A busca de Kuran – O encontro com o demônio

Quando finalmente abri os olhos, vi que estava deitado na sala dos ossos. Estava escuro. Um pouco adiante, cerca de uns seis metros de onde eu estava deitado, vi Petrus e Richard conversando. O Lampião estava com eles. Petrus convencia Richard de que aquilo que ele vira não era exatamente uma assombração, mas o médico parecia em estado de choque.

Fiquei ali parado vendo as sombras dançando assustadoramente na sala dos ossos. Leonard estava na parte mais escura da sala, tateando alguma coisa que não consigui ver.

-Ai meu pescoço. – Eu disse, sentindo a forte torcicolo causada pela posição que fiquei quando perdi os sentidos.

Tão logo os meus amigos me viram acordando, voltaram na minha direção.

-Tá tudo bem, Wilson? Perguntou Petrus, me estendendo a mão para levantar.

-Sim. Tô legal… – Eu disse.

-E aí, garoto? – Disse Leonard, com seu jeito sempre sério e vagamente impessoal de ser.

Eu não me contive e o abracei.

-Leonard!

Leonard me abraçou também.  – Bom te ver. – Ele disse.

-Você chegou bem na hora. -Respondi. Aproveitei para emendar uma pergunta: – Por que partiu sem nos avisar, Leonard?

-Wilson, durante aquela noite recebi um chamado do grão mestre da nossa ordem. Eu precisava me afastar de vocês. Concentrar meus fluidos vitais e jejuar, para obter a purificação necessária para a tarefa que desempenharei aqui.

Eu me limpei do pó dos ossos enquanto Leonard contava como viajaou sozinho pelo deserto, baixando seu metabolismo e concentrando ao máximo sua energia vital.

-Eu subi pela outra face da montanha. Consegui chegar às grutas e encontrei uma estreita passagem que me levou a uma câmara anexa, que é para onde vamos agora. Se não fosse a confusão que esses dois fizeram aí eu não teria chegado a tempo. Este lugar é um labirinto de câmaras, salões e passagens. – Ele disse.

-E vocês? Tudo bem? O que foi aquilo? – Perguntei curioso.

Richard não disse nada. Estava ferido no rosto. Usando um lenço para estancar o sangue de um corte na testa.

-Aquele maldito estava controlando o Richard. Ele era o único sem proteção à influência da força mental de Vetrhal no plano astral. O bruxo colocou o Rick pra me atacar porque sabia que eu era o único que poderia tentar alguma coisa contra ele. – Disse Petrus, ainda limpando a roupa.

Concordei com Petrus.

-Venham, a passagem é por aqui. – Disse Leonard, apontando a fenda na pedra no fundo do salão dos ossos. A sala era quase um semi-círculo. Era em forma de leque, ao redor de uma grande coluna cilindrica. A passagem ficava na emenda da parede de ossos, perto da borda coluna.

Antes de sairmos daquele lugar, pedi a eles que levantassem o lampião e fiz a última foto, do teto em abóbada da sala dos ossos. Ali, centenas de crânios os outros ossos haviam sido colados com algum tipo de massa, revestindo todo o salão dos ossos com uma aparência aterrorizante.


Após cruzarmos a fenda na parede de ossos, adentramos um amplo salão de pedra, onde estalactites que pendiam do teto eram as únicas testemunhas do correr do tempo.  O lugar era frio e tinha uma umidade muito maior que a sala dos ossos.

-Estamos no coração da montanha. – Disse Richard examinando as pedras.

-Veja. Lá está nosso destino! – Disse Leonard apontando uma construção quadrada de pedra no interior do salão de rocha. Sua voz ecoava no interior da câmara, repetindo muitas vezes com o eco.

-Fantástico! – Eu disse, ao vislumbrar o lugar.

