Estranha obsessão – parte 2

Já era tarde da noite quando Carlos chegou em casa.

Estava ligeiramente bêbado e arrotando chopp. O provolone à milanesa não tinha caído bem.
Carlos bateu a porta e cambaleou até a mesa da sala. Ali ele pegou a fita do bolso do casaco e olhou pra ela contra a luz do lustre. Era uma simples e antiquada fita cassete.
-Quais segredos estarão aqui dentro? – Falou sozinho.

Ele teve então uma súbita vontade de vomitar. Carlos correu para o banheiro já com a boca cheia de vômito amargo.
Carlos quase mergulhou na privada, mas conseguiu vomitar sem causar grandes destruições no banheiro. Seus jorros de vômito azedo com pedacinhos de provolone boiavam fétidamente na água do vaso, provocando um terrível efeito de círculo vicioso. Quanto mais ele vomitava, mais sentia as entranhas se contorcendo, mais jatos saíam na direção do vaso e subia aquele cheiro nauseabundo, e tudo recomeçava.
-Ai… Tô mal. Puta merda…
Quando já estava se sentindo melhor um pouco, entrou no chuveiro. Tomou um banho. Sentiu a água caindo na cara, tudo rodava, bastava fechar os olhos e era difícil saber para que lado ficava a saboneteira. Carlos temeu perder os sentidos.
-Maldita birita!
Ele saiu do banho se enxugando, e vestiu umas cuecas samba-canção que usava para dormir e uma camiseta branca de político.
Agora ele já se sentia bem melhor. O pileque estava passando.
Voltou para a sala e não viu a fita.
-Porra… Eu tinha deixado ela aqui.
Carlos ficou cabreiro. Olhou na mesa, levantou uns papeis, olhou no chão… Nem sinal da fita. Procurou debaixo da mesa. “Deve ter caído” – Pensou.

Então, enquanto estava agachado, sob a mesa, sentiu um vento gelado batendo nas suas pernas. Olhou para trás de sobressalto e viu:
A porta estava entreaberta.
Imediatamente um arrepio lhe percorreu a nuca e seus cabelinhos se eriçaram. Seu coração quase parou quando a ideia de que poderia haver mais alguém ali dentro da casa dele lhe assaltou os pensamentos.

Carlos levantou-se devagar. Andou lenta e cautelosamente pelo apartamento. Temia ser atacado a qualquer momento. Talvez tivesse sido seguido.
“Alguém entrou aqui”… – Pensou.

Ele tinha jogado a fita sobre a mesa. Não sabia quanto tempo ficou vomitando, talvez tivesse perdido a noção do tempo, talvez tivesse até perdido os sentidos por alguns minutos e nem se lembrava. O invasor teria todo tempo de entrar e pegar a fita… Sim, era isso, não havia mais outra possibilidade… Inclusive, o porre! Aquele porre estranho causado por chopp e duas doses de uísque? Certamente alguém teria botado bolinha em seu drink.
Carlos esgueirou-se como uma sombra pela parede. Acendeu a luz da cozinha, pronto para se agarrar com o ladrão. Mas a cozinha estava vazia. Não havia ninguém ali. Ele correu até o armário sob a pia e abriu a gaveta. Tirou a faca do churrasco.
Caso o ladrão ainda estivesse ali ele estaria preparado.

Carlos voltou para a sala, a faca em punho. O medo quase paralisando-o. A respiração ofegante… “É matar ou morrer!” – Pensou.
Foi de quarto em quarto… Nem sinal de ninguém.
Então, Carlos viu algo… Viu de relance, perto da cama. Dois sapatos estavam atrás da cortina.

Ele se tremeu todo. Ali estava o bandido. Paradinho, sob a cortina. Imóvel.
Carlos passou, corredor adiante, tentando não dar bandeira que tinha visto.

-“Caralho, caralho, caralho!” – Ele só conseguia pensar isso.

Ele não acendeu a luz do quarto, só viu na penumbra, os sapatos ali. O cara estava escondido. Imóvel sob a cortina do quarto de hóspedes. Carlos até pensou em ligar apara a polícia. Precisava avaliar sua situação… Fazer alguma coisa.

