A caixa – Parte 38

Acordei na cama. Mara estava ao meu lado, dormindo pesado.

Eu sentia uma estranha dor de cabeça, ouvia um zumbido baixo no ouvido. Uma sensação de que algo estava errado. Mas eu não sabia exatamente o que. Bom, a verdade é que parecia que estava tudo errado. A unica coisa que fazia sentido na minha vida nos últimos dias era a Mara.
Alisei seu corpo macio, afundado no colchão importado. Eu nunca tinha visto um colchão bom como aquele.
Desperto do sono pesado que me invadiu depois de fazer amor com a Mara, comecei a remoer pensamentos sinistros. Por que a velha não havia me tirado logo os dois olhos? Certamente isso devia ter um motivo. A única explicação que encontrei em minha mente foi que ela realmente achava que iria me convencer a entregar a cabeça de Leonard numa bandeja de prata. Certamente que a troca pelo olho seria um embuste. Ela não iria cumprir a promessa de me deixar em paz. Aliás, depois de trazer sei lá que abominação para o mundo, certamente eu pouco lhe importaria, e quem sabe ela realmente me deixasse em paz, num mundo apocalíptico.
Grandes merdas…

Levantei, vesti as calças e fui até a varanda. O vento frio soprava o sereno da madrugada em mim. Vi as ondulações na piscina lá em baixo e não pude deixar de lembrar como que quase morri afogado nela lutando com o playboy escroto.
Eu estava absorto em pensamentos diversos, num carrossel de assaltos súbitos à minha sanidade. Volta e meia eu me atinha à igreja, ao padre, ao Leonard… Eu lembrava do Cabelinho, sentia o remorso pelos que morreram no incêndio. Então eu pensava na velha, lembrava da caixa, do Mungo… Lembrava da sensação horrível de sentir o corpo em pedaços do seu Alfredo caindo em mim na caixa. Eu lembrava do homem de fraldão sob o poste, segurando o guarda-chuva. Algo que nunca entendi. Lembrei daqueles tipos de vermes com perninhas de aranha que saíram de dentro da boca do sujeito do ônibus e do cabelinho… Talvez eu estivesse ficando louco.

Subitamente senti uma coisa me agarrar o peito. Ouvi a voz gutural da bruxa no meu ouvido e suas unhas cravando em meu peito.

-Eu quero você! – Ela disse.
Eu dei um grito, tentando empurrar a maldita, mas quando vi, não sei explicar, mas era a Mara.

-Ai! – Ela gemeu, segurando o peito. Eu acidentalmente, no susto, havia dado uma cotovelada nela.
-Desculpa! Achei que era…
-Tudo bem… – Ela me interrompeu. – Eu não devia ter chegado assim por trás, de surpresa. Não depois do que aconteceu aqui, né? Eu que peço desculpas por ter te assustado. – Ela disse.
-Você está bem? -Eu perguntei, segurando a Mara pela cintura. Ela ficava linda com aquela camisola.
-Perdeu o sono? O que foi?
-Não sei. Fiquei pensando, vai que seu pai chega e… Sabe como é. Pega mal, né?
-Ele esta viajando. Foi pra Caxias do Sul comprar uma vinícula. – Disse Mara.
-Eu preciso ir. Preciso contar ao Leonard o que aconteceu.
-Mas são quatro e quinze…
-Eu sei, mas eu preciso ir. Acho que você devia ir comigo. É mais seguro. A velha pode voltar.

Mara concordou. Foi se arrumar. Eu fiquei ali na varanda, olhando o imenso jardim.
Então, uma coisa estranha aconteceu. Entrou pelo canto da minha visão periférica uma mancha. Ela se moveu pelo jardim e parou perto da piscina. Eu não conseguia distinguir exatamente o que era, mas não era uma sombra. Era uma forma confusa, não muito nítida.
-Mara?
-Que foi? – Ela perguntou de dentro do closet.
-Vem aqui ver uma coisa. – Eu disse, tentando manter a calma.
Mara veio, enfiando um casaco de lã. Estava frio.
-Que é? – Ela perguntou curiosa.
-Ali. Tá vendo alguma coisa ali, perto da piscina? – Perguntei apontando na direção da mancha.
-Hã? Não.
-Ali, perto das flores amarelas. Ali, junto do canteiro. – Eu apontei.
-Não, não tem nada ali. – Ela disse em tom afirmativo.

