A cadeira obscura – Parte 10

Renato e  Jamil chegaram correndo na rua lateral ao Hotel Bretas.

O caminhão estava parado numa rua tranquila, com pouco movimento por ser uma rua sem saída. Logo que chegou ao veículo, Renato ouviu as pancadas absurdas sendo desferidas contra a caixa de aço do baú.

Junior e os outros filhos estavam ali, espantados, olhando aquilo sem saber o que fazer. Um sujeito que passava pela rua também veio ver.

 

PLAM!

-Tem alguém preso é?

-Não… Não tem não senhor. – Disse Junior.

-Uai… Mas então… Como que pode?  Tem um cavalo aí dentro?

-Caralho, que merda é essa, Junior? – Perguntou Renato colocando as mãos na cabeça.

-Eu mandei esse zé ruela chamar o senhor lá, porque ele ta achando que é o diabo… Não sei que merda é essa, mas o que eu sei é que verifiquei o caminhão antes de lacrar. Só tinham movel aí dentro.

-Porra mas se só tinha móvel…

PLAM!  – Uma porrada muito mais forte que as anteriores chegou a amassar a lateral do Baú montado no semireboque da carreta.

-Caralho! Que porra será essa?

-Não sei. Mas gente não pode ser. Ninguém tem essa força aí, meu chapa!

Vendo o estranho diálogo entre os homens, o transeunte saiu correndo com medo.

-O que a gente faz, seu Renato? – Perguntou Jeremias.

Renato olhou pra eles, sem saber o que dizer. Ergueu as mãos no ar, apertando os ombros, como quem diz: “sei lá, porra!”

O jeito é abrir essa bosta e deixar o que quer que esteja aí dentro sair.

-Não pai! E se é o capiroto?

-Capiroto Jamil? Olha bem pra minha cara… Não tem como ser nada disso.

-Mas o senhor mesmo disse que…

-Eu sei o que eu disse, Jamil. Pode ser algum anim…

PLAM!

-Porra essa merda aí ai foder o meu caminhão!

-Vamos ter que abrir, pai! – Disse Jeremias.

-Pai, eu tô com um mau pressentimento dessa merda! – Disse Jamil, afastando-se lentamente.

-Tu é um cagãozinho mermo, né Jamil? – Disse Jonsen, com os enormes braços cruzados.

-Não… Eu só não sou burro igual a vocês! – Gritou Jamil de longe.

PLAM!

Júnior olhou para Renato, que assentiu em silêncio, movendo rapidamente a cabeça.

Júnior virou-se para Jeremias:

-Jeremias, vai na boléia e pega a pipoca! Jonsen, vai com ele e traz duas peixeiras!

Os filhos enormes e fortes concordaram em silêncio. Foram até a boleia e voltaram.

A “pipoca” era uma escopeta de cano serrado.

-Puta que pariu, Junior! Não vai me dizer que você anda viajando o Brasil inteiro com essa merda no caminhão!

-A gente tem que se defender, seu Renato! O Brasil não é mole não, meu amigo!

-Como se alguém fosse louco de se meter com vocês!

-Se tentar ele vai conhecer o outro mundo. – Riu Jonsen, entregando uma das peixeiras afiadíssimas para Jeremias. Eram dois facões tão grandes que mais pareciam espadas.

PLAM!

-Bom seu Renato… Agora é com o senhor. Toma aí. – Disse Júnior, estendendo-lhe a chave do cadeado.

Renato pegou a chave. Viu que estava trêmulo. Junior também percebeu.

O mal encarado caminhoneiro acalmou o patrão: – Vai, seu Renato, Abre ali e deixa o resto com a gente! Seja o que for que estiver nessa merda de caminhão vai se ver com a gente.

Renato concordou em silêncio. Foi até o cadeado e após testar duas chaves diferentes sem sucesso finalmente destrancou o cadeado. Só restava puxar a alavanca que liberaria a porta do baú.

-Tudo pronto?

-Tudo certo aí molecada? – Perguntou Junior, com a escopeta de cano serrado apontado direto para a saída do baú.

-Vai pai!

Renato puxou a alavanca e abriu a porta. Imediatamente ela estourou como se houvesse uma pressão absurda dentro do baú. A porta acertou renato que caiu para trás.

Mas não aconteceu nada.

O baú estava uma escuridão completa. Com dificuldade, só dava para ver as sombras dos móveis antigos lá dentro.

-Mas que merda é essa? Cadê o troço? – Perguntou Junior sem desgrudar o olho da mira da escopeta.

Não houve mais batidas.

-Tá vendo alguma coisa aí Jonsen? – Perguntou Junior ao filho.

