A cadeira obscura – Parte 3

Renato apontou o facho de luz para dentro do cômodo. Ali ele viu um corpo, quase mumificado sentado numa cadeira escura num canto do cômodo. A cama, ainda arrumada como estava há décadas atrás continua papéis e um prato de louça com alguma coisa indecifrável dentro.

-Que isso? Que isso?  – Perguntava Dodó, aterrorizado com a visão.

-Deve ser o tal Venâncio.

-Então o que meu vô contava era verdade mesmo, sô! – Disse Dodó, se segurando na parede. Estava suando frio, mas a coisa ficou pior quando Renato fez menção de entrar pelo buraco no canto da porta.

-Não! Não, não vai não, seu Renato!

-Me solta, rapaz.

-Não quero ficar sozinho aqui não… – Disse o magrelo se agarrando ao Renato. Renato sorriu e puxou Dodó.

-Vem, vamos comigo.

Dodó e Renato esgueiraram-se pelo pequeno espaço aberto na porta. Renato ia na frente com a lanterna.

-Olha, ele estava trancado por dentro! – Disse, iluminando a chave enferrujada na fechadura.

-Sim… Minha vó dizia que ele se trancou no quarto depois de matar todo mundo e não houve ninguém que conseguiu tirar ele daí. Morreu aí dentro.

-Mas por que trancaram ele com aquelas tábuas na porta?

-Não sei… O povo sempre teve medo. Vai que ele sai, né? Onde, onde o senhor vai? Ah, não. Não mexe aí!

Renato foi até o defunto. Estava ressecado, sentado numa cadeira imponente, decorada com o couro escuro e os chifres do bode.

O morto estava vestindo um paletó surrado, que estava bastante apodrecido. As traças ja haviam feito a festa jo corpo. A cabeça caída para trás e a boca arreganhada num sorriso onde podia-se ver a dentadura, parcialmente descolada na boca.

-Vamos embora, seu Renato! Eu vou sonhar com isso aí! Cruz credo!

-Espera, Dodó. Espera. Deixa eu ver esses móveis aqui. – Disse Renato, vasculhando um a um os móveis do quarto.  – Hummm. É tudo coisa de primeira.

Renato achou uma penteadeira com tampo de mármore e espelho de cristal. Sobre ela um antigo radio a válvula dos anos 30, coberto de poeira e acima dele, uma velha bola de baseball que Renato guardou no bolso do casaco para levar para a loja.

Dodó notou alguma coisa no chão, sob a cama.

-Veja! – Disse ele, apontando para a figura.

Renato abaixou-se e puxou a coisa. Era um santo enorme, em estilo barroco. Era todo  de madeira, do século dezoito ou anterior. Estava quebrado, sem a cabeça.

-Temos que achar a cabeça desse santo. – Disse Renato.

Os dois começaram a fuçar pelo cômodo, procurando. Renato sabia que aquelo e santo inteiro e restaurado valeria uma enorme fortuna. Certamente era relíquia de família.

Dodó achou finalmente a cabeça do santo sobre o armário de madeira de lei. Ao puxar a cabeça do santo, derrubou umas coisas.

-Que isso? – Perguntou Renato, abaixando-se para pegar a pasta, cheia de buracos, comida por cupins. Ao remover do invólucro, Renato quase caiu para trás. Era uma escritura de fazenda.

-Rapaz, é a escritura da fazenda. Olha, tem dinheiro…

-Pena que essas notas não valem nada há anos. – Disse Dodó. – Nunca vi desse dinheiro na vida.

-Ele deve ter tirado tudo do cofre…. E se escondeu aqui.

-Coitado. Deve ter ficado maluco. – Dodó concluiu.

Renato pegou a cabeça do santo.

-Olha, é São João Batista… A Cabeça tem um pino de encaixe. – Disse ele, recolocando a cabeça do santo no lugar.

Então, os dois ouviram o som de passos. Era um som claro de passos vindo pelo corredor. Os cacos de telha estavam estalando sob os pés de alguém.

-Ouviu isso? – Perguntou renato, com os olhos arregalados.

Dodó engoliu em seco. Estava pálido.

-Tá vindo alguém!

Os dois se esconderam atrás da cama antiga. Eles podiam ouvir claramente os passos. Renato baixou o santo sob a cama. Pegou a lanterna e desligou a luz.

Ficaram na completa escuridão no quarto do morto. Só uma tênue luz entrava pelo corredor. Os dois custaram a se acostumar à aquela escuridão. Ainda ouviam os passos. Agora, pisando nas madeiras do corredor.

-Será que entrou alguém? Será que é o menino? – Sussurrou Renato.

Dodó apenas negava com a cabeça, se tremendo inteiro.

-É… O… Fantasma! – Ele gemeu, apontando o corpo, sentado recurvado na cadeira a poucos metros deles.

Renato não se aguentou. Ouvindo que os passos vinham na direção do quarto berrou a plenos pulmões:

-Quem está aí?

Os passos estancaram. Não houve resposta. Durante alguns minutos intermináveis eles esperaram que algo acontecesse, mas simplesmente nada aconteceu.

