As crianças da noite – Parte 17

– E aí? Vamos? – Perguntou Pandraj batendo na porta do banheiro.
– Já tô saindo. Calmaí. – Gritou Rogério.
– Anda logo, garoto. Eu estou com fome. – Disse Leonard.

– O cara toma um banho de duas horas… – Gemeu Leonard entre os dentes enquanto olhava pela janela do quarto.
– Onde iremos jantar, senhor Leonard? – Perguntou o motorista.
– Tem que ser aqui por perto, já que seu carro está todo cagado. A propósito. Tome aqui… Pelo inconveniente. – Disse Leonard, estendendo um maço de notas altas para o Indiano.
– Obrigado senhor. Só preciso disso. Vou lavar o carro, não comprar um novo. – Pandraj retirou apenas uma das notas e guardou no bolso.
– Por isso que eu gosto de você, meu rapaz. – Respondeu Leonard sorrindo.

Rogério abriu a porta do banheiro. Estava bem melhor de cabelo molhado e roupas limpas.

– E o cheiro? Saiu?
– O senhor está bem vestido! parece até o James Bond! – Riu o Indiano, limpando os óculos na camisa.
– Já era hora. – Leonard limitou-se a dizer. – Venha, vamos jantar.

Minutos depois, os três atravessaram uma rua.
-Que tal aquele? – Perguntou Rogério, apontando um restaurante português.
-Não… Prefiro o italiano ali da esquina. – Disse Leonard, sem muitas explicações.
-Mas, senhor Leonard… Ele parece meio vazio. restaurantes vazios não costumam ser um bom negócio. – Disse o indiano.
Leonard nem deu resposta, foi andando na frente, direto para o italiano.

– Ele é sempre assim? – Sussurrou Rogério.
-É que o senhor ainda não viu ele bravo. – Respondeu Pandraj entre os dentes.

Os três foram para o restaurante, que parecia deserto. Escolheram uma mesa de fundos, longe da janela, perto de uma pilastra. O restaurante tinha mesas iluminadas por velas enfiadas em antigas garrafas, e toalhas tradicionalmente quadriculadas. Rogério já ia se sentar de costas para a parede, quando Leonard agarrou firme em seu braço.
– Aí vai ser o meu lugar.
– Opa, desculpe. Desculpe…
-Perdão, é que eu sento sempre de costas para a parede… Sabe como é… Mais seguro. – Ele disse, tentando não parecer tão antipático.
-Coisa de agente secreto? – Riu Pandraj.

Leonard olhou para ele com um semblante sem expressão.
Nisso se aproximou o garçom.

Boa noite, senhores. Sejam bem vindos à Gruta de Capri. Meu nome é Giuseppe… Fiquem à vontade, por favor.
O garçom passou a cada um o menu.
Querem beber o que?

-Você bebe vinho, garoto?
-Sim senhor. – Respondeu Rogério.
– Aqui está nossa carta de vinhos, senhor… – Estendeu a ele o Garçom.
-Você nem vou perguntar que eu sei que não. – Disse Leonard. O indiano sorriu.
-Traga-me uma Coca-Cola, por favor.
-Pois não. – Disse o Garçom anotando no bloquinho.
-Vocês ainda tem o Tommaso Bussola? – Perguntou Leonard.

O garçom arregalou os olhos.
-Temo que ainda tenhamos uma garrafa senhor.
-Qual o ano?
-Tommaso Bussola, safra 2003, senhor.
-Excelente! Pode trazer!

– Não conhecia este… Disse Rogério, olhando a carta de vinhos sobre a mesa.
– Não me surpreende. – Riu Leonard.
– Ora, não me leve a mal, senhor, mas eu fiz curso de vinho em Bodeaux… E não me parece uma escolha de expert pegar o mais caro da carta. -Rogério estava visivelmente irritado.
-Não… Creio que você não entendeu, garoto. Eu disse que não me surpreende, porque este vinho é exclusivo. Eu sou amigo do dono da vinícola. Giuseppe foi um grande amigo de juventude… Passamos uns apertos juntos na época da guerra.
-Não diga!