-Porra nenhuma.

-Tem alguém aí dentro? Tem alguém aí? – Gritou Junior, mas não obteve resposta.

Renato chegou perto da porta do caminhão. Não se ouvia nada ali dentro.

-Gente! Essa porra aí não é normal! Ta na cara! Isso é coisa do sobrenatural, caralho! – Berrou Jamil de longe. Ele estava parcialmente escondido atrás de um poste de luz.

-Não é possível, porra. É difícil de acreditar. Jonsen, busca a lanterna lá!

-Tá bom, pai! – Disse o rapaz, correndo até a boléia.

Menos de um minuto depois, ele voltava com a lanterna. Junior pegou a lanterna e apontou para dentro do baú. Nada estranho apareceu ali. Só haviam móveis.

-Jeremias, Jonsen, vamos tirar a porra toda!

-O que? mas pai, são quase nove da noite… – Disse jeremias, visivelmente aborrecido. – Eu to com fome, pô! A gente não almoçou, esqueceu?

-Cala a boca e obedece, moleque!

Os dois se entreolharam com uma expressão de irritação .

-Vamos, vamos logo! – Disse Jonsen.

-Jamil! Jamiiiil! Vem, porra. O pai mandou arrancar tudo de dentro do caminhão.

-Eu não boto a mão nessa merda aí nem fodendo muito! – Respondeu Jamil, ainda atrás do poste.

-Cala a boca, moleque! Mandei tirar tudo. Você mesmo. Pode vir aqui e ajudar seus irmãos, sua bichona. – Berrou o pai.

Consternado, Jamil veio, com seu passo de urubu cansado, a cabeça baixa de vergonha. Começou a ajudar os irmãos a tirar tudo do caminhão. Eles foram empilhando e apoiando os móveis nas paredes do beco.

-Caralho! Deu um trabalho corno arrumar essa carga toda…

-Cala a boca e continua! Senão não tem pizza! – Rosnou Junior, socando a porta do caminhão.

Os filhos ficaram quietos, trabalhando o mais rápido que podiam.

Assim, Renato finalmente teve a chance de dar uma olhada melhor nos móveis. Jonsen pegou a tal cadeira do bode. Colocou na calçada.

-Puta que pariu… – Disse Renato. – Ela é do caralho, mermão!

A cadeira era relativamente baixa, montada num modelo antigo, de madeira de lei, com entalhes. Ao redor da cadeira, chifres de bode simulavam chamas, que saíam das pernas, dos braços e do espaldar da cadeira. O estofamento estava perfeito e era de couro de bode, pregado na madeira com tachas de latão. O conjunto era estranho, macabro, mas não era feio.

-Ah, é. O senhor não tinha visto legal, né? Com o acidente e tudo de hoje cedo… – Disse Jonsen.

Renato apenas concordou, olhando a cadeira de todos os lados.

-Vai me desculpar, seu Renato, mas esse troço aí é feio feito o demônio. – Disse Júnior, chegando perto da cadeira.

-Acabamos, pai!

Depois de quarenta minutos descarregando o caminhão, ele estava vazio. Uma imensidão de móveis de todos os tipos se espalhava pelo beco ao redor da carreta.

Junior foi até o caminhão. Iluminou o baú. Não havia absolutamente nada lá dentro.

Renato olhou bem… Não via nada que explicasse as pancadas dentro do baú.

-Tem como explicar essa merda? – Perguntou Junior ao Renato.

Renato sorriu. – Deve ser o tal do capiroto!

-Cruz credo.

-Espera. O que é aquilo no canto la?

-Hã? – Júnior apontou a lanterna no canto do baú.

-PelamordeDeus! – Balbuciou Jamil, correndo para longe do caminhão.

-Não tô vendo nada, seu Renato.

-Dá uma ajudinha aqui. Isso, valeu! – Disse Renato quando Jeremias o suspendeu no ar com enorme facilidade. Renato subiu no baú. Andou até o final do mesmo, onde parecia só haver uma escada de alumínio, cordas diversas e umas vassouras.  No cantinho, junto a parede forrada de madeira, Renato viu uma pequena cabeça. Era a cabeça do santo do quarto. Aquela que ele tinha visto separada do corpo no quarto do falecido Venâncio.

Renato voltou até os quatro que esperavam fora do caminhão.

-Que isso, seu Renato?

-É a cabeça de um santo. Um santo barroco. – Disse, mostrando o pedaço da escultura em madeira pintada.

-Ah, é aquela cabeça do santinho que eu montei e coloquei dentro do armário! – Disse Jamil.

Os três olharam para Jamil.