Não… Polícia ele ia ouvir. Carlos precisava aproveitar o elemento surpresa. A situação agora estava a seu favor. Ele tinha uma faca afiada em punho, o bandido certamente estava achando que tinha conseguido se esconder…
Carlos lentamente passou pelo corredor, olhando de rabo de olho. Lá estavam os sapatos, brilhando sob a luz difusa que vazava do corredor.

Ele precisava de um plano. Precisava pensar.
Foi até a sala, andando de costas. Temia ser agarrado por trás.

Sua mente agora eram só perguntas.
“Quem quer tanto essa fita?”
“Por que?”
“Por que o ladrão não fugiu? Será que eu saí do banheiro antes que ele pudesse cair fora? Certamente não.”

Não, sem sombra de dúvida não era isso, já que ele demorou no banho. O bandido teria tido todo tempo do mundo de pegar a fita na mesa e dar o fora. Algo estava muito errado…
-“Só se… Puta merda, então talvez não seja somente um bandido. Pode ser um… assassino!”

Carlos começou a tremer. Sim, somente um assassino justificaria o fato de se esconder, ficar imóvel esperando que ele, bêbado, drogado, caísse em um sono profundo. E então seria quando finalmente o facínora sairia de seu esconderijo silenciosamente, iria até o quarto dele “liquidaria a fatura”.
A vontade de vomitar voltou. Carlos sentiu-se tonto. Tinha medo de um novo ataque de pânico. Talvez mais medo do ataque do que do assassino escondido no quarto de hóspedes.

-“Calma, Carlos! Calma!!! …Preciso me manter calmo!”- Pensou. Ele voltou lentamente pelo corredor. Não podia correr o risco de perder o elemento surpresa.
Pegou a faca, apertou a mão firmemente no cabo, preparado para cravar no bucho do maldito caso ele tentasse qualquer coisa.
Foi até o quarto e parou perto da porta, onde começou uma contagem mental.

“1… 2… 3… Agora!” – Então ele entrou no quarto com a faca na mão, sentindo arrepio atrás de arrepio lhe gelando a alma.
Carlos bateu a porta e trancou.

-“Há! Filho da puta!”- Pensou.
Agora ele tinha trancado o bandido no quarto. Ainda estava na frente quanto ao elemento surpresa. Poderia chamar a polícia tranquilamente, sem risco de… “Calmaí!”

“E se não for um só?” Pensou assutado.

Certamente não era só um. Bandidos solitários até que são normais, mas assassinos sempre andam com cobertura, caso saia algo errado… Pode ter algum outro, um comparsa.
Carlos começou a temer que a casa não fosse mais segura. Pensou em sair correndo porta afora, mas e se o comparsa estivesse na escada, ou na portaria a espreita do amigo? Com certeza ele se tornaria um alvo fácil.

Ele precisava pensar. Precisava pensar!
“Sim, é isso!” – Teve uma ideia.
Carlos sabia que se o facínora estivesse à espreita, esperaria um momento garantido para agir. Se houvesse um comparsa, este estaria a espera de um sinal… Uma indicação. Carlos foi até o quadro de luz perto da geladeira. Ali ele desligou a chave-geral. A casa se apagou. Ficou tudo às escuras.

“Agora eu não vejo eles, mas eles também não poderão me ver”. -Pensou.

Carlos foi até a sala, tateando pela parede, achou a maçaneta. Travou a porta e trancou, tentando não fazer barulho.
Esgueirou-se lentamente até o corredor. O quarto ainda estava do mesmo jeito.
Carlos pegou o celular em cima da mesa. Usou a tela do celular como lanterna. Era uma luz fraca, que mal dava para enxergar o caminho.
Ele precisava fazer uma varredura na casa, para se certificar que o comparsa não estava mesmo ali, escondendo-se também.

No banheiro ele sabia que não estava, pois ele saiu de lá. Olhou sob a cama do quarto dele. Nada. Olhou nos armários. A faca em riste numa mão e o celular na outra.
Nada…

Foi até no quartinho de bagulhos onde ele guardava cadeira de praia, prancha de surfe rachada, maquina de lavar o carro, jornais velhos, garrafas vazias e aquele monte de tralha que todo mundo junta ao longo da vida. Mas não havia ninguém.

De fato, ele parecia estar sozinho com o bandido. Se havia mesmo um comparsa, ele estava do lado de fora. Esperando…

Carlos, abaixou a luz do celular, apertou o aparelho contra o peito, de modo a reduzir a luminosidade. Voltou ao quarto. Ainda estava trancado.