Mas o estranho é que tinha. Tinha uma coisa ali, com uma forma de pessoa, mas estava totalmente borrada. Eu fiquei quieto. Mara entrou para calçar os tênis.
Eu fiz um teste. Levantei o braço e fiz um aceno.
Para meu absoluto espanto, a mancha no jardim se deformou e eu percebi que a figura me acenou de volta. Meu estômago deu um nó. Tinha mesmo alguma coisa lá. Mas só eu via… Quer dizer, via mais ou menos.
Então tive o insight de fechar o olho bom e usar somente o olho azul. Imediatamente a figura ficou mais nítida. Era o Indu. O tal do guru indiano que eu tinha visto na caixa. Ele estava meio que dissolvendo no ar, feito uma fumaça densa no centro e fraca nas bordas. Troquei o olho e não tinha nada ali. Eu só via o indu com o meu olho novo.
Novamente acenei e ele repetiu o gesto. Então voltou-se para o jardim, andou por cima da superfície da agua da piscina, atravessou a parede do outro lado, sumindo em direção a outra mansão do vizinho.

-Caralho! – Eu gemi baixinho.
Rever aquela figura estranha, dessa vez fora da caixa me intrigou ainda mais. Quem era ele? O que ele queria? POr que ele estava na caixa debaixo do poste e como ele conseguia aparecer pra mim, sendo visível somente ao olho azul?

-Bora? – Perguntou a Mara.
-Vamos. – Respondi, sem dizer a ela o que havia acabado de se passar no jardim. Eu sabia que se eu contasse, ela iria acreditar, mas temi que o fato de o olho novo conseguir ver a aparição pudesse assustá-la. Sem saber direito o que fazer com aquela informação nova, preferi guardar pra mim.
Enquanto eu verificava se as portas estavam trancadas, a Mara pediu um taxi no ponto da rua de cima ao telefone.
Fomos para a rua. A rua estava deserta. Eu comecei a fazer testes com meu olho novo. Fechava o olho antigo e olhava apenas com o olho azul, em busca de uma aparição, um fantasma, qualquer coisa assim, mas dessa vez, estava tudo normal. O olho azul enxergava pior que o outro, acho que era meio míope, mas eu tinha conseguido ver bem o guru no jardim com ele. A cada hora que passava, desde o meu encontro com a velha, o olho azul ia enxergando um pouco melhor.

Na rua o vento da madrugada paulistana era cortante. Felizmente o taxi chegou logo. Um motorista careca, com polpudas bolsas de gordura sob os olhos e enfiado num casacão de couro marrom nos deu bom dia.
Indiquei a igreja no final da Av. Paulista.
Chegamos lá e quando desembarcamos do taxi, eu vi os primeiros raios de luz abrindo o dia.
A igreja estava fechada e tivemos que bater para alguém vir abrir. Enquanto eu socava a porta, Mara riu.
-Que foi?
-Nada… É que lembrei da gente socando as paredes da caixa.
-Não tenho saudade nenhuma! -Eu disse.
Mara sorriu e concordou.

Minutos depois, o padre abriu a porta.
-Por onde você andou, Anderson? – Ele me repreendeu. – Estávamos preocupados.
-Ah, padre… a Áugura apareceu na casa da Mara.
-Shhhh! – O padre fez sinal ordenando silêncio. – Vamos entrando. Por aqui. – Ele apontou. Entramos na igreja escura. Era assustadora na escuridão.

O padre nos levou até a cozinha da casa paroquial. Enquanto contávamos ao padre toda a série de bizarrices ocorridas na igreja, (omitindo a parte do sexo por razões óbvias) o padre fazia um café.
-Forte ou fraco?
-Forte! – Disse Mara.
-E você gajo? – Ele me perguntou.
-Como o senhor quiser!
-Ah, meu filho… Eu gosto de café tão forte que chega a dar pra partir com a faca. – Brincou o padre. O cheiro do café fresco se espalhou pela cozinha.
Eu contei do meu encontro com a Augura e como cortei o dedo dela com a espada do pai da Mara. Mas então… Acho que falei algo que não devia. O padre se espantou quando eu disse a ele que agora tinha um olho novo. Ele largou tudo em cima da pia, o café entornou todo e se virou num susto súbito.

