Anastácio

Olá péssoal. Aqui está um pequeno pedacionho de uma história sobre um capitão do mato. Escrevi esta história quando tinha uns vinte e dois anos. Era pra ser apenas um pequeno conto rápido, mas eu me empolguei em escrever uma história de época e isso acabou gerando um livro, chamado Capitão do Mato, o primeiro livro que eu publiquei.
Basicamente, o livro é uma fórmula do qual se poderia dizer, V+S+V=A
Violência mais sexo, mais violência, igual a aventura.

Digo isso, pra que não me tomem por um imitador de novelas globais. Tá passando Sinhá Moça e o que eu menos gostaria é de ser encarado como influenciado por uma novela, hehe.
Na verdade, muito pelo contrário. Quando eu publiquei o CAPITÂO DO MATO, enviei uma cópia de cortesia para os autores da novela “Força de um Desejo” que ia começar, acreditando inocentemente que iria rolar algum convite, nem que fosse para fazer o workshop de roteiro na Globo. Para meu espanto, não houve sequer agradecimento, mas um bom trecho do Capitão do Mato saiu na Novela. Incluindo nomes dos personagens.
Uma merda. Mas a vida é assim. Não posso garantir que tenham me copiado, porque a novela não é igual ao meu livro, mas um pedaço dela que envolveu alguns capítulos é curiosamente parecido. Como não estou podendo ficar sentado muitas horas escrevendo, por causa da maldita dor de coluna, esse texto antigo fará companhia a vocês.
Espero que gostem.

 

ANASTÁCIO

Longe dali, em uma estrada de fazenda, surgia o Anastácio.
Só ouvia-se o rangido seco do carro de boi, quando os cascos bateram nas pedras do caminho. Os passarinhos e os bois, calaram-se estranhamente ante a passagem daquela figura… Continue lendo
Os patos, em disparada, buscaram o açude quando surgiu o cavaleiro na curva. Era como se sentissem o cheiro de morte.

E de fato o sentiam.
Os cascos do imenso cavalo, deslocavam-se em lentidão contida, na iminência do açoite. Os negros viravam-lhe o rosto, na tentativa de desviar a carga que sentiam ao encontro dos olhares.

O silêncio era perturbador. O cavaleiro, imóvel em sua sela, com os olhos a perscrutar o vazio que se estendia defronte o morro, nu em pedra.

Em sua cabeça, sons, e lembranças entremeados a gritos que ouvira, contas em ouro e réis. Mulheres. Lembrava de uma ou outra ao olhar uma bosta de vaca aqui, outra acolá. Imaginava o futuro. Faria o que fosse necessário e voltaria para a fazenda grande, o mais rápido possível.

De súbito, parou o cavalo sobre uns tocos e gravetos. Olhou em volta.
Resolveu apear. Tinha visto algo ali no chão. Puxando uma faca do embornal abaixou-se e com a mão leve, espalhou o amontoado de gravetos caídos à sua frente. Sorriu. Pela primeira vez naquele dia, ele sorriu.

Achou o que esperava. Um pé. Grande e com certa profundidade. Podia vê-lo em pegada no chão. O dedão, muito separado do conjunto de quatro dedos. Olhou em volta e viu todo o chão recoberto por aquelas folhagens amareladas. Olhou então para cima. Sorriu novamente.

Estava particularmente feliz naquele dia. Sorrira duas vezes, mas a razão era que sobre ele, a difundir em buracos a luz sem graça do sol, estava uma árvore de folhagens completamente diferentes daquelas sob ele.

-Nego burro. -Balbuciou, levantando o corpanzil do chão. Virando-se para sua direita, viu o desbarrancado. Acima do barranco, estava a tal árvore das folhas amarelas ali do chão. Desarrolhando a garrafa que pendia da sela, tomou um gole ardente da parati.

Amarrou o cavalo ali, pois sabia não ser longe a toca do fujão. Trepou o barranco, agarrando-se em umas raízes ali. E ficou quieto.

Olhou o capoeirão ao redor.

Ele estava ali. -Pensou. -Perto da estrada. Tá esperando a carroça de frutas que vai passar pra fazenda. – Abaixando-se, pegou um pedaço médio de tronco de árvore. E arremessou-o no mato.

