quarta-feira, dezembro 11, 2024

As crianças da noite – Parte 28

Leraje vinha para cima de Leonard, que esperava com a Kuran na mão. Leonard estava pronto para estocar a Kuran no demônio de cabeça de tentáculo quando percebeu o que estava acontecendo.

Leonard simplesmente parou. Estava disposto a morrer ali mesmo. 

Ele não iria matar Leraje. Era melhor morrer e deixar que tudo se acabasse daquela forma. Matar Leraje significaria dar avantagem ao Naberius na guerra da escuridão.

Leonard conseguiu perceber a manobra cretina daquele demônio com cara de galã. Naberius não iria retirá-lo dali para que ele se visse obrigado a matar Leraje. Era engenhoso o golpe.

Leraje se aproximou de Leonard com enorme fúria.

O demônio da cabeça de tentáculo ergueu Leonard no ar pelo pescoço. A mão poderosa do ser das trevas lhe apertava o pescoço. Rapidamente Leonard começou a perder os sentidos. Mas ele estava resignado. Aquele era o fim. Morreria nas mãos de um demônio, mas a Terra estaria protegida. Enfim, não havia morte mais digna para um caçador.

A última coisa que Leonard fez foi mentalizar o plano de Naberius para que Leraje pudesse percebê-lo na mente dele. Leonard não planejava morrer sem antes botar uma “lenha na fogueira”.

Imediatamente, a mão que lhe esmagava o pescoço afrouxou e Lenoard caiu no chão.  Estava frio. Estava escuro.

Em vez do som ensurdecedor dos demônios e criaturas horríveis que testemunhavam sua morte, só se ouvia o vento e o estrilar dos grilos. Leonard levou a mão até a cabeça. A vontade era de vomitar. Ele sentiu a pedra.

Sentou-se no solo e reconheceu o ressalto na encosta da montanha. Ele estava de volta.

Leonard ainda não entendia exatamente o que estava acontecendo. Talvez Leraje o tivesse tirado de lá. Era uma noite profunda e escura.  Leonard olhou para o céu e viu as estrelas em profusão. Ele ainda tinha Kuran em suas mãos. Guardou a adaga no bolso do paletó e começou sua jornada em direção ao sopé da montanha.

-Maldita escuridão! – Reclamou entre os dentes, enquanto se agarrava nas pedras antes de descer para a floresta.

-Entre! – Soou a voz fraca da velha atrás da porta cor de rosa, com tinta descascada.

Leonard abriu a porta. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele ouviu seu nome.

-Leonardo… Seja bem vindo, meu amigo. – Era a voz rouca e fraca da velhinha.

Leonard  caminhou até a sala e lá estava ela, sentada, com o bebê no colo. Leonard fez uma reverência em silêncio. O bebê tocou sua cabeça, enquanto a velha falava com a cabeça caída para trás.

-Então você conseguiu. Estou vendo. E os meninos? Mortos?

-Foi como você disse, não é?

-Nem sempre eu acerto, você sabe bem disso… – Falou o bebê pelo corpo da velha.

-Naberius tentou me passar para trás. Quase que eu… Bem, sabe como é.

-O que você esperaria de um demônio, querido? Hombridade? Honestidade? -Ela perguntou com visível menosprezo.

Leonard concordou.

-Sente-se. Ali o sofá. Não, ali é melhor. Esse tem baratas. – Disse a velha apontando uma poltrona surrada.

-Sabe, é muito estranho falar com você nessa condição. -Disse Leonard.

-Eu já me acostumei. O problema desse corpo é que ela é meio lenta para andar. E vem ficando pior a cada dia. Daqui a pouco ela já não conseguirá me segurar mais e eu terei que procurar outro corpo para…

-…Não é uma boa palavra. -Disse Leonard.

-…Parasitar?  Mas não é esta a minha sina, Leonard? O que eu posso fazer para impedir o destino?  Não é por isso que você está aqui? Você não quer mudar o destino?  É interessante que você venha até a mim em busca de algo que eu não posso fazer nem por mim mesma… – Constatou o oráculo.

Leonard concordou.

-Há destinos que não devem ser mudados. -Ele disse.

Leonard se levantou e já ia saindo, quando a voz da velha se fez ouvir na casa caindo aos pedaços.

-Você ainda tem uma pergunta. E esta sim, é importante. – Ela disse. Leonard estancou. Não estava acostumado a ver sua mente sendo devassada. Ele já havia se esquecido de como ela era intrometida nesse aspecto. Talvez fizesse aquilo para se exibir. Talvez fosse uma característica de todas elas.