-Puta que merda! – O padre gritou.
-Hã?
-Padre! – Disse Mara, tampando a própria boca com o susto.
De fato, eu nunca tinha visto um sacerdote ter aquela reação.
O padre estava em estado de choque. Branco, encostado agora na pia, como que com medo. Seu olhar era de pavor. Ele gaguejou alguma coisa incompreensível.
Eu me levantei do banquinho, pensando que talvez eu tivesse dito alguma coisa que não devia, mas o padre estava fora de si. Ele teve, sei lá, um troço! Uma crise nervosa. Ele saiu gritando desesperado, pela porta lateral. Ficamos eu e a Mara ali. Um olhando para a cara do outro. O café todo espalhado na pia numa poça de pó e caldo escuro agora pingava no chão de quadrados pretos e vermelhos da cozinha.
-Mas o que foi isso? – Mara perguntou.
-Ele endoidou, meu! – Respondi.
-Foi quando ele viu o seu olho azul. – Disse a Mara.
-Mas que bosta! E agora?

Minutos depois apareceu o padre na porta, segurando um punhal terminado numa cruz de prata. Ele estava totalmente transtornado e veio pra cima de mim com aquela coisa pontuda.

-Que isso? Que isso? – A Mara gritava assustada.
O padre saltou em cima de mim. Eu tentava segurar ele, mas o padre estava muito forte. Muito mais forte do que parecia. Mara tentava tirar ele de cima de mim, mas o padre estava em frenesi gritando coisas que eu não entendia em latim.
Mara agarrou o padre numa gravata, enquanto eu tentava me levantar, mas ele me segurava no chão, levantando aquele punhal. O padre queria me matar!
O Padre conseguiu se soltar da gravata da Mara e empurrou ela contra a mesa. Mara bateu a cabeça e caiu desacordada.
-Maldito! – Gritei em fúria.
Eu aproveitei a distração do padre para dar-lhe um murro na cara. O Padre caiu de lado. Eu tentei me levantar, mas ele saltou e me agarrou pelas pernas. Caímos os dois no chão da cozinha. Agora quem me agarrava numa gravata era o padre. Começou a faltar o ar. Eu segurava precariamente a mão dele, que empunhava o punhal com a cruz na ponta. A lâmina tremelicava no ar, enquanto eu fazia de tudo para que ele não espetasse aquilo no meu olho. Também tentava me levantar do chão, estávamos os dois de joelhos no meio da cozinha, mas eu não me equilibrava para me erguer.
O meu braço morto na tipoia não ajudava nada.
Então ouvi um barulho tipo um “clonk” e o padre desfaleceu. Olhei para trás e vi Mara chorando segurando o bule. Ele tinha acertado na cabeça dele. A Mara estava com um corte na esta que sangrava.
Me levantei. Eu estava todo sujo de café. Todo molhado.
Então, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, entrou o Leonard pela porta da cozinha. Olhou aquela cena toda em silêncio.

-Mas que porra é essa?

CONTINUA

Receba o melhor do nosso conteúdo

Cadastre-se, é GRÁTIS!

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade

Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

Artigos similares

Comentários

  1. Pois é, que porra é essa? Rsrsrsrs o padre pirou.
    Será que com esse olho a bruxa também vê o que o Anderson vê?
    Estaria ela transformando o coitado em algo maligno?
    Será ele a tal abominação?

  2. Caraio!!! Padre endoidou legal, e Philipe, eu sei que você é uma pessoa mega-ocupada, mas tem como fazer um esforcinho pra escrever a parte 39 logo? kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk Continua muito bom esse conto (ou livro né?)

    • Não é de propósito. Às vezes eu demoro a fazer a parte nova porque estou enrolado de serviço e fica pouco tempo para o conto. Como eu nunca sei que tamanho cada parte vai ter, eu sempre que tenho que ter pelo menos umas duas horas livres para sentar e fazer. Tem dia que isso não acontece.

      • Nem esquenta, cara… A espera dá um “gostinho” ainda melhor às história: de certa forma, assim partilhamos a tensão com o Anderson.

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

Advertisment

Últimos artigos