-“Ele ainda está aí dentro… O filho da puta…” – Pensou.

E agora? O que fazer? Esperar que o facínora pensasse que ao apagar as luzes ele tinha ido dormir e atacá-lo de surpresa saltando de dentro do banheiro?
Isso seria uma boa ideia, mas ele poderia estar armado também, talvez com um revólver, e poderia disparar… O que fazer?
“A melhor defesa é o ataque” – Aquela frase que ele ouviu tanto nos cursos de reciclagem profissional e palestras de auto-ajuda agora martelavam em sua cabeça.

Ele sentiu o peso da faca em suas mãos.

Carlos lentamente girou a maçaneta, destravando a porta. Sentiu o clique e a porta se abriu.
Ele já não podia enxergar direito. Estava disposto a agir, mas não iria esperar uma ação do assassino para reagir.

“Quem sabe faz a hora não espera acontecer!” – Pensou.
Carlos pegou a faca pela lâmina. Dobrou bem o cotovelo, inclinou-se pela lateral da porta, expondo ao mínimo sua silhueta na escuridão e lançou a faca com toda força na direção da cortina.
A faca bateu em algo duro, ele ouviu um estalido e numa fração de segundos que pareceu durar horas, Carlos afinou os ouvidos para tentar obter um gemido, um grito, ou um baque seco qualquer, uma indicação que havia acertado a facada voadora no facínora. Mas tudo que ouviu foi o barulho de vidro rachando. Carlos pegou o celular e iluminou o quarto, pronto para uma luta corpo a corpo, quando viu o vento entrando pela janela quebrada. O vento empurrava a cortina, e ele reconheceu suas botas de acampar… As botas que ele achou que havia perdido!

-Puta que pariu! – Carlos berrou aliviado.

Não eram os pés de um assassino. Aquelas eram suas próprias botas que a faxineira achou jogadas, provavelmente no quartinho dos bagulhos e colocou ali.
Ele até se sentiu feliz de ter quebrado a janela com a faca de cortar bifão.
Agora tudo fazia sentido, as botas tinham sumido, porque estavam no quarto de hóspedes. Carlos nunca entrava ali, porque aquele era o quarto do Júnior. Era doloroso entrar lá. Ele desmontou o quarto do menino quando ele desapareceu no acidente. Transformou o quarto num quarto de hóspedes, mas nunca recebia ninguém.

Carlos voltou até a cozinha e reativou a chave geral.

O apartamento se acendeu novamente.

Ele então se lembrou que entrara bêbado e não trancara a porta. Por isso ela abriu com o vento…
Mas onde estava a fita?

Carlos voltou a procurar. Não estava na sala… Ele refez o caminho e quando olhou atrás do vaso sanitário… Lá estava ela!

-Sacana! Te achei! – Ele disse sorrindo.

Carlos foi até a sala, ligou o som. – Tomara que esta porra ainda funcione.
Ele tinha um velho aparelho do tipo “três em um”, que tocava fitas.

Colocou a fita, sentou-se no sofá e apertou o play.

Imediatamente, escutou a sua voz. O terapeuta estava contando… Dizendo seu nome. Disse para ele se sentir afundando…
Carlos acelerou a fita. Ela girou algumas vezes. Carlos ligou o play.
O Dr. Ruy, o hipnoterapeuta lhe perguntava algumas coisas. Pareciam sem sentido…
Ocorreu um longo silêncio e então ele se ouviu responder.

A primeira parte da sessão parecia completamente normal. Até bem sem graça. Ele respondia perguntas sobre acidente que vitimou a mulher e o filho. Contou como foi, que ele dirigia pela estrada e numa súbita ausência, que pensava ser uma crise de pânico se iniciando, perdeu o controle do veículo. O carro voou no ar e ele não viu mais nada.
Dr Ruy pareceu intrigado com os corpos dos dois sumirem.
-Mas nunca encontraram os corpos?
-Não… Nunca. Carbonizou tudo. – Carlos se ouvia responder na fita, em transe. Era incrível como ele não lembrava absolutamente nada de ter tido aquela conversa.