-Sim… Eu quero saber porque ele não me matou ali mesmo. Afinal, eu estava nas mãos dele.

A velha riu. Pigarreou e então começou a falar.

-Você iria morrer mesmo, se não fosse o interesse contrário de uma entidade muito poderosa, chamada Lucífago de Rafaquele.
-Eu… Eu não acredito. Não pode ser.
-Pois sim, meu caro amigo. Ou você duvida que somente um rei da escuridão poderia se impor sobre um reles marquês e suas disputinhas de poder?
-Mas, mas… Um arquidemônio?
-Sim, um dos três arquidemônios resolveu se ocupar do seu caso. Por mais estranho que possa parecer às suas interpretações limitadas ao corpo humano, algo ali estava indo tão mal a ponto de atrair a atenção dos que como você diz, são os “mandachuvas”.
-Isso é estranho… – Disse Leonard, coçando os poucos cabelos brancos que ainda lhe restavam. -Mas por que?
-As decisões dos arquidemônios estão acima de todos os círculos de sabedoria. Nem eu poderia ousar dizer, mas poderia supor que tenha a ver com a política e as disputas no lado escuro. Sua outra pergunta se refere ainda a ideia fixa de voltar o tempo para se vingar da Ljuvbna…
-Sim… É verdade. Uma vez traído por Naberius, eu preciso saber como faço.
-Há muitas formas de conseguir isso, no entanto, a maioria delas está fora do seu alcance. No entanto, caro Leonard, se ao invés de usar as passagens físicas para se deslocar, você descesse aquela montanha do jeito que subiu, perceberia que não havia sinal do corpo do seu amigo indiano cujo nome é Aesh Pandraj. E também não encontraria sinal do carro que usaram para chegar até a floresta…
-Quer dizer que…
-Sim, Lucífago de Rafaquele aparentemente lhe deu o que você queria. Neste exato momento, seus amigos estão vivos. Ainda.
-Por que não me disse isso antes?
-Não me culpe por você não fazer as perguntas certas, querido.
-Como eu faço para encontrar a Marenka?
-Por enquanto ela ainda está na forma material. Amanhã ela vai sondar pela primeira vez a mulher daquele lindo rapaz engomadinho…
-Mas e para achar essa maldita?
-Há uma casa velha, abandonada do outro lado da cidade. Perto do lago. A Marenka costuma ir lá. Ela tem usado o sótão da casa para abrir os portões entre a realidade física e o espaço intermediário. A Marenka tem usado a casa para se esconder da Andela Dubravka… As duas estão em pé de guerra.
-Nem me fale.
-Ei! Onde você pensa que vai? Cadê a oferenda? -Berrou a velha quando Leonard se dirigia para a porta.
-Eu… Eu trago depois.
-Leonardo Doviso… Na ultima vez que você me disse isso, ficou sumido vinte anos!
-Eu prometo! – Ele gritou, batendo a porta atrás de si.

O dia já havia amanhecido e começava a esquentar quando o taxi deixou Leonard na estrada que contornava o lago. Segundo o motorista, havia somente uma única casa em ruínas na beira do lago. Uma casa antiga de um magnata da construção, que havia pegado fogo.
Leonard foi até o portão enferrujado coberto de hera.
Leonard meteu a mão no bolso e retirou o instrumento. A seta correu sobre a placa metálica coberta de estranhas inscrições e apontou direto para a casa.
O mato havia crescido, árvores enormes pareciam engolfar com suas sombras o que ainda restava da antiga casa. Era uma mansão de respeito, que sucumbira ao mato e à ação do tempo.
Leonard precisou pegar uma pedra e bater algumas vezes contra o pequeno cadeado que segurava o portão.

Ele entrou e seguiu pelo mato alto, até chegar na entrada da casa. A porta entreaberta deixou que ele ouvisse passos no interior da casa.
-“É a maldita!” – Pensou.

Leonard abriu a porta com cuidado para não fazer barulho. Torcia para que ela não rangesse.
Ele caminhou pelo interior escuro da casa, até chegar ao segundo andar. Ali ele ouviu o som peculiar de um telefone antigo sendo discado.
Leonard olhou pela porta entreaberta e viu a velha, corcunda, sentada numa antiga escrivaninha de mogno. Ela usava o telefone, discando uma série de números.
O caçador meteu a mão no paletó e retirou Kuran. A arma esquentava em sua mão, indicando que estava com fome.

Ele ficou a alguns passos atrás da velha. Apenas esperava.
Marenka respirava no telefone, em completo silêncio. Leonard pôde ouvir o som baixo de alguém do outro lado da ligação. Era a voz de uma mulher.