-Sai agora. Sai agora que já te vi! – Vira nada. Porém, sabia ser o negro um africano de raça. E experiência era experiência.

Esperou, ouvindo o silêncio. Um grilo, um passarinho pulou dali e saiu voando. Nada. Só o silêncio.

-Ô crioulo! Quer morrer? Então tá bem. Prepara aí sua justificativa pro satanás! – Passou a mão em uma das garruchas que lhe adornavam a cintura. Mirando no mato bem à sua frente, falou em tom mais baixo:

-Já mandei sair. É um…..É dois…É …-Sentia-se a criatura mais imbecil apontando a garrucha para um mato alto e gritando talvez com uma preá ou um passarinho.

-Não, faisfavô! Atira não seu capitão! -Pulou o crioulo gritando bem do meio do mato, com as mãos na cabeça e deitando-se, uns dois metros adiante.

Realmente ele estava feliz naquele dia. Sorriu mais uma vez. Desta, soltou um riso, que tornou o negro fujão ali deitado uma tábua sêca de medo e pânico. Ninguém jamais o vira rir. Diziam dele muitas coisas, besteiras, como entendia ser, mas que assim mesmo gostava de conservar.

Diziam ser ele, filho do diabo em pessoa, dotado de poderes, como o de voar e ver o pensamento dos crioulos fujões. Diziam dele não poder ser morto, e caso fosse, reapareceria horas depois para o assassino, e levaria seu algoz para conhecer seu pai, o Capeta.

-Acho que vô matá ocê! -Falou, com prazer na orelha do crioulo. -Vô matá e comer suas tripa! O coração deixo pro meu pai, o Diabo! -E pisou na cabeça do pobre negro, que estribuchava de medo e pavor.

O infeliz escravo fujão já via seu coração na boca em chamas do Cramulhão. Aquela imagem dos dentes podres e pontudos do demo a mastigar-lhe as entranhas era algo mais terrível que a morte ou surra de açoite.

-Nnnnnão, Capitão, faisfavô, capitão, comi eu não. Eu juro que não fujo mais. Discurpa. Tô cum medo…-As lágrimas corriam e transformavam-se em lama quando alcançavam a boca cheia de terra do fujão.

-Tá certo. Vô te dá uma chance. Vô dá chance porque vozmecê tá perto. Se fosse mais meia légua estrada abaixo, eu e o capeta iamos comer vozmecê!-Falou sério. Olhando nas fuças do negro fujão.-Limpa essa cara, animal!

-SimsinhôSimsinhô, brigado. Vô fugir mais não.

-Vira as costas pra eu amarrá!-E tomou o laço do embornal sobre o lombo do cavalo e passou em nó sobre o pescoço do negro.

-Tá fugido faz dez dias.

-Cumé que o sinhô sabe, capitão?

-Meu pai diabo me contou. – Mentiu.
Óbvio que o dono da fazenda que contratou a captura, falou-lhe dos dias que o negro estava fugido, mas aquilo sempre funcionava, e además, servia para espalhar a fama. E o negro realmente parecia-lhe muito burro.

-Simsinhôsimsinhô, ai, ai…-O negro morria de medo, cada vez que ouvia o som “diabo”.
Foram-se os dois para fazenda. O cavalo, talvez o mais livre entre os três ali, já soltava os cascos em trotes mais saracoteados. O negro, amarrado ao cavalo pelo pescoço, tentava desesperadamente acompanhar o trote do cavalo preto, tendo as mãos amarradas para trás. Negro capturado era obrigado a andar encoleirado, amarrado e bem na frente do capturador. Em todo caso, ao menos tinha fugido para perto. A fome tomava conta, mas tudo era melhor que ter o coração comido pelo demo.

Lá foram eles naquele fim de tarde, a avermelhar as nuvens no céu. O negro gemendo na frente, a cada pedra no caminho. O cavalo a trotar feliz para a maçã que iria comer. E o capitão do mato a pensar numa mulher que vira na janela de um casario de manhã. E por falar nisso, ali no chão estava a passar mais uma bosta de vaca.

Fim

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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