O salão da caverna devia medir mais de cinquenta metros do chão ao teto. Numa pequena fenda do teto, a luz penetrava, iluminando a escuridão do salão com um facho de luz branca. Ao fundo, uma parede sólida de estalactites de todos os tamanhos descia até o chão. Poças de água formados pelo degelo da neve se espalhavam pelo chão lugar, refletindo a luz do sol em matizes alaranjados.  No centro da câmara, ladeada por duas construções com colunas estava um templo. Pela sua forma de abacaxi, eu presumi que ele devia ser muito antigo, mais ainda que a entrada esculpida na rocha. Pensei que talvez os construtores daquele tempo fossem anteriores ao rei persa. A construção era repleta de entalhes e emanava uma energia esquisita. Aquele era o último rolo de filme, e só me restavam três chapas. Posicionei a câmera na saída da fenda e torci os dedos para a foto sair boa.

Corremos em direção ao templo, desviando das estalagmites, saltando as poças e evitando as fendas.

Quando chegamos à entrada do templo no interior da montanha, ali estava diante de nós uma entrada imensa, com forma retangular que parecia mais uma boca, prestes a nos engolir. No interior da construção, havia apenas um corredor, não muito longo, ladeado de colunas trabalhadas com esmero, e que conduzia a uma rocha central. Nela, duas pequenas colunas escavadas ladeavam o que parecia ser a forma de um crânio humano cortado na pedra. Era retangular, repleta de entalhes e inscrições numa língua desconhecida. O crânio tinha duas belas pedras cuidadosamente lapidadas na fronte. Uma de cada lado de um buraco.

-Vejam só isso… Se estivesse vivo, Carlos estaria prestes a ter um ataque dos nervos vendo este lugar. – Disse Richard.

Ninguém respondeu. Estávamos todos em silêncio. Eu sentia uma espécie de opressão solene e um misto de medo e sensação de estar invadido a casa de alguém.  Ao fundo, ouvíamos as gotas lentamente pingando do teto nas poças do interior da caverna.

Richard explorava o ambiente com o lampião, tentando ver através das colunas.

-Wilson, olha pelo chão que a pedra da testa da caveira deve ter descolado e caído. -Ele me disse enquanto vasculhava.

Richard iluminou o interior entre as colunas.

-Tem uma coisa aqui… Parece um óleo. – Ele disse.

Estávamos olhando o altar de pedra com a caveira quando Richard acendeu um fósforo e colocou no recorte atrás das colunas, onde havia uma espécie de canaleta de óleo. O óleo se inflamou e um segundo depois, duas voltas de fogo crepitante iluminavam o lugar, transmitindo uma sensação ainda mais assombrosa.

Os homens se moveram para trás da câmera e eu fiz a foto.

Leonard e Petrus se entreolharam. Enquanto eu preparava as últimas fotos daquela aventura, Leonard sacou a estranha bússola do bolso do casaco.

-Ele está aqui. -Disse Leonard.

-Ele quem??? – Perguntou Richard com expressão de desespero. – Ei, o que você está fazendo aí? – Perguntou ele, vendo que Petrus havia tirado da mochila uma pedra e um cordão. Leonard prendeu a ponta do cordão com o pé e Petrus usou a pedra branca para traçar um círculo perfeito ao redor do amigo.

-Você tá entendendo o que eles estão fazendo? – Perguntou Richard pra mim, já que eu era o único a lhe dar atenção naquele momento.

-Não sei não. – Respondi. Eu também estava curioso com o que eles estavam fazendo.

Petrus abriu o pequeno bloco de anotações que ele sempre trazia consigo e dele copiou uma série de símbolos e coisas que eu mal conseguia entender. Eles fizeram umas cruzes, umas linhas, e Então ajoelharam-se e pediram permissão para adentrar o círculo. E então entraram.

-Venha, Wilson. Venha Rick. – Disse Petrus, ordenando que entrássemos.

Eu entrei no círculo desenhado no chão, e me pus junto deles, mas Richard parecia confuso com relação a aquilo.

-Entrar aí pra que? – Ele perguntava.

-Não interessa. Venha, entre logo! – Disse Petrus. Leonard estava de olhos fechados entoando alguma coisa que eu não conseguia ouvir. Parecia alguma forma de oração. Petrus estava aflito.

-Anda logo, porra! Entra aqui. Leonard vai fechar o círculo!

