Jurado de morte – parte 5

Zé Walter se esconde.

Dentro do prédio, fica na portaria, perto do balcão do seu Limair. Ele fica olhando lá pra fora. Será que foi visto? Será que tem alguém no opala? Os vidros escuros não permitem que se veja nada.

-Desgraçado filho da puta.

-Hein? – Pergunta seu Limair.

-Hã… Nada, nada não. Tava aqui pensando alto.

-Ah, tá. Pensei que o senhor estava me xingando.

-Seu Limair, tem telefone aqui na portaria?

-Tem não senhor.

-Droga. Maldita hora que eu botei meu celular no conserto.

-Ah, seu José, esses celulares de hoje são tudo vagabundo. Troço da China. Quebra atoa. Não compensa comprar do caro não. É como eu sempre digo. Celular, vale só pra ligar. Quando vem me oferecendo aqueles cheios de função, com isso, aquilo, emepê não sei das quantas, um monte de sigla, parece até repartição pública, eu já corro logo. O senhor sabe que eu comprei um desses caros, com fone e tudo, que tira até foto, pra minha filha e ela deixou cair na privada? Aí comprei outro e então ela deixou cair na valeta. E o senhor sabe, molhou, já era. Tentamos botar no sol mas ele nunca mais funcionou. Aí eu disse que não ia dar mais. Então ela fez quinze anos e me pediu um celular. Sabe como é. Coração de pai é mole. Comprei mais um pra ela. Mas dois dias depois, ela perdeu o celular. Esqueceu na mesa do bar. Então eu disse pra ela que se ela queria um celular ela teria que comprar com o dinheiro dela. Daí ela fez faxina numa loja do meu compadre e quando recebeu o salário, ela  correu pra loja pra comprar celular. Mas aí viu que não dava o dinheiro e ficou muito amuada, coitadinha. Minha senhora Juventina ficou me enchendo a paciência com pena da menina, e então eu peguei um vale com o seu Joel e completei pra ela comprar o celular. Mas ontem ela chegou em casa toda triste. Foi assaltada no ônibus. Adivinha? Roubaram o celular dela. Agora ela tá fazendo uma rifa do vestido de quinze anos lá na comunidade pra comprar outro celular e…

Zé Walter não ouvia nada sobre a saga da menina que só perdia celular. Enquanto o porteiro detalhava cada pequeno e insignificante detalhe da vida dele, Zé estava pensando uma forma de sair do prédio longe do alcance de quem estivesse de tocaia no opala.

-Seu Limair, desculpa interromper, mas será que o senhor podia me fazer um favor? Eu tenho que levar umas malas na casa de um amigo, e meu carro tá com problema. Dá pro senhor pedir um taxi ali no ponto pra mim e pedir pra ele me pegar na garagem?

-Ué. Dá sim senhor. Mas o ponto é logo ali, ó. -Disse o porteiro apontando a rua. De fato, o ponto do taxi era perto, mas era do outro lado da rua de onde estava o opala.

-Sabe o que é, seu Limair, é que eu ainda não peguei as malas. Será que o senhor pode fazer este favor pra mim? Eu pego lá em cima e levo pra garagem. Aí o senhor chama ele ali fora pra mim e adianta o meu lado.

-Ah, tá. Sim senhor. -Disse o porteiro saindo do balcão.

Zé Walter correu pelas escadas para a garagem. Ficou lá esperando o Taxi. Como o trânsito na rua era mão única, o taxi teria que dar a volta no quarteirão e entrar no prédio, o que levaria ainda alguns minutos.

Enquanto esperava, Zé encostou na parede da lixeira. Ouviu um barulho e viu um rato sair da lixeira e caminhar calmamente pela garagem. Zé olhou em volta. Era irresistível a vontade de matar o rato.

Havia uma vassoura velha, pra lá da aposentadoria, já quase sem piaçava, encostada perto de parede do elevador. Zé pegou a vassoura e foi, pé ante pé, acertar o rato. Mas antes que pudesse se aproximar o suficiente, o rato percebeu a intenção vil daquele homem e correu como uma bala. Mas a garagem estava vazia e o rato correu na direção do fim da garagem, onde não havia saída. Zé correu atrás desferindo vassouradas a torto e a direito, mas sem acertar nenhuma. O rato dando um olé atrás do outro naquele sujeito, que ficava mais e mais puto a cada vez que era feito de bobo pelo roedor.