Dr Ruy disse que Carlos irira ver um filme, numa sala de cinema, num monitor, que iria mostrar aquele dia.
-Está vendo? -Ele escuta a voz do mexicano na fita.
-Estou.
-Onde você está?
-Estou… No carro. No carro.
-Está sozinho?
-Não, a Sarah está dormindo do meu lado e o Júnior atrás.
-Ele está acordado?
-Não, estão todos dormindo.
-É dia, tarde ou noite? Que horas são? – Pergunta o hipnólogo.
-Três e vinte da manhã… A estrada está vazia. Está fresco. Bom para viajar.
-Ok, Carlos… Agora vamos acelerar o filme até o momento em que acontece o acidente.

Carlos começa a ouvir gemidos na fita. Reconhece imediatamente sua própria voz. Ele está choramingando.

-O que foi? -Pergunta Ruy.
-A luz… A luz.
-O que é a luz, Carlos? É um farol?
-Não sei. Ela está… No céu.
-Uma luz no céu? Um avião?
-Não sei, estou com medo. Está caindo. Está descendo. – Sua voz assume um tom de medo, e depois de pavor. Carlos começa a gritar.
-Calma, Carlos. É um filme. Lembre-se! Um filme na tela. Podemos parar a qualquer momento… – Diz o mexicano, acalmando-o.
Carlos parece se conter na sessão. Ele se acalma.

-Descreva o que acontece com a luz, Carlos.
-A luz desceu, está baixa. Eu não consigo me mexer.
-Você bateu o carro na luz? – Perguntou Ruy.
-Não. O carro parou. O motor pifou depois da curva. Aí eu vi a luz.
-Carlos, descreva a luz. Como ela é?
-A luz… – A voz de Carlos começa a tremer. Respira rápido e está ofegante. – …É mesmo uma luz que brilha muito, brilha de verdade, é um resplendor… bem debaixo do veículo…Bem em cima do carro… Lá fora, tudo está preto.
-Onde está sua mulher?
-Não sei. Não está mais do meu lado. Nem o Junior. Cadê o Junior? Cadê o Junior, meu Deus?- Carlos parece começar a se agitar novamente.
-Você está sozinho?
-Não… – Carlos sussurra.
-Não? – Pergunta o terapeuta. – Fale mais alto, Carlos. Conte o filme pra mim.
-Tem… Um… Homem ali.
-Um homem? Quem é ele? Como ele é?
-Não quero olhar… Ele veio da luz. Está olhando pra mim. Eu tenho medo. Medo…
-Está tremendo, Carlos. Lembre-se que é um filme. Conte o que acontece a seguir.
Há um longo silêncio na fita.

“-Porra será que acabou?” – Pensou Carlos no sofá.

Então ele ouviu novamente a voz do hipnoterapeuta.

“Retomando a gravação. O paciente entrou em crise convulsiva. Aprofundei o estado hipnótico e apliquei diversas sugestões de bloqueio e relaxamento, para poder ter acesso a partes mais traumáticas e inacessíveis das memórias do paciente. Prosseguindo com a sessão…”

-Você está na sala? – pergunta Dr Ruy. Carlos não responde e ele repete a pergunta seis vezes, da mesma maneira, até que finalmente, Carlos rompe o silêncio. Sua voz é fraca e trêmula.
-Na sala…
-Como é a sala?
-Tem uma luz. Uma luz forte.
-Vem do teto?
-Não… Não sei.
-Você está com o homem?
-Não. Não consigo ver. Tem alguém aqui… Atrás, atrás de mim. Mexe na minha cabeça. É uma mão… fria. Eu sinto. Mas não posso me mexer e a luz dói nos olhos.
-Essa sala, é dentro da luz ou fora da luz?
-É dentro. Eu estou dentro da luz, mas não sei como. A cabeça dói. Está doendo…
-Você sente a dor na cabeça. A dor é do lado de dentro da cabeça ou do lado de fora. Por favor, me descreva a dor. Não tenha pressa, observe no monitor o que se passa e me conte com detalhes. – Diz Ruy, calmamente.
-É dentro. Estão mexendo dentro da minha cabeça. Eu… Eu… Não. Não!!! – Carlos parece aflito, desesperado. Começa a chorar. O terapeuta intervém, mas ele interrompe Ruy.
-Eu vi! Eu vi um deles. Está ali. Perto do meu pé. Estão me deitando. Está bem gelado. Sinto frio… Ele voltou. consigo vê-lo pelo canto do olho. Ele é feio. Oh, meu Deus! É um bicho, uma… coisa. Um monstro! Socorro! Quero sair daqui. Me solte! Me solte! Eu… eu… eu… Eu não posso… não posso… não… Está doendo!
-O que estão fazendo? – Pergunta Ruy, tentando interpor sua voz sobre a de Carlos.
-Estou de olhos fechados. Não quero ver. Estão me furando. Me picando com uma coisa… Doi muito.
Ocorre então um longo silêncio na fita.