Dodó olhou para Renato com a expressão aterrorizada. Estava prestes a se mijar.

-Estamos armados! Vamos atirar! – Gritou Renato.

Não se ouviu nenhum barulho.

-Caralho, caralho, cara… – Gemia Dodó, enquanto  socava a cabeça, com os olhos apertados.

Renato se levantou e foi com o Refletor. Dodó foi atrás, com a barra de ferro nas mãos.

-Quem está aí! Estamos te vendo aí, ô filho da puta! Eu vou atirar! Eu sou da polícia! – Gritou Renato.

Mas ninguém estava no corredor. Nem nos quartos ou na cozinha. A casa estava vazia.

-Como é possível? – Perguntou Dodó.

-Não sei. Tinha alguém aqui com a gente… Ele deve ter fugido.  – Disse Renato, jogando o facho de luz pela cozinha.

-Será que tá no matagal?

-Pode ter se escondido lá quando eu disse que estávamos armados. – Sussurrou Renato.

-É… Eu me esconderia também!

Os dois foram lentamente até o lado de fora. A noite era escura e sem lua. O mato parecia uma massa amorfa escura, se mexendo com o vento. Só se ouvia o som dos grilos.

-Vamos embora daqui, seu Renato! Tem alguma coisa errada nesse lugar! – Disse Dodó.

-A gente não pode entrar nesse mato sem saber se o cabra está aí. E se ele dá uma facada na gente? Já pensou?

-Credo cruz!

Nisso, um enorme estrondo aconteceu dentro da casa.

-Mamãããããããe… Gemeu Dodó.

-Que porra foi essa?

-Ai meu deus do céu! Ai meu Deus! É ele, seu Renato. É ele. O morto levantou! – Dodó começou a gritar desesperado.

-Calma rapaz! Calma! A casa tá velha… Respira. Respira… Pra dentro, pra fora. Acalma aí! Isso… Deve ter desabado alguma coisa. Eu vou lá ver…

-Não, pelo amor de Deus, seu Renato. Não vai! Não vai que tem coisa lá… O Morto! O Morto, seu Renato!

-Shhhh. Calma. Fica aqui. Qualquer coisa eu grito e você foge, tudo bem? Fica aqui.

-Tudo… Tudo bem.  – Disse Dodó, muito assutado, com os braços cruzados e quase se agachando em posição fetal.

Renato voltou com a lanterna numa mão e a barra de ferro na outra. Entrou pela cozinha, e olhou ao redor. Nada de anormal.

Ele foi entrando pela casa adentro. Entrar sozinho era duas vezes mais assustador do que a companhia do Dodó.

-Tem alguém aí? – Gritou Renato.

Não houve resposta.

Ele continuou a entrar, passo após passo, calculando cada movimento. Se a casa estivesse desabando mesmo era risco de vida se enfiar ali.

-Eta porra… Tá foda hein? – Disse quando sentiu ago a lhe roçar o pescoço. Devia ser uma teia de aranha. Sentindo calafrios percorrendo seu corpo, ele avançou até o fim do corredor onde a porta destruída estava entreaberta.

Renato iluminou o quarto e ficou estupefato. O armário escuro de mogno todo trabalhado havia sido lançado para o outro lado da cama. Estava de cabeça para baixo.

Aquilo o aterrorizou. A coisa ficou ainda mais estranha quando renato viu o corpo do velho venâncio que já não estava mais na cadeira, e sim espatifado pelo chão, aos pedaços. è como se alguma força descomunal estivesse se manifestando no cômodo.

-Puta… Que… O…. Pariu!

Renato reuniu toda a coragem que já não tinha e entrou no cômodo. Viu o que restava do santo barroco esmigalhado sob o armário.

Os papéis estavam jogados, espalhados, junto com as notas de dinheiro pelo chão. A maioria recobria a cabeça carcomida e mumificada do velho Venâncio.

Um dos papéis lhe chamou a atenção. Era uma folha em branco, com um endereço escrito… Renato abaixou-se e iluminou aquilo com a lanterna. Ali estava um nome de mulher e um endereço.

Assim que Renato pegou o papel, uma mão gelada agarrou seu ombro.

Renato deu um grito de horror.

-Calma, calma! – Era Dodó. Estava pálido. Assustado.

-Filho da puta! Ai caralho… Vou infartar. Puta merda. Que susto do cacete!

-Desculpa, seu renato, mas passou uma “coisa correndo lá fora, perto de mim”

-Uma coisa?

-Não sei o que era, tava na escuridão. Deve ter entrado no mato. Acho que veio da casa. Ele tava aqui dentro com o senhor.

-Dodó…

-Que?

-Quem é esse aí atrás de você?

-Uááááááááááááááá! – Berrou Dodó, olhando para trás.

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Philipe levando a gente pela mão por dentro dessa casa sinistra.
    Respiração quase suspensa, pude sentir as teias de aranha no meu próprio pescoço!

  2. Achei que era impossível superar a qualidade de “A caixa”, mas pelo andar da carruagem, você vai bater o recorde aqui! Que trabalho magnífico! Continue assim!

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