-Quê? Que foi? Eu disse alguma rata?

Renato lembrou-se imediatamente do barulhão que ouvira na casa no dia que invadiu a mansão abandonada dos Venâncio. O barulho tinha acontecido tão logo ele havia montado aquela cabeça no corpo do santo barroco também. E quando chegara no quarto, renato tinha visto o armário que pesava fácil uns trezentos quilos de ponta-cabeça. Talvez o armário virado e as pancadas no caminhão estivessem relacionadas de alguma maneira com o santo. Mas Renato preferiu não dizer nada aos rapazes.

-Bom, vamos colocar tudo de volta no caminhão e dar no pé, antes que a pizzaria feche.

-Nem brinca, que eu tô cm uma fome do caralho! – Disse Jeremias.

-Hoje o tal do Tião vai tomar prejuízo no rodízio! – Riu Junior. – Vamos, vamos arrumar logo essa porra de caminhão e vamos comer molecada!

Todos eles ajudaram a colocar as coisas no caminhão.

— X —

Já tinha dado dez da noite quando finalmente Junior fechou e lacrou a porta do caminhão.

Todos eles ficaram esperando que algo anormal acontecesse. Mas nada de pancadas. O caminhão estava normal, embora os amassados na lateral ainda estivessem lá, como uma memória permanente da força misteriosa.

-Vamos comer! – Decretou Renato.

-Partiu moleque! – Riu Jamil.

Foram correndo para a pizzaria, e enquanto caminhavam, Renato colocou a mão no bolso da jaqueta e sentiu a cabeça do santo que resolveu trazer consigo dali em diante.

 

CONTINUA 

 

Receba o melhor do nosso conteúdo

Cadastre-se, é GRÁTIS!

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade

Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

Artigos similares

Comentários

    • Oi Rubia. Fico feliz que esteja curtindo. Eu queria poder escrever tudo duma vez, mas eu preciso trabalhar, e isso me impede de ficar um longo tempo preso num só post, como este conto, e é pelo mesmo motivo que eu não consigo postar o capítulo com dia certo. Tô quase conseguindo colocar um capitulo por dia nesse, mas às vezes tenho que fazer capítulos curtos, para aproveitar o meu tempo. O pessoal reclama, mas não tenho outro jeito, não posso deixar meus clientes na mão porque resolvi fazer um capítulo da história grandão. Enquanto eu não achar um jeito de equacionar a questão financeira do blog, para me dedicar só a ele, terei que ir levando do jeito que dá.

  1. A primeira coisa que eu abro quando chego do trabalho é o blog, na esperança de ter um novo capítulo do conto rsrsrs #ansioso²

  2. Só por curiosidade. Voce leu horns do filho do atephen king ou assistiu o filme com o carinha que é o harry potter lá(o pacto – eu acho)???

      • Opa, então recomendo.
        Joe Hill é o nome do cabra.
        O filme é com o Daniel Radcliffe (vulgo Harry potter). O Filme eu não vi, chama-se O Pacto em português, mas se o filme for fiel ao livro deve ser massa.
        Só associei por conta de batidas de “ninguém” e imagens de santos sem cabeça, por isso perguntei se conhecia…

        Essa parte foi a mais foda, não queria que essa historia descambasse pra caixa.

  3. Oi, adoro suas histórias.
    E principalmente as de Leonard, mas como sou leitor recente deste site, não pude acompanhar do começo as histórias dele,teria como informar qual são as histórias dele?
    Muito obrigado , vc arrebenta.
    Abraço

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

Últimos artigos

O contato de 1976

3
Tio Cláudio que estava dormindo veio com a gritaria. Quando ele bateu o olho naquela coisa começou a berrar para o Beto vir com a câmera. Eles tinham uma câmera de boa qualidade. O seu Edgar disse que não era para fotografar, que "eles não gostavam", mas o Beto cagou solenemente para o que o velho do trailer dizia e começou a fotografar.

“Eu vi o inferno”

2
Simon ficou em silêncio um tempo. Pegou o lenço do paletó e passou no bigode. Ele chegou bem perto do meu ouvido e sussurrou: --" Eu vi... O inferno."

O filme de natal da família Sutton

4
Por que tio George ocultou algo tão sério no filme de natal daquela família?

VRILLON

19
As estranhas e assustadoras mensagens que estão chocando o mundo.

A mulher do futuro

7
O item foi descoberto durante a reforma do Hotel Nanau, que foi operado nos anos 1970 nas ruínas da Nanau Manor. Encontrado sob um fundo falso do piso de um dos quartos, o pequeno caderno é um sobrevivente do tempo, em boas condições.