“-Alô? Alô?” – A voz perguntava assustada. Mas Marenka disse nada. -” Quem tá falando? Eu vou desligar!”

Marenka então deu uma risada sinistra.

-Engole isso desgraçada! – Gritou Leonard, puxando a velha pelos cabelos e estocando a Kuran na nuca da velha. A lâmina saiu pela boca de Marenka, que arregalou os olhos, antes de começar a ter convulsões violentas, gemendo horrivelmente.
Leonard agarrou o telefone e desligou.

O corpo de Marenka estava no chão, se debatendo violentamente. Ele começou a queimar e em pouco tempo não restava mais nada senão pedaços calcinados de ossos.

-Acabou. – Disse Leonard, olhando para o chão. O que restava de Marenka era só uma fuligem suja com cheiro de enxofre.

Leonard saiu do cômodo e levou um choque ao se deparar com uma dezena de crianças de olhos escuros parados ao pé da escada. Todos olhavam fixamente para ele.

-Vocês estão livres. – Disse Leonard.

As crianças baixaram a cabeça e caminharam em uma fila indiana na direção da parede, onde foram sumindo uma a uma, como uma macabra procissão.

Rogério estava conferindo as cotações da bolsa pelo celular enquanto aguardava as malas no aeroporto de Seul.
Ele não entendeu quando um velho surgido do nada se aproximou dele.
-Olá Rogério. -Disse Leonard.
-Olá… Nós nos conhecemos? – Perguntou ele, tentando identificar aquele rosto.
-Não… Ainda não. – Respondeu Leonard. Então, metendo a mão no paletó, Leonard retirou uma bonequinha de pano.
-Que isso?
-Um presente para a Luma. – Disse o velho.
-Mas… Como? Como você sabe que eu tenho uma filha?
Leonard não deu resposta. Apenas sorriu e se afastou, saindo pelo portão de desembarque.

Rogério ficou ali, olhando a bonequinha, sem entender aquilo.

Enquanto crianças brincavam numa praça da cidade, Leonard atravessou a mesma e caminhou tranquilamente até a fila de táxis. Ele foi olhando carro por carro, até se certificar de encontrar o motorista certo.
-Aesh Pandraj! – Gritou Leonard.
O indiano sikh de turbante que lia o jornal distraidamente, deu um pulo no banco do carro. -Hã? Pois não!

Leonard entrou no carro.

-Senhor! Quanto tempo!
-Tudo bom Aesh?
-Tudo indo… A mesma coisa de sempre. Sabe como é… É meio chato trabalhar na “praça”.
-Confie em mim quando digo que fortes emoções nem sempre são uma boa. -Respondeu Leonard, sorrindo.
-E aí? Pra onde?
-Para a biblioteca municipal. Tenho umas coisas para resolver com uma certa dona sem cabeça.

Aesh acelerou o taxi que desapareceu engolfado pelo trânsito da cidade.

FIM

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Belo final Philipe!
    Muito obrigado por mais uma estória bacana! O único problema é que eu acabo procrastinando e desviando a atenção do meu doutorado (que já era pra ter terminado, diga-se de passagem).
    Cara, já te acompanho há uns três anos… li todos os contos…
    Fiquei bastante chateado quando li o post sobre o adsense e infelizmente não tenho ideia de como ajudar… Sei fazer muitas coisas. Uma das que não sei é ganhar dinheiro!
    Esse ano vou ter minha primeira filha em julho e preciso terminar meu doutorado o quanto antes (já deu no saco), mas liberando um pouco o tempo posso tentar ajudar na produção de alguma coisa! Sou arquiteto, mestre (e quase doutor) em engenharia civil, na área de materiais e tecnologias não convencionais, tenho grande experiência com marcenaria e restauro de antiguidades, e adoro uma porção de outras coisas… enfim… se eu puder ajudar avise…
    Um abraço!

  2. Ameiiii o final do conto, só não leio todos os outros por agora, pois como o carinha aí de cima, estou precisando terminar uns projetos pessoais, mas caso precise de assessoria técnica em questões jurídicas estou à disposição.
    Se o meu paypal decidir funcionar, já que esqueci a minha senha, vou contribuir ao blog que me retira dos estudos…. Kkkkkk
    Espero que esteja dando retorno essa sua forma de contribuição.

  3. Final digno, e ainda deu um gancho para quem sabe um próximo conto com um certo caçador irônico. Parabéns mais um vez Philipe, de novo você confirma o motivo de eu ter você como um dos meus três escritores favoritos. E quanto ao livro do Zumbi, assim que sair (e assim que eu estiver em um bom estágio de Arquitetura e Urbanismo), comprarei.