Zé queria botar todo aquele medo, ódio e sofrimento para fora. Matar o rato da garagem era a melhor maneira de exorcizar seus demônions.

Zé finalmente acertou uma vassourada no rato, que soltou um guincho alto e correu para o canto da parede.

Zé partiu com tudo para esmagar-lhe a cabeça com a vassoura. Porém, vendo-se em franca situação de desvantagem, o rato se transformou no capeta de quatro pernas. Soltando um guincho horroroso, o animal correu pra cima dele, a boca aberta e o dentão espetado pra frente.

-Ai caralho. Putaquepariu!

Zé saltou pra trás assustado. O rato veio pra cima dele querendo atacá-lo e Zé Walter não viu outra alternativa senão fugir. Era ridículo. O cúmulo da vergonha humana uma pessoa, armada com uma vassoura, fugir de um rato de poucos centímetros.  Mas Zé correu desesperado. Não olhou para trás até que não escutou mais nenhum guincho. Quando finalmente parou de correr entre os carros não havia sinal do rato.

Logo depois, subiu um taxi amarelo pela rampa.

O taxista parou em frente o elevador esperando as malas. Mas ali só estava o Zé, suando, segurando aquela  vassoura fodida  e com sua mochila nas costas.

-Pois não? E as malas, doutor?

-Não, não. Desisti das malas. Vou só de mochila mesmo. Mudança de planos, hehehe. Vai ser uma visita rápida.

-Como quiser. A vassoura vai?

-Hã? Não, não. – Disse ele jogando a vassoura na direção da casinha da lixeira.

-Pode entrar por favor. – Disse o Taxista.

Zé Walter entrou no banco de trás.

-Pra onde?

-Toca na direção de Teresópolis. Mais à frente te dou as indicações.

-Sim senhor.

-Amigo, o senhor não repara, mas eu vou dar uma deitadinha aqui, tá?

-Ah… Tudo… Bem. -Disse o taxista estranhando enquanto descia a rampa.

O taxista tão logo chegou na rua já começou uma ladaínha sem fim sobre como ele havia levado passageiros que deitaram no banco de trás. Contou de um episódio que envolvia um casal de amantes gays que no dia dos namorados, ao chegarem de taxi no motel, tava uma fila imensa. Logo depois de alguns minutos na fila, um dos homens viu a filha dele, pretensamente virgem, com o namorado. O cara ficou puto e queria estrangular o namorado da filha, mas estava cagado também. No fim das contas, eles passaram um tempão deitados no banco, para não dar na pinta.

Enquanto o taxista falava sem parar contando casos, falando de futebol, dos filhos, dos taxis, do dia-a dia, da cidade esburacada, dos políticos ladrões, da geopolítica internacional e até da escalação da seleção brasileira, Zé Walter se perguntava se aquele taxista seria mesmo de confiança. Afinal, o homem do opala estava parado em frente ao ponto. O que garantia que aquele cara não estivesse mancomunado com o bigodudo assassino? Nada.

Nisso o taxista manjou que Zé estava alheio à conversa e enfim calou a boca.

Quando o taxista parou de falar, Zé começou a ter cada vez mais certeza de que o taxista estava sabendo de tudo. Estava envolvido de alguma forma. Zé percebeu que quem manda uma carta, sabe bem que a pessoa não vai sossegar em casa esperando a morte. Ela irá arrumar uma forma de sair, de fugir. Zé percebeu com absoluta clareza que se o cara parava o opala assassino na porta da casa dele aquilo tinha um propósito. Não era mera coincidência. O objetivo era claramente criar o medo e impedi-lo de sair com o próprio carro. Sem carro, sem poder sair a pé, qual a alternativa que resta? O taxi, é óbvio. Zé olhava a paisagem lá fora e se dava conta gradualmente que havia sido cuidadosamente empurrado para aquela situação. Ele ficou estático. Duro, catatônico, apenas pensando. Tentou não demonstrar o desespero. Seu coração disparou e ele sentiu o ar lhe faltar. Mas tentou segurar e não transparecer o medo. Volta e meia olhava para o motorista do taxi, que agora dirigia quieto, sem olhar para ele.