-Carlos? – é a voz de Dr. Ruy. Ele não responde. Ruy continua a chamar, uma duas, quatro vezes. Então, ele geme.
-hunnn. Estão falando… Falando comigo.
-Quem fala com você?
-Eles. Os bichos.
-O que eles falam? Eu não entendi a primeira parte. Parecia um radio fora da estação… Mas agora escuto. Escuto na minha cabeça.
-O que estão dizendo? Conte tudo.
-Dizem para não ter medo. Dizem que não estou pronto. E-eu tenho medo, muito medo deles. Sinto as mã-mãos geladas nas minhas costas. O frio está cada vez pi-pior.
-Conte o que mais eles dizem.
-Dizem que estão vindo. Estão aqui. Que eu devo abrir os olhos. Es-estão me preparando, mas não sei o-o-o que. Eu vejo um homem. Ele é gente. Não é igual aos bichos.
-Gente?
-É…Ele está… Está parado. Espere… Ei, eu sei quem é ele. Eu sei! Ei!!! Eu conheço esse homem.
-Quem é?
-É o Ar-Arnaldo…
-Arnaldo? Esse é o nome dele?
-É… Mas eu não conhecia ele ainda. Eu conheci ele depois.
-Como ele é?
-Ele é pálido. Está parado, me olhando. Não sorri. Ele está com eles. Não é ele que está falando comigo. É a coisinha. O bicho. Perto dele.
-Como o homem esta vestido?
-Ele esta usando um macacão preto.Colado. Parece roupa de super herói (Carlos ri de um modo infantil)… Ele é o Kid babaca. Kid babaca… Kid…
-O Arnaldo está parado, só isso?
-Está. Está vendo o que estão fazendo comigo. Acho que ele é o chefe. Parece ser… Está olhando sério. Ele me dá medo. Não consigo olhar nos olhos dele. Ele me perturba.
-Os pequenos estão colocando uma coisa na minha cabeça agora. Uma coisa que tem uns buracos…
-Como é a coisa? É como um capacete?
-Não, é meio transparente. Parece um cesto de lixo de acrílico ou vidro… Eu vi rápido, eles me colocaram na cabeça e escureceu. Agora eu não vejo nada. Está me su-sufocando. E… (silêncio)

-Carlos?
-…
-Carlos? Responda. Você está no cinema, esta vendo um video, que podemos parar… Conte o que você esta vendo.
-To-toca uma musica.
-Musica? – Dr. Ruy parece se espantar.
-Toca… Eu sei que musica é… Passacaglia, de Handel. A musica que minha mãe tocava no piano…
-Uma musica clássica?
-Esta tocando… Tocando… Oh, como é linda. Violinos… Eu gosto de violinos. O frio parou. Esta quente. Eu estou ouvindo a musica…Bela musica…
-O que você vê? O que acontece enquanto toca a musica?
-Esta tudo branco. E eu sinto-me leve… Os violinos tocam devagar agora. Sinto calor. A luz esta apagando. Apagando… E eu sinto um gosto de metal. Metal na boca. Ferruginoso. (longa pausa) sangue. Estou com sangue na boca. Estou sentindo dor.
– E a musica? – Agora a musica são estalos, e eu estou tonto, sentindo muita, muita dor. Meu peito… Dufícil… Respirar. Esta quente. Sufocando. (começa a tossir)
– O que está acontecendo?
-Uns homens me agarram. Estão me puxando… Me tirando do carro. O carro está em chamas. Pegando fogo. Na árvore e no mato. Eles me arrastam e eu não sei onde estou.
O homem diz que foi um milagre. Que é um milagre. Ele diz isso repetidamente. Estão gritando. Pessoas estão correndo ao meu redor… São bombeiros. É o SAMU, não sei… Pra onde estão me levando? Ei? Pra onde? Me ajude. Doendo…
-SAMU?
-Estou na ambulância agora. Eles me colocam uma coisa pra respirar. E eu queria ouvir a musica… a musica estava tocando… Tão lindamente. (pausa)
-O que houve?
-Não sei, estou no quarto do CTI. A enfermeira esta me contando uma coisa. Não entendo, ela diz e eu não entendo… É sobre Sarah. Quer saber do acidente. Como foi. Eu digo que não sei… (nessa hora Carlos lembrou-se… Ali ele já tinha alguns fragmentos de memórias, e ouviu que começou a chorar quando hipnotizado durante a regressão)
-O que ela te disse?
-Só… Só eu sobrevivi. A culpa… É minha. Minha. Eles vão me dopar. Me apagar. Operação? Eu quero esquecer. Isso… Assim. Quero ouvir a musica. Violinos… Quero… (pausa longa)