-Eu não vou entrar nisso até vocês me dizerem que diabos estão fazendo aí. Isso tá com cara de ritual satânico!

Enquanto eu assistia Petrus discutindo com Richard, senti a mão fria de Leonard me cutucar. Olhei pra ele e agora Leonard estava quieto. Com o olhar fixo na direção da pedra da caveira. Olhei pra lá e vi um menino, que tinha mais ou menos uns sete anos, vestido como um monge, sentado, com a cabeça baixa. As pernas dobradas na posição de Lótus.

-É ele, Wilson. – Disse Leonard.

-Quem é esse aí? – Perguntou Richard, ao se dar conta da presença da criança no templo.

O menino parecia quieto. Em transe.

Richard parecia assustado. -Ei, pessoal, quem é esse garoto? De onde que ele veio?

Nós três estávamos em silêncio dentro do círculo. Sabíamos que estávamos lidando com algo extremamente perigoso.

O menino então levantou a cabeça e olhou para nós. Seus olhos eram inocentes e puros.

-O que fazem aqui? – Ele perguntou.

-Você sabe. – Leonard parecia conhecer bem aquele menino.

-Ei… Ei… Podem me responder? Leonard, você conhece esse garoto?  – Perguntava Richard.

-Cala a boca, Richard. – Disse Petrus.

O menino agora estava sorrindo. Levantou-se e ficou parado, olhando para nós.

-O que é isso, Leonard? Uma oferenda? – Perguntou ele, apontando para Richard, que estava prostrado, na porta do templo.

-Leonard olhou para trás e todos nós olhamos para Richard.

-O que? O que foi? – Ele perguntou assustado.

Então, nem sei como descrever o horror daquela cena. Palavras não seriam capazes de externalizar a grotesca cena que se seguiu. Richard derreteu.

Toda sua pele, músculos, sangue, roupas, tudo simplesmente derreteu como se ele fosse feito de cera. Não houve tempo de implorar ou gritar.  Seu corpo caiu opelo chão de pedra, espalhando-se numa poça cremosa de tecidos liquefeitos.

O menino deu a volta no círculo. Ele caminhou devagar, descalço, até a poça que havia restado de Richard. Ali ele pegou o crânio de nosso amigo e ficou admirando, distraído.

Eu já estava me borrando de medo. Sentia o mais horroroso medo que jamais havia sentido no meu coração. Petrus olhou pra mim e disse baixinho: -Haja o que houver, não saia deste círculo!

Eu concordei com a cabeça.

Leonard se sentou em posição de lótus dentro do círculo.

-O que ele está fazendo? – Perguntei para Petrus.

-Shhhh! – Ele fez com o dedo indicador na frente da boca. – Está chamando Kuran.

O menino então jogou o crânio de Richard no chão e voltou até a frente do círculo.

– Como vocês ousam invadir o meu domínio? – Ele perguntou.

– Leonard tirou a adaga do casaco. Sua lâmina brilhou com um tom azulado pálido.

Leonard se levantou. Ele estava com a adaga na mão. Gaap não tirava os olhos da lâmina. – Vocês sabem que não vão sair daqui, não é?

Nós evitávamos falar.

-Por que desejam o meu mal? O que eu fiz pra vocês? Há milênios estou encerrado neste lugar. Não exijo sacrifícios nem exerço o domínio sobre o mundo. A terra é dos humanos e suas coisas. Deixem-me em paz.

-Mentira! – Leonard gritou. – Gaap! Ordeno que volte para o submundo!

O menino agora parecia surpreso.

-O que esperam de mim, meus filhos? Vocês invadem minha casa, após atravessar o mundo todo, só para me dar ordens? Vocês são mais estúpidos do que eu pensava.Vou contar até dez para saírem do meu domínio e não voltar mais. Um…

Olhei para Leonard, assustado. Leonard e Petrus me devolveram o olhar, como quem diz, “Fica firme!”

…Dois… – Gaap contava.

Ficamos os três no interior do círculo mágico.

-Gaap. Vá em paz. Retorne para o submundo. – Ordenou Leonard novamente, empunhando Kuran.