Enquanto isso, ia pensando que obviamente tudo havia sido cuidadosamente planejado. Pra que? Para tirá-lo da casa. Fazia sentido. Matar alguém a tiros num prédio no meio da cidade é muito mais arriscado que desovar um corpo num matagal, numa estrada deserta. Zé teria entrado espontaneamente na arapuca. Tão inocente como uma pomba rola, tão puro quanto uma ovelha que avança, resignada, para ser sacrificada.

Zé já podia antever o que se sucederia. O taxista iria errar o caminho, levando-o em outra direção. Iria adentrar uma estrada de chão, onde andaria alguns quilômetros, até chegar numa cabana perdida, onde talvez ele reconheceria a silhueta de um opala preto estacionado na porta. O taxista não devia ser taxista. Zé então percebeu que nunca havia atentado para a existência daquele cara. Ele morava há quinze anos no mesmo prédio, passava diariamente na frente do ponto de taxi e nunca havia visto aquele gordinho careca. Estava ficando cada vez mais óbvio que o motorista era um deles. Talvez um homem da milícia dos Thundercats. Talvez alguem que devesse algum favor ao Lion. Talvez alguém sem escrúpulos que aceita ganhar qualquer dinheiro para transportar um defunto, um cadáver à prestação, ate seu derradeiro lugar neste mundo.

Zé resolveu que no banco de trás era uma presa fácil.

-Moço, quero passar pra frente. Posso?

-Hã? Sim, sim senhor.

-Encosta aí pra mim.

-Sim senhor. – Disse o motorista, encostando o carro.

Zé pensou em abrir a porta e correr. Mas antes que fizesse isso, ao abrir a porta, teve um lampejo de que caso agisse assim o motorista iria matá-lo pelas costas. Certamente que alguém designado para levar o cara que ia ficar sem cabeça de noite teria alguma arma em algum lugar daquele carro. Certamente que ele já devia estar instruído para meter tiro no sujeito caso ele não colaborasse. Então Zé Walter resolveu colaborar.  Entrou no carro novamente, agora no banco da frente, onde podia ter uma visão mais clara do motorista de praça.

Zé olhou com cuidado o sujeito. Aproveitava quando ele ultrapassava caminhão e se concentrava no trâsito para olhar detalhadamente pra ele. Num movimento do braço ao volante, Zé pôde ver que um pelaço de uma tatuagem escapava por baixo da manga da camisa. O sujeito viu que Zé estava olhando muito e arrumou a manga, recobrindo o desenho.

Mas nessa altura Zé já tinha memorizado aquele pedacinho de desenho. Ficou concentrado, tentando identificar o que se encaixava naquilo. Zé não conseguiu identificar de imediato, mas depois de algum tempo, se ligou que era o rabo do Snarf. Sim, o Snarf! Não era águia, não era tubarão nem sereia, não era dragão, coração, tribal nem unicórnio. Nada dessas coisas que se usa em tatuagem. Era um Thundercat! Aquilo não era por acaso.

Zé ficou tentando disfarçar. Agora olhava a paisagem.

Seria aquele cara o próprio assassino ou apenas um transportador dos bandidos?

Nisso o cara falou, dando um baita susto em Zé Walter.

-Pego em que direção, doutor?

Zé tentou manter a compostura e disfarçar o susto.

-Hã? Ah! Pega a próxima entrada na esquerda. -Disse.

O motorista voltou a ficar quieto. Zé voltou a pensar na sua morte. O tempo estava acabando. E agora ele havia saído do conforto seguro do seu lar e estava num lugar ermo, com um homem estranho, gordo, careca e baixinho, que dirigia olhando de rabo de olho pra ele. Tudo levava a crer que a hora derradeira estava galopando em sua direção. Zé precisava agir. Precisava fazer alguma coisa. O mais sensato era tentar obter alguma pista, algum indício. Teve uma ideia, mas não sabia se iria funcionar.

-Tô passando mal. Vou vomitar. -Ele disse.

O taxista se desesperou.

-Calma, doutor, calma. Quer que eu abra o vidro? Desligue o ar? Quer que eu…

Zé aproveitou a aparente confusão do motorista que fuçava no painel freneticamente abrindo vidro, baixando a musica no rádio, e desligando o ar condicionado para escancarar o porta-luvas.

-Tem um saquinho de vômito aqui, moço? -Disse ele remexendo as coisas do porta-luvas. O homem deu um freadão brusco no carro. A mente de Zé estava registrando tudo que podia enquanto mexia nas coisas do cara. O homem meteu a mão e fechou o porta-luvas.

