicentemente perto da bolsa, sobre a mesa. Arnaldo voltou do banheiro.

Então, Arnaldo… Conta ai! – Disse Yara jogando o charme.
-Contar o que?
-A verdade, ué! – Ela disse.
-Que verdade você quer que eu conte? – Perguntou ele, com seu olhar penetrante.
-Ah… Você… Assim, tão fechado… Tão… certinho… Né? A mulherada fica na duvida.
-Não entendo. Que duvida?
-Você é gay?
-Não. Não sou homossexual.
-E porque é tão certinho?
-Você acha que sou certinho?
-É… Digamos, que… O pessoal te acha, “esquisito”. -Disse Yara, fazendo as aspas com os dedos no ar.
Então algo estranho aconteceu. Arnaldo sorriu. Um sorriso estranho, parecia forçado.
-Então eu vou beber! – Ele disse. Arnaldo então levanta o dedo indicador no ar, em sinal para o garçom, e pediu um chopp.
-Êêêê! – Yara comemorou. – Ela se virou para o garçom: – Um não, dois que meu copo tá furado! – Yara tentava parecer informal e descontraída, mas era visível o clima de tensão entre os dois na mesa do bar do Joaquim.
Do carro, Carlos ia escutando tudo, sem perder os dois de vista.

Quando o chopp chegou, Yara pegou a tulipa e da um gole.

Ela então esperou que Arnaldo bebesse.
Quando ele estava bebendo, Yara disparou: – Então, Arnaldo? De que planeta você veio?

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Amigo, há aqui um erro. Não é Arnaldo, mas sim Carlos.

    “Arnaldo afastou-se do aparelho. Correu para trancar as portas e as janelas. Após verificar que estava seguro, ficou encolhido na cama, tremia.
    Frio? Medo? Um pouco dos dois talvez. “

      • Há mais um logo abaixo.

        “Arnaldo acordou de supetão. A luz se apagou na janela, mas não rápido o suficiente para que ele não a visse.”

        Eu não citei este, pois pensei que seria logo detectado. De resto, está tudo impecável.

        Parabéns pela trama. Ao ler, sinto-me na pele do Carlos.

  2. olha, leio o mundo gump desde que o descobri a uns 2 anos e desde então me tornei meio que viciado, principalmente nas histórias que você escreve. parece que gradativamente a qualidade delas vai aumentando sem indicio de que irá decair. como escritor (iniciante mas tá valendo né?) lhe parabenizo pela história simplesmente sensacional que está prendendo minha atenção cada vez mais e mais e quase não consigo me segurar quando vejo esse vendito ‘continua amanhã’. o misto de raiva e alegria por ‘hum, vem algo melhor amanhã’ é bizarro. mesmo que nao comente, saiba que continuarei frequentando o site enquanto existir
    abraços

  3. uau! está ficando cada vez mais um conto de suspense tenso!!! e com a Yara que não acredita nele,fica parecendo até aqueles filmes estilo “uma mente brilhante” ou “cisne negro”, onde não dá pra saber se é uma alucinação do sujeito, ou se está realmente acontecendo!!!! muito bom, esperando a parte 4!!!!

    • Então, cara. O layout antigo era extremamente problemático em alguns detalhes, como o peso. Ele continha cerca de dois mega de dados para baixar, o que atravancava muito, mesmo com maquinas superpotentes. Ele também dava problema demais, às vezes não carregava o site. Aquele layout simplesmente FODEU a audiência, porque ele abria direito para umas pessoas (provavelmente abria para você) e opara outras simplesmente dava tela cinza e nada abria. É por isso que eu recebi uma enxurrada de gente comentando que gostou que agora o blog carrega. Note que bizarro. Nego não esta me agradecendo pelo site ter ficado bonito ou rapido… Mas porque agora ele carrega! Então é por isso que pretendo ficar neste mesmo. Valeu?

  4. Oi,cara esse texto tá incrível!Eu tenho 15 anos e sou muito fã de astronomia e ufologia.Essa história tem tudo o que eu poderia esperar e muito mais.Continue logo porque estou a três dias fascinado por essa história.Parabéns pelo blog.

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