O terapeuta começa a falar alguma coisa, mas a gravação falha. Surge um silêncio, ruídos, batidas e estalidos.

Ele escuta um berro, é sua própria voz, pedindo socorro. E a fita termina. Carlos pulou do sofá, virou o outro lado da fiota cassete, mas só havia ruído. Ele então lembrou que o gravador estava com defeito. O que quer que tivesse acontecido na sequência, estava perdido.

No sofá, iluminado pela meia luz que vazava do lustre sobre a mesa da sala, Carlos estava perplexo. Não podia acreditar no que acabara de escutar, em sua própria voz gravada. Ele não se lembrava de quase nada… Lembrava vagamente da enfermeira, do CTI, mas não lembrava absolutamente nada do disco voador, não lembrava de um homem ou criaturas, nem luzes… E aquele delírio sobre o Arnaldo, o gerente do segundo andar dentro do disco voador? E depois os gritos, eram gritos aterrorizantes. Ele sempre detestou aquele cara…

Carlos ficou ali… Já raiava o dia e naquela noite, não dormiu.

Yara estava assinando uns papéis, quando levou um susto ao ver Carlos, parado, debruçado na mesa dela.
-Porra que susto, Cacá!
Carlos estava parado… O olhar meio ressabiado. Ele sorriu sem dizer nada.
-Ouviu a gravação? – Ela perguntou.

Ele ainda estava quieto, e Yara notou que algo não parecia normal.
Ele estava pálido. A expressão. Assustada, com olheiras, parecia um caco.

-Que foi? É tão ruim assim? Acordou de ovo virado é?
-Ressaca…-Ele se limitou a dizer.
-Mas e aí, menino? Me conta! E a fita?
Carlos olhou para os lados, desconfiado. Sussurrou para a amiga: -Aqui não é seguro. – Disse, apontando para um canto da sala.
-Hã?
-Pssssss! Vem, vem… Ele fez um sinal discreto para que ela o seguisse. Ela foi.
Os dois seguiram pelo longo corredor da firma, até a sala do arquivo.
-Que merda é essa? -Questionou Yara.
Carlos então contou a ela o que havia na fita. Mas Yara parecia não acreditar.
-Disco voador? Isso não existe, Cacá! Isso é coisa de gente de miolo mole!
Mas Carlos insistia.

-Quer saber? Eu acho que esse cara lá era um picareta. -Sentenciou Yara.
-Picareta? Mas você não prestou atenção em nada do que eu falei, Bibi? O cara me hipnotizou mesmo! É minha voz gravada lá, pô!
-Cacá, em hipnose, se o cara quiser, ele pode te manipular, pode ter implantado lembranças falsas em você, cara!
-Não, eu não acredito! Eu… Sabe, simplesmente não faz sentido.
-Cacá, olha, você bateu de carro, lembra? Foi um acidente horrível… Nem sei como você escapou. Mas o importante é que você está aqui! Olha pra você, cara! Inteirão! Para de ficar se agarrando ao passado, meu!
-Mas eu lembro da viagem… Eu só não lembro do acidente.
-Ninguém lembra, Cacá! É um trauma… Você perdeu a família… O cara usou isso para te fazer elaborar uma história. É tudo um enredo pro seu trauma!
-Mas… Sei lá. Eu acho que…
-Cacá, você ficou confuso com o acidente. O cara te hipnotiza e reorganiza suas lembranças num enredo espetacular que atenua sua dor. Já até sei onde ele queria chegar…
-Como assim Bibi? Do que você ta falando?
-Claro, Carlos. Presta atenção, meu. Olha o puta enredo de filme que você acabou de me contar, cara! Não acha nada de errado com ele, né? Mas e sua mulher? E seu filho?
-Eu… Sei lá. O que você quer dizer com isso?
-O mexicano implantou essas memórias para atenuar a dor da sua perda, Cacá. Nessa história eles não morreram queimados. Eles estão sei lá… Em Júpiter! Vai saber? Ele alterou o que ele achava que era a raiz do seu problema, e mesmo criando uma viagem doida ali, ele direcionou o fluxo do seu sofrimento para uma esperança de reencontro com eles… No cosmos!
-Caralho, Bibi… Você devia ser terapeuta!
-Todo mundo diz isso. – Riu Yara, fazendo uma pose, com o dedo em “L” ao lado do rosto.