O menino riu com uma voz gutural. Ele então abriu a mão duas vezes e ouvimos uns estalos. Pela porta do templo surgiram quatro sombras magras cambaleantes. Eram esqueletos.

-O que é isso, Petrus? – Perguntei assustado. Petrus segurou no meu ombro. – Calma, garoto. Eles sempre fazem essas coisas.

Os esqueletos moveram-se dançando ao redor do círculo mágico.

Gaap então bateu palmas e os esqueletos viraram pó.

-Bela demonstração, Gaap. Agora volte para as profundezas do mundo astral! – Disse Leonard, com ar enfadonho.

-Jamais! – Verociferou o demônio.

-Eu ordeno que se retire!- Gritou Leonard.

-Nunca! – Berrou o menino. Em seguida, andando calmamente ao redor do círculo, ele começou a falar.

-Veja só… Três magos… Leonard… Petrus e …Wilson. – Disse. Eu me impressionei ao perceber que Gaap nos conhecida. O menino continuou: -…Seria muito triste vocês empreenderem tamanha aventura para vir até aqui e retornarem de mãos vazias. Venham, deixe-me recompensá-los.- Ele disse amavelmente.

-Retire-se para o submundo! – Gritou Leonard.

-Petrus… Lembra de Karolin? – Disse Gaap, ignorando Leonard.

O rosto de Petrus empalideceu.

-…Eu posso trazê-la de volta, Petrus! Sua mulher… E as crianças, claro!

-Karolin… – Disse Petrus com o olhar perdido.

O menino olhou para cima. No teto de pedra, as sombras bururilantes do fogo gradualmente se moveram e vimos então Karolin vagando por um lugar escuro, cheio de lama. Ela estava chorando.

-Veja, Petrus! Veja… Karolin! Ela está em Cartagra… Está sozinha, Petrus… Ela está a mercê das criaturas da escuridão… Ah, que pena… Eles podem ser tão rudes… Tão maus.

-Não… Karolin! Karolin! – Petrus gritava com lágrimas nos olhos. Leonard gritava para Petrus:

-Não dê ouvidos, Petrus! É uma ilusão! É uma ilusão!

-Não. Não é uma ilusão, Petrus. – Disse Gaap. – Isso é o que está acontecendo em Cartagra. Sua mulher morreu! Cortou os pulsos, você sabe! Grávida de gêmeos… Ela está purgando, Petrus. Purgando seus erros. E você sofrerá! Sofrerá porque é culpa sua, Petrus! Você não pode fazer nada, Petrus. Nunca terá a oportunidade que estou lhe oferecendo agora. Sua mulher e seus filhos de volta, Petrus. Eu posso trazê-la de volta, meu filho. Venha, deixe-me acabar com seu sofrimento!

-Petrus baixou a cabeça. Estava chorando. Nos ecos do antigo templo de pedra, ouvíamos os gritos desesperados de Karolin no purgatório. Subitamente, ela pareceu ouvir Petrus.

-Petrus? Petrus? Onde você está, meu amor?

-Karolin! Karolin! Eu te amo, Karolin! – Gritou Petrus de dentro do círculo.

Petrus então começou a sair do círculo.

-Nãããão! – Gritou Leonard, desesperado, tentando puxar o amigo para o interior do círculo mágico.

Mas já era tarde. Uma força assombrosa arrancou Petrus de dentro do círculo como se fosse um boneco de pano.

-Maldito seja Gaap! – Gritou Leonard.

Petrus agora parecia em transe, caído do lado de fora do círculo.

-Pobre Petrus… – Disse Gaap. – Veja que fiapo de homem, que trapo espiritual temos aqui, Leonard. Um homem atormentado pela perda da mulher… E dos filhos…

-Gaap, seu desgraçado! Eu ordeno que largue Petrus e se retire! – Gritou Leonard.

-Você gosta dele, não é Leonard? Ele é seu amigo, não é mesmo? Grandes amigos… Posso ver. Que pena… Você e sua teimosia em não sair desta porcaria de circulo mágico vai ser a ruína do seu amigo. Ele vai morrer, você sabe.

-Não! Não! – Eu gritei, desesperado.

Gaap riu.