  4. Era para o Leonard aconselhar o Rogério a não entrar mais em contato com os mortos e jogar aquelas tralhas do porão fora…já pensou se começa tudo de novo???? mas eu gostei do final…muito bom, parabéns

  5. Um bom final e um belo gancho para a próxima história das Crônicas de Leonard (e não me refiro à viagem até a Biblioteca, e sim nos motivos de Lúcifer ter mandado Leonard de volta no tempo).

    Valeu, Philipe!

    Post-Scriptum: gostaria muito de fazer uma dozção para ajudar o MundoGump, mas não tenho cartão de crédito (nesse ponto, eu e o Leonard somos parecidos). Tem outras formas de ajudar?

  6. Conto sensacional! Tive a sensação de que ele teve um final meio abrupto, mas percebi que isso aconteceu porque eu adoraria que ele se prolongasse por muito tempo.

    As aventuras de Leonard sempre são incríveis. “A caixa” e agora “As crianças da noite” são obras que merecem todo reconhecimento.

    Você tem um talento para entrar na mente humana e despertar aqueles medos ancestrais que ainda escondemos.

    Um grande abraço de um fã do seu trabalho.

  7. E EU ACHANDO QUE O LEONARD IA MORRER SEM CONSERTAR AS CAGADAS QUE ELE FEZ COM OS OUTROS!
    Não morreu, mas pelo menos cuidou dos outros que tinham morrido. Isso ficou bom. Interessante também um “mandachuva” demoníaco ter interferido e feito o que o demônio engomadinho tinha “prometido” fazer: tirar o Leonard do perrengue e mandar ele pra data que ele quisesse. Bom, não foi a data que o Leonard escolheu, mas foi a que ia resolver tudo.
    Agora, uma pequena opinião minha: com o passar dos capítulos do conto, o título de “As Crianças da Noite” já não foi se encaixando; foi se perdendo. O foco numa luta e poderes muito superior aos das crianças deixou o título sem ter onde se encaixar. Certo que eu esperava algo mais pro terror por causa do título (crianças com olhos escuros?? Tem coisa mais assustador que isso??? *-*) do que para a ação que foi se formando (luta de caçadores x bruxas). As crianças foram pouco exploradas, e elas davam muito medo mesmo (ainda mais com as imagens iniciais que vc colocava. Vc faz no Photoshop essas imagens?) E achei o final meio “tá longo d+, vamos acabar com isso e ponto final!” Não sei se isso é bom ou ruim, não deixar o leitor ter a sensação de que a história está findando e acabar de uma maneira abrupta. Enfim, minha opinião, sem xingamentos e linchamentos por favor xD
    Acompanho o site faz 6 anos e só agora que tomei coragem pra comentar pq PQP, COMO EU ODEIO O LEONARD, QUE VONTADE DE SOCAR ELE! Ele tem uma personalidade horrível! Mas eu gostaria de conhecer outros caçadores. É impressão minha mas suas recentes histórias estão ligando-se cada vez mais?
    Só finalizando: A Caixa. PQP, melhor conto!

    Parabéns por mais um conto finalizado, e que venham os próximos! Abraços!

    • Hehehe o Leonard muitas vezes é bem cretino mesmo. Mas eu acho legal isso nele, os defeitos do cara são produtos de sua história de vida. Esse conto seria inicialmente somente um conto de terror com as crianças da noite, mas não resisti aos apelos de alguns leitores para colocar o Leonard nessa história.

  8. Parabéns. Eu comecei a ler pela metade esse conto, admito, mas por falta de tempo. Acho esse universo do Leonard incrível, muito rico e você sabe explorar muito bem isso nos revelando coisas que nem sabíamos que existia durante as andanças do velho caçador.
    Na próxima missão Loenard podia ajudar a encontrar o irmão do Aesh né?

  9. Parabéns pelo conto Philipe, li ele todo hoje (29/03/2014), kkkkkk, muito bom. Aquela parte do texto que descreve a cena em que o Leonard quebra o vaso falso do Rogério jogando ele contra a parede, foi inspirada na cena do filme Indiana Jones e a Última Cruzada em que o pai do Indiana, Henry Jones(Sean Connery) também quebra um vaso jogando contra a parede após descobrir que o mesmo é falso, estou certo?

    • Cara eu aprovo os comentários em blocos (hoje tem mais de 150 pra aprovar). Ontem eu estava viajando. Quando isso acontece acaba demorando para o comentário entrar, mas nunca mais de dois dias, ok?

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