-Não tem saquinho não, moço. -Ele disse fechando a tampa.

Mas já era tarde. Zé tinha anotado mentalmente quase tudo que havia no porta-luvas: Chaves, lanterna, um maço de cigarro, balas, pirulitos, toalha verde, flanela, papéis diversos e mapas. E no fundo, milésimos de segundos antes do cara fechar o porta-luvas daquela maneira afobada, ele viu: Uma coronha.

– Coronha… Coronha… – Ele pensava. O taxista estava andando devagar, no acostamento.

-O senhor está bem? Quer que eu pare o carro? -Perguntou.

Zé imaginou que aquilo era uma estratégia. O cara queria parar o carro porque não tinha certeza se Zé vira ou não a arma.

-Não, não. Só reduz um pouco. O ar vai me fazer bem. – Disse Zé. O plano havia dado certo, mas ele não queria que o cara parasse, pois obrigá-lo a dirigir roubava uma preciosa quantidade de atenção do motorista e aquilo poderia ser estratégico.

Ele precisava se livrar daquele cara. Zé sabia que se o taxista fosse com ele até a chácara do Amarildo era pra saber onde ele estava indo e levar o bigodudo do opala até lá. Ou então iria fingir errar o caminho para desová-lo em algum matagal. Zé rememorou que o sujeito havia fechado o porta-luvas de forma bastante ignorante e parecia irritado com o fato do passageiro fuçar ali. Lógico que aquilo se devia ao fato de haver uma arma no porta-luvas. A melhor chance que ele tinha era conseguir abrir o porta-luvas do carro e sacar a arma. Devia ser um 38 a julgar pela forma da coronha. Zé não teria outra chance. Planejou com cuidado o que iria fazer.

-Já tô bom. Vamos embora. – Disse ele ao gordinho.

-Sim senhor. -Respondeu o motorista, acelerando o carro na estrada.

Zé fez mentalmente todas as ações que teria que executar. O importante era pegar o gordo desprevenido. O elemento surpresa seria fundamental para escapar da arapuca.

Zé ficou atento à estrada. Quando o taxi virou uma curva, ele viu mais à frente, na altura de uns cem metros adiante, um caminhão cegonha, cheio de carros. Aquela era a chance dele. O caminhão era gigantesco e ocupava toda a faixa única da pista, de mão dupla.

Zé retesou seus músculos como um gato à espera do bote. Quando o taxista deu sinal de que iria ultrapassar, Zé olhou fixamente para o porta-luvas.

O taxi então começou o processo de ultrapassagem. Numa fração de segundo, Zé abriu o porta-luvas. O gordinho se assustou:

-Mas o que…

Zé empurrou a cabeça do cara com a outra mão e ele bateu de cabeça no volante. O carro rebolou na pista e bateu na lateral do caminhão, que pareceu nem sentir o baque. O motorista se desesperou e tentou segurar o carro que começou a fazer um zigue-zague na pista. Nisso, vem um caminhão na pista contrária tocando a buzina que mais parece uma buzina de navio.

Zé já fuçava com a mão direita o porta-luvas em busca da coronha.

O Taxista não sabia se lutava com Zé, se controlava o taxi quase desgovernado ou se tirava o carro da pista, pois o caminhão já estava em cima. Optou pelo caminhão. Com um golpe de direção, jogou o taxi no acostamento do outro lado, no último segundo. Nisso Zé alcançou a coronha e apontou o trezoitão na cara do gordo.

-Pára essa porra, filho da puta! -Gritou com a arma na cara do motorista.

-Calma! Calma! -Gritava o motorista.

-Para agora caralho! Joga ali no matagal!

-Onde?

-Aqui, porra. Aqui!

O cara meteu o pé fundo no freio. O carro cantou pneu no acostamento até parar em meio a uma nuvem de fumaça e poeira, no meio de um matagal alto na beira da estrada.

-Fala filho da puta. Fala que tu ia me matar, desgraçado.

-Hã? É dinheiro? Pode levar tudo, moço.

-Dinheiro é a puta que te partiu, seu viado. Seu puto. Baleia, rolha de poço… Tu tava pensando que ia me matar? Que ia me levar pra cova? Se fodeu, seu puia!

-Moço… Calma moço. Calma. Eu não ia fazer nada não. Eu sou motorista de taxi… Tenho família.