Nisso, a Neide entrou na sala.

-Opa, estou interrompendo alguma coisa?
-Hã? Claro que não.- Disse Yara.
-Então? O que é que tá rolando? Fofoca, é? – perguntou a Neide. A tal Neide era uma velha peituda e fofoqueira. Ela era secretária do Edimilson da contabilidade.

Os dois disfarçaram, conversaram um pouco de amenidades, esperaram a Neide fazer a caveira da Sandra, secretária do Doutor Jorge Carvalho, que era uma puta safada que estava de caso com o Edimilson. Os dois fingiram se espantar com a “novidade”. Aí deram uma desculpa qualquer e voltaram ao trabalho.

Naquela noite, Carlos estava na cama quando acordou ensopado de suor.

Foi um pesadelo com a abdução. Os aliens. Ele reviveu tudo. Lembrou com enorme clareza de alguns detalhes. Carlos estava olhando a parede do quarto, ofegante. Ainda podia visualizar em pensamento a figura de Arnaldo com o macacão. Os olhões azuis cravados nele.
Carlos não perdeu tempo. Passou a mão no telefone da cabeceira e discou.

Yara estava no quinto sono quando o telefone tocou.
– “Alô?”
– Carlos?
– Bibi!
-Mas que porra é essa? Isso são horas? …. Hã? Hã? Sonhou? Era ele mesmo? E se você sei lá, imaginou esta porra?

Yara o acalmou. Mas Carlos estava muito agitado. O único jeito de convencer o cara a se acalmar foi prometer a ele que ela iria ajudá-lo a tirar a história a limpo.
Após contar todo o sonho e correlacioná-lo com a experiência da hipnose, ele se acalmou e finalmente relaxou.

Quando Yara desligou o telefone, olhou a hora. Já eram quatro horas da manhã. Ela estava morrendo de mau humor…
– “Só me faltava essa… Trabalhar com um Et!”

No dia seguinte, eles se encontram perto do café da empresa.
-Bibi!
-Xíí, lá vem bomba! – Ela gemeu baixinho, mas alto o suficiente para que ele ouvisse.
Carlos nem se abalou: – Tive uma ideia! – Disse ele, empolgado.
-Tá, manda logo a doideira! – Yara respondeu, impaciente.
Carlos contou seu plano.
O plano era investigar o tal Arnaldo.

-Porra Cacá, todo mundo sabe que o Arnaldo é um cara meio… estranho. Mas daí a desconfiar…
-Estranho pra caralho, você quer dizer, né? – Interrompeu Carlos. E continuou: – Eu vou dar um jeito de convencer a Marcinha lá do RH a mostrar a ficha do Arnaldo. Assim, eu posso fazer uma cpopia e aí a gente dá um “pente fino” nele, vamos descobrir quem é este cara.
-Calma. Calma aí um minuto! Você não está falando sério que acha que o cara doido lá do segundo andar é um ET!
-Não estou dizendo isso… Mas já que você me perguntou, acho que é por aí.
-Ah, você pirou! – Disse Yara com a boca cheia de biscoitinhos.

Ao longo daquele dia, os dois começam a observar o Arnaldo de longe…
-Porra, como ele realmente é estranho. – Yara disse.
Carlos tinha certeza de que Arnaldo era mesmo um alienígena. Mas a amiga relutava.
-Ele pode ser apenas estranho, pô. Afinal, você também é estranho e não é et! – Ela brincou no ramal.
-Porra, tô falando sério, caramba. Ele estava lá. Na nave!