O garçom chegou com a garrafa em mãos. Segurava com tanto carinho que parecia um pai apresentando seu recém nascido. Após abrir, oferecer a rolha e colocar um pouco na taça de Leonard, para que provasse, o vinho escuro e encorpado desceu girando nas taças de cristal.

– Sabe, Giuseppe Bussola colocava as uvas para secar no telhado… Este vinho é feito assim até hoje. Eles colhem e colocam as uvas no sol. Elas ficam lá, recebendo luz e secando, secando, até que estejam encolhidas até a metade do tamanho. Só então esta uva está pronta para se tornar este vinho.

Rogério bebeu um pouco. Em sua boca, explodiu uma bomba de cerejas e mirtillos agridoces, além de ervas, cedro e até alcatrão. Leonard parecia esperar a observação dele.

-Maravilhoso!
-Pois como eu estava dizendo, ele resseca a uva pela metade antes de fazer esse vinho, que vai sendo vinificado lentamente por anos.
-Qual a origem?
-Vêneto, Valpolicella.

-Já sabem o que vão pedir, senhores? – Perguntou o garçom.
Cada um pediu um prato.

-Bom… Eu sugeriria um brinde, afinal, escapamos com vida da ljuvbna… – Disse o indiano levantando seu copo de refrigerante com gelo e limão.
Os três brindaram, mas Rogério parecia um pouco abatido.

-Calma, garoto… Nós vamos trazê-la de volta. -Disse Leonard.

Ele não respondeu, limitou-se a olhar o vazio. Observava o teto decorado do restaurante.

-O que o senhor acha, senhor Leonard? – Perguntou o indiano. -Onde ela pode estar agora?
-E por que ela? Justo a minha mulher? – Perguntou Rogério.
-Vocês me fazem perguntas… Acham que eu sei de tudo por acaso? Só posso dizer o que eu acho. Pandraj, eu acho que ela está presa numa outra dimensão.
-Mas eu não sei porque pegaram a Regina.
-Não é a regina que eles querem. É o bebê. – Sentenciou Leonard, após beber um gole do vinho.

Aquilo caiu como uma bomba na mente de Rogério.
-A Luma?
-Isso.
-Mas a Luma nem nasceu.
-E é por isso que pegaram sua mulher, sabichão.
-Nossa… Que desgraçados. – Comentou o motorista indiano.
-O pior nem é isso, meu caro Aesh Pandraj. A pergunta que devemos fazer é: O que vão fazer com ela!

Rogério estava atônito. Olhava para Leonard esperando uma resposta. Aesh também.
-Que? Que foi?
-Vão fazer o que com ela?
-Eu sei lá, porra! Como que eu vou saber isso, seus doidos? -Disse Leonard sorrindo.
Rogério perdeu a linha e deu um soco na mesa. Os talheres e pratos pularam.
– É a minha filha, porra!

-Calmá garoto. Pra que ficar nervosinho? Senta aí. Vai, senta aí. Olha lá o garçom assustado, porra!
-Sente-se, senhor Rogério. – Pediu Pandraj falando tão baixo que mal se podia ouvir.

Rogério se recompôs. Sentou-se. Passou a mão sobre os cabelos que lhe caíam sobre o rosto: -Desculpem.

-Não estou rindo da sua situação, garoto. Até porque, ela é delicada. – Disse Leonard.

O garçom se aproximou com cautela. Pediu licença e serviu os pratos. Assim que todos começaram a comer, Leonard retomou a conversa.