-Família de cú é rola, seu bosta. -Pode falar. Quem te contratou? O Bigodudo tá pagando quanto pra você foder com minha vida?

-Hã? Bigodudo?

-Não se faz de besta, seu puto! – Zé dá um “pedala Robinho” na cabeça do sujeito.

-Ai.

-Eu moro há quinze anos naquele prédio. Como que eu nunca te vi no ponto de taxi, sua baleia?

-Moço… Eu… Eu… Eu sou novo no ponto. Entrei pra cooperativa agora. Eu era da rodoviária. Tô cobrindo as férias do Antônio Carlos.

-Vai se foder! E essa porra aí no teu braço? Levanta a manga.

-Moço, fica calmo…

-Fica calmo o caralho! – Levanta logo essa porra dessa manga!

O gordinho lentamente levanta a manga. Ali está um… Dragão.

-Dragão?  -Zé ficou desconsertado.

-Que foi, moço? Não gosta de dragões, né? Por favor, moço. Me libera. Pode levar o carro, o dinheiro…

-Cadê o Snarf?

-Hã? Quê? Do que o senhor tá falando?

-Porra. Eu sei que você é dos Thundercats! Errei quanto à tatuagem, mas vocês não iam dar este mole, né?

-Thundercats? Aquele desenho da… Xuxa?

-Fala desgramado. Pra que a arma no taxi?

-Calma moço. A arma é pra proteção. Eu vivo do taxi. É perigoso. Eu era de outra cooperativa que trabalhava à noite. Na noite tem que andar trepado, moço.

-Cooperativa é a puta da tua mãe. Você tá me jogando caô. Vai, desce. Desce já, filho da puta! -Disse Zé, sacudindo a arma na cara do gordinho.

-Não, moço. Eu tenho família. Tenho criança. Fica calmo. Não faz nada comigo não…

-Desce que eu vou te apagar viadão! -Gritava Zé.

-Não moço. Piedade. Eu faço qualquer coisa. Eu conto tudo! Qualquer coisa que o senhor quiser.

-Conta então do homem do opala.

-Opala? Bom… Tudo bem. O senhor que sabe. O homem do opala para o opala ali todo dia. Ele fica ali fazendo a segurança do mercadinho.

Zé estava atento. Olhava para o taxista com vontade de estourar aqueles miolos gordos.

-Nã mente pra mim caralho!

-Não senhor, não senhor. É verdade, moço. Ele é segurança do mercadinho.

-Fala a verdade porra! -Gritou Zé encostando a arma na cabeça do gordo. Ele viu que o gordo suava em bicas. Suava frio.

-Sim senhor. Eu falo. Eu falo, eu falo, eu fal…

-Ele quer me matar, por que?

-… – Tá bom. Tá bom. Ele quer matar o senhor. Por que eu não sei.

-Não sabe mesmo ou tá querendo morrer, porra?

-…Não sei não, moço. Ele não fala muito. Ele é quietão.

Zé baixou a arma um pouco. Aquilo fazia sentido. Parecia mesmo que o taxista não sabia do motivo que levou Lion a jurar a morte dele. Além do mais, fazia sentido também que o cara fosse segurança no mercadinho e falasse pouco. Todo mundo sabe que quem é segurança em mercadinho costuma ser policial fazendo bico ou ex policial, o que dá no mesmo. É um cara que está acostumado com armas, que já matou, que sabe matar. Tem tudo a ver. E se o Lion queria ele, estando preso, teria que mandar um profissional. Lion tinha dinheiro. Dinheiro de sobra para contratar alguém que conhecesse o lugar, que soubesse em detalhes a rotina dele. O segurança do mercadinho era o cara perfeito.

-Então agora você resolveu falar, né? – E quanto ele te pagou pra me pegar? Qual era o plano?

-Plano?

-Fala porra! – Gritou Zé.

-Ah, o plano… Deixa eu lembrar. O plano era pegar o senhor e levar. E aí… Aí depois, voltar lá… E dizer a ele pra onde eu levei o senhor. Só isso Só isso moço. Eu não sei de mais nada. Me libera, pelamordedeus… -O gordinho já estava chorando. E Zé Walter se compadeceu.

– Tá bom, puia. Tá bom. Desce. Desce e vai andando ali pra frente. Desce a pirambeira sem olhar pra trás, filho da puta! Se olhar eu atiro. Duvida que eu atiro? Hein? Duvida? Duvida?