Durante o almoço os dois trocavam confabulações conspiratórias.
Eles observaram pequenos detalhes… Carlos notou e comentou com Yara que viu muitas vezes o Arnaldo pegar o telefone sem olhar, digitar também sem olhar e não falar nada.
-Ele fica mudo, apenas ouvindo… – Da ultima vez ele ficou assim mais de dez minutos! Porra não faz sentido isso. Ele está ouvindo o que? Já viu alguém pegar o telefone, ligar e não falar?
-Tudo bem, até que é estranho mesmo aquele cara… Mas já parou para pensar se ele não está, sei lá… Ouvindo rádio?
-Rádio?
-Claro. Quer uma desculpa melhor para morcegar no trabalho que pegar um telefone e ligar para uma radio? Ele até pode concorrer a prêmios e parece que está trabalhando.
-Eu sei lá. Pra mim é suspeito.
-Tem um jeito de saber. – Disse Yara.
Carlos Sorriu. Havia entendido a ideia.

Assim, eles combinam dela distrair Arnaldo para que pudessem ver para que numero ele ligava tantas vezes ao dia.

Naquela mesma tarde, faltava meia hora para o fim do expediente. No corredor, surgiu Yara.
Ela foi até a mesa, perto da do Arnaldo. Ela disse a ele que estava com documentos para ver com o Marcio.
-O Marcio está de Férias. – Disse Arnaldo, sem se mover da postura ereta, quase robótica que assumia na cadeira.
-Ah, tudo bem. – Respondeu Yara.
Ela saiu e depois de dar dois passos, caiu no chão.

Alguém gritou. Correu todo mundo.
-Nossa, ajuda, ajuda, gente. – E veio gente de todos os setores acudir, abanar e falar. De longe, Carlos observou Arnaldo se mover lentamente, como se estivesse na água. Ele foi até a pequena multidão que cercava Yara, fingindo o desmaio ali no chão.
Arnaldo se abaixou entre as sete pessoas que sacudiam, estapeavam, abanavam e gritavam o nome dela.

Nisso, aproveitando a confusão, Carlos foi até a mesa de Arnaldo. Ele pegou o telefone. Discou “redial” e escutou…

Um estranho som, cheio de chiados e cliques rolou do outro lado.
-Alô? – Disse Carlos.
Imediatamente a linha foi cortada.
No mesmo segundo, Arnaldo deu um pulo e olhou para trás, com seus olhos profundamente azuis cravados em Carlos.

E então ele sentiu aquele frio gélido de suas mais terríveis lembranças a corroer-lhe as entranhas…

Arnaldo levantou, num gesto quase robótico e veio direto até ele.

“-Ih, agora fudeu!” – Era tudo que Carlos podia pensar.

————————-CONTINUA AMANHÃ ————————

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. A segunda parte foi ainda mais cheia de detalhes do que a primeira. Com suspense e mistério de alta qualidade. Ansioso pela terceira parte e as outras que virão!!

    • Odeio esse suspense, uma história tão incrível, é tipo aqueles livros que você só pára de ler quando termina.
      Parabéns Philipe, gosto muito dos seus contos.

  2. Porra, última vez que me empolguei tanto assim foi com aquela “série” do cartão negro e do zumbi.

    Manda bala Philipe! \o/

  3. Estava com saudade dos contos, hehe…
    Bom começar a lê-lo sem saber que se tratava de um conto sobre aliens e abdução, foi uma surpresa agradável.
    Outro ponto a destacar é a passagem em que o protagonista acha que há uma assassino em casa. É raro este tipo de desvio da história num conto, mas eu gostei. Só é necessário tomar cuidado pra não “encher linguiça”, haha (a não ser, é claro, que esta passagem venha a ter algum peso na história, posteriormente).
    No mais, continuo admirando a maneira como constrói seus personagens.

    Bem, aguardo a continuação!

    • No meu resumo mental do conto, não tinha, mas achei legal inserir isso para aumentar o traço de neurose persecutória da personalidade desse cara. Isso se justificará hoje, hehehe.

  4. Adorei a 2ª Parte, muito boa mesmo, me devolveu aquela expectativa que eu tinha na época do Zumbi. Aguardando a continuação

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