– Mas tudo tem um motivo… Não é?
-Sim…
-Certamente, senhor Leonard. Creio que a menina não seria escolhida aleatoriamente. – Disse o motorista.
-Até poderia ser… Mas algo me diz que não é. – Respondeu o velho Leonard.
-O importante é encontrarmos as duas o quanto antes. Disse Rogério.
-Bom, você sabe… Há meios de conseguirmos isso, mas não vai ser muito fácil. Minha suspeita é que nada aqui foi por acaso. Alguém evocou a Ljuvbna e sugeriu a ela que pegasse a sua filha.
-Alguém? Quem? – Rogério estava atônito.
-Nem faço ideia, garoto. Mas eu suspeito que ela topou isso por alguma razão. E a razão pode estar na menina… Ou não. Pode estar em você.
-Não entendi nada. -Disse o motorista servindo-se de uma garfada de caneloni.
-Ou a menina…
-O nome dela é Luma.
-Que seja. Ou a Luma é especial de alguma forma que compense a Ljuvbna pegar ela ainda na barriga da mãe, ou o sequestro das duas tem o objetivo de te atingir, meu caro.
-Mas por que?
-Sei lá. Me diga você. Há algum inimigo? Um concorrente? Algum negócio… Anda se metendo com a máfia africana por acaso?
-Não… Eu… Que dizer, minha empresa está fazendo negócios com uma empresa coreana.
-Hum… -Disse Leonard olhando para o motorista.
-Que foi?
-Tem caneloni escorrido aí na sua barba. -Disse Leonard, apontando.
-Ops, desculpem. – Aesh riu sem graça limpando com o guardanapo.

Leonard se virou para Rogério.
-Quando você acabar essa lasanha aí, nós vamos até a casa de uma amiga minha. Ela vai poder nos ajudar.
-Amiga?
-É.
-Ok.
-Uma coisa a gente sabe: Essa história é esquisita. Tem duas Ljuvbnas… Elas nunca se cruzam. Se odeiam. Aliás, o melhor jeito de acabar com elas é juntando duas. Para ter duas Ljuvbnas na jogada, é porque debaixo do seu angu tem muito caroço. Me parece que alguém queria foder sua vida…
-E conseguiu.
-Em parte. Você está vivo.
-A mulher sem cabeça tentava me avisar de alguma coisa.
-Ela não queria nada com você. Do contrario teria te matado na primeira chance. Ela queria que você a levasse até a outra. Andela queria encontrar a Ljuvbna que nós também teremos que encontrar. – Disse Leonard, limpando os lábios enrugados com o guardanapo.
-Concordo totalmente. Eu sinto que isso é a verdade. – Disse o indiano.
-Tá vendo? Se ele sente é porque é.
Rogério concordou.

Leonard acenou para o garçom e pediu a conta. Minutos depois surgiu o homem com uma pequena pastinha de couro com a conta dentro.
Rogério fez menção de tirar a carteira do bolso.

-Nem ouse! -Disse Leonard. O velho meteu a mão no casaco e retirou um bolo de notas altas.

Os dois homens da mesa ficaram olhando estupefatos o velho contar a grana. Igualmente atônito ficou o garçom.
Aesh Padraj comentou:
– O senhor não tem medo de andar por aí com tanto dinheiro, senhor? -Perguntou.
– Não… Não. Não tenho não. Deveria?
– Sabe como é… A cidade anda perigosa. -Disse o motorista.
– Bom, vamos nessa. Muito obrigado… Ernesto! – Disse Leonard entregando o bolo de dinheiro para o garçom.
– Volte sempre senhor…
– Até logo.
– Senhor? Ei, senhor?
– Sim?
– Como sabe que o meu nome não é Giuseppe?
– Ah, Ernesto, Ernesto… No dia que um cubano conseguir me convencer que nasceu na Itália, eu vou me embora pra Pasárgada.
– Hã?

Ninguém entendeu aquilo. Leonard sorriu e os três homens saíram.

Ernesto voltou para o restaurante. Guardou o dinheiro numa gaveta, pegou o telefone e discou alguns números.

-Hernández, Cabrón, escúchame… Si, Si. Tiene un anciano junto con dos hombres. Acaba de salir. Un hombre delgado, con barba y turbante. El otro es el tipo ejecutivo. El anciano está llena de plata. Ellos van por el camino de Gauchen Park… Como quieras. Mátalos.

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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