-Não, não, moço. Não, não. Eu sei. Eu sei. O senhor atira sim. Pode deixar vou descer quietinho. Pode ficar com o taxi, com tudo, moço. Eu só queria pedir..

-Pedir um tiro, baleia?

-Não, moço. Pedir pro senhor me dar pelo menos a fotinho da minha filha. Ali no painel, ó. -Disse ele apontando com a sobrancelha uma foto de uma criança gordinha sorridente colada com durex no painel.

Zé acenou positivamente com a arma.

O gordinho tirou a foto e saiu andando sem olhar para trás no meio do mato.

Zé pulou para o banco do motorista e acelerou o carro de volta para a estrada.

Enquanto dirigia, a toda velocidade, pensava em tudo aquilo. Será que o gordinho falou a verdade? Seria ele só um motorista no lugar errado e na hora errada? Será que ele falou aquilo para poder não levar um tiro?

Zé tinha momentos em que pensava naquilo tudo e todo aquele rolo lhe parecia loucura. Mas era estranho como as coisas se encaixavam. Além do mais ele sabia que não era maluco. Nunca havia tido visões ou ouvido vozes. Não havia malucos na família dele e ele nunca precisou de ajuda para lidar com seus problemas. O olhar maligno de Lion no tribunal nunca mais lhe saiu da cabeça. Não, não podia ser loucura. E o homem da pizza? Ele e a mulher viram o homem. Não era um delírio. Era real. E o telefone cortado? O opala preto… O homem bigodudo que olhou pra ele. Era real. Tudo real. Definitivamente real.

Enquanto dirigia, Zé pensava em como aquilo tudo ia acabar. Como se livrar de um juramento de morte? É um beco sem saída onde o jurado acaba agindo como um boi no matadouro. Não há outro caminho que conduza a um destino diferente que não a morte. Não há fuga. Não tem como escapar, fugir, esconder-se. O cara é poderoso e mais cedo ou mais tarde irá encontrá-lo e cumprir sua promessa. Lion não sossegará enquanto não degolar mais um presunto. Além do mais o ato de misericórdia de não apagar o gordinho do taxi iria cobrar seu preço a qualquer momento. Certamente que a esta hora o gordinho já teria pego carona num caminhão até o posto de estrada mais próximo, de onde ligaria para o bigodudo, ou talvez até para um celular roubado, infiltrado numa vagina suja para dentro do presídio, que seria atendido prontamente pelo próprio Lion.

Então Zé Walter pensou que não havia escapatória. Talvez o melhor fosse pegar aquela arma e estourar os próprios miolos. Acabar de vez com aquilo tudo. Ele mesmo daria conta do serviço. Morrer, aquela altura lhe parecia deveras sensato, pois era melhor que viver eternamente sem saber a que horas Lion “liquidaria a fatura”. Não tem sentido arrancar a cabeça de alguém que se matou. Só o que lhe prendia ao mundo era Gizela. Mas ela acabaria entendendo. Sofreria no início, é verdade, porém, mais cedo ou mais tarde, conheceria alguém de quem ela gostaria e que gostaria também dela. E então, embalada numa nova paixão, com o passar dos dias, meses e quiçá anos, ela acabaria por esquecê-lo totalmente. Primeiro seu rosto, então de sua voz e finalmente de todos os momentos que passaram juntos.

Zé ainda dirigia quando pegou a arma e encostou na têmpora. Ele não saibaio se aquilo iria doer ou não. Acelerou o carro, para caso se algo saísse errado, e ele ainda podia morrer de acidente de trâsito. Mas antes que pudesse apertar o gatilho, teve um flashback onde viu o rato. O rato da garagem. Era uma mensagem do lado mais profundo da sua mente. Um insight de como poderia resolver tudo.

Tal qual o rato, sentia-se acuado. O problema dele começou quando condenou Lion. Lion queria se vingar e por isso o jurou de morte. Logo, o assassínio não era o problema. A morte aí é a consequência de uma sucessão de fatos. A vardadeira causa do problema  é o Lion. Ele sim é o problema. Ele que tem o dinheiro, a influência e o prestígio de mandar matar. Ele sim merece a morte.

Não há melhor forma de escapar de alguém que te jurou de morte do que matando a pessoa. O que o rato faz quando está acuado? Ele ataca. E ataca com tudo.

Zé guardou a arma no console do carro. Jogou o taxi no acostamento e assim que alguns carros passaram, ele fez a volta, pegando a outra pista em sentido oposto. Estava decidido a matar Lion. Cortar o mal pela raiz.

CONTINUA…

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. rsr rachei mt boa a história.. agora sim esse é o kling que eu conheço gostei a vera..
    mt engraçado “tão inocente quanto uma pomba rola…” rsrsrsr

  2. Nossa cara, eu quase nunca posto comentário. Sou o tipo de leitor de blog passivo. Mas tem horas que agente fica se coçando para comentar… A história ta DO CARALHO ein?! Quando eu achei que tava começando a esfriar…encaixou a memória do rato que eu achei que tivesse ocorrido à toa no meio da trama. Tá mandando super bem cara, faz a parte 6 que agente quer mais ! :lol:

    • fico feliz que goste. Mas agora vou ter que segurar ela um pouco, pois estou literalmennte perdido na ilha de lost, e o pior, sem o Locke pra dizer que vai parar a chuva… Vim pra ilha grande em Angra e agora tô preso aqui numa tempestade absolutamente fodida. Só conecto filando a wireless de uma pousada aqui. É muita água, meu. A coisa está tragica!

      • Pô, eu imagino Philipe…
        Aqui em niterói choveu horrores esses últimos dias também…É o famoso 8, 80. Agora não chove nada mas ta um sol desgraçado. Ta insuportável o calor. Mas vamos esperar pela continuação aqui ansiosos !

        • Eu já cheguei, mas estou correndo contra o tempo para adiantar uma série de coisas que deixei pendentes desde 2009. Assim que eu tiver tudo sob controle retomo a história.

  3. Puuuta, animal. A jogada de mestre que prende o leitor é o fato de que não se sabe se tudo é real, ou se é pura paranóia da cabeça do Zé. Até agora não foi revelada uma prova conclusiva de que tudo é real, até porque a carta pode ter sido brincadeira de um amigo fdp… Vai ver o cara da cadeia nem é o Lion msm…

    Rock on. :cool:

  4. Philipe, puta merda, li o conto ontem a noite e hoje peguei um táxi na rua, em Belo Horizonte, onde estou a trabalho. Falei pro cara que ia pagar em cheque e ele disse que tudo bem, contanto que eu mostrasse meus documentos e aí começou o maior papo de quando ele foi roubado tempos atrás e que quando o cara só usa cartão porque é mais prático que dinheiro pode acontecer do cara ser sequestrado e ter que informar a senha pro malaco sacar dinheiro e por aí seguia o papo.
    O cara dirigia bem devagar, não parava de olhar de um lado para o outro, e para piorar fomos a Contagem, passando pela Via Expressa, que é um lugar meio ermo.
    Comecei a lembrar do Zé Walter e a pensar que o cara ia sair da pista e me apagar numa quebrada para ficar com meu cartão. Fiquei com medo mesmo, pensava: – Que burro, peguei o táxi na rua, porque não andei uma quadra que lá tinha um ponto…mas no fim deu tudo certo, eu que estava viajando, impressionado pelo Jurado de Morte. Valeu pelo conto e espero ansiosamente a continuação.
    Forte Abraço

  5. Philipe,
    Cadê o resto do conto rapaz??? Daqui a pouco eu vou ter de reler ele todo pra re-entender o enredo novamente.
    Abraços,

    Vanderson

  6. Nossa! São 15 para às seis da manhã aqui e eu estou rachando de rir com essa história! ashuashuashuashuas To até com medo de acordar o povo aqui! kkkk
    Coitado do taxista. “desce que eu vou te apagar, viadão!” kkkk
    “-Opala? Bom… Tudo bem. O senhor que sabe. O homem do opala para o opala ali todo dia. Ele fica ali fazendo a segurança do mercadinho.”
    kkkkkkk Morri nessa hora! kkkk O coitado do cara tá quase tendo que inventar as coisas só pro doido do Zé não atirar nele. Não tem umas histórias assim, você acaba dizendo logo o que a pessoa quer ouvir, mesmo que não seja verdade, só pra criatura largar do seu pé? kkkkk Ou será que pode haver algo verdadeiro nisso? Vou ler as outras partes para descobrir! Aliás, muito legal o site! A primeira vez que li algo aqui foi O Despachante da Morte, muito bom, por sinal! Parabéns!

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