-Ora, ora! O jovem Wilson acordou… Bom menino. Diga pro seu mestre que ele é um covarde, um fraco, um sonhador. Se quiser seu amigo Petrus vivo, é muito fácil. Pise fora do círculo, e eu lhe pouparei. Salve seu mundo, Wilson. Leonard é um  louco. Nâo hpa esperanças para pessoas como ele. Mas você é forte. Eu sinto. Venha, Wilson. Saia do círculo. Salve Petrus.

-Não! – Gritou Leonard, me segurando pelo braço. – Ele é um enganador. Ele quer nos tirar da proteção. -Disse o mestre.

Olhei para Gaap e baixei a cabeça. – Petrus escolheu o destino dele. Eu escolho o meu.

-Estúpido! Verme! – Gritou Gaap, nervoso. – Se vocês não saírem daí eu vou matar esse infeliz! – berrou o menino, ao mesmo tempo em que uma força invisível suspendeu Petrus no ar.

-Não vamos sair, Gaap! – Gritou Leonard.

O demônio se irritou.

-Ahhhhhh! – Berrou. Uma explosão escura aconteceu e agora onde antes havia um menino, estava uma criatura horrível, de quase três metros de altura. Os braços eram desproporcionalmente compridos. Eu queria ter tirado uma foto daquele bicho, mas a câmera estava fora de alcance e eu fiz o possível para memorizar a aparência horrenda de Gaap. Então me restou apenas desenhá-lo.

Gaap agora falava com uma voz gutural que ecoava no interior do templo. Eu que já estava morto de medo, achei que iria fazer xixi na calça.

– Querem dinheiro? – Perguntou Gaap. – Pensei em tesouros inimagináveis. Eu vos darei. Gaap tem a chave dos tesouros…

-Não! – Gritamos.

-Querem amor? Eu trago a mulher que amam. E ela devotará sua vida a vocês…

-Não! – Gritamos.

-Poder! Posso fazer vocês reis… Imperadores do mundo. Todos estarão a seu domínio!

-Não!- Repetimos.

-Os segredos do universo… Eu sei coisas que vocês nem podem imaginar… Que tal? O domínio de todos os segredos do universo…

-Não! – Gritamos

-Ou saem daí ou ele morre!

-Volte Gaap. Volte para o submundo!  Em nome dos guardiões superiores! Eu ordeno! Retorne, demônio goético!

Gaap olhou pra nós com seus olhos de ódio.

-Diga adeus ao seu amigo, estupor!

-Nãããão! – Gritou Leonard.

Em seguida Petrus começou a queimar. Eu fechei os olhos para evitar assistir a morte lenta e agonizante do meu amigo. As imagens de Petrus me ajudando me apoiando e me salvando estouraram na minha cabeça. Eu tentava tampar os ouvidos, mas os gritos de desespero de Petrus me torturavam. Eu caí de joelhos no interior do círculo. Eu e Leonard nos abraçamos, chorando. Petrus era agora apenas um corpo carbonizado, levitando na beira do círculo.

-Petrus! Petrus! – Eu chorava.

Leonard se levantou.

-Desgraçado!

-Saia daí que eu trago seu amigo de volta! Eu posso desfazer! – Disse Gaap.

-Você sabe que não vou sair, Gaap! Pelo signo de Salomão! Retorne agora para o submundo astral!- Gritou Leonard, apontando Kuran para o demônio.

-Nunca!

Leonard lançou a adaga no ar na direção do peito do monstro.

A adaga congelou no ar. Gaap soltou uma sonora gargalhada.

Os pedaços carbonizados do corpo de Petrus caíram ao chão.

-E agora, Leonard? E agora?- Perguntava Gaap. -Eu venci! – Riu o demônio goético.- Sem a lâmina você  é menos do que insignificante! Pode ficar no círculo, seu inseto! Sem a adaga você pode morrer de velhice aí dentro. Será um prazer assistir.

Eu e Leonard nos entreolhamos desesperados. Sabíamos que Gaap estava certo. Leonard havia se precipitado.

-Estamos perdidos, Leonard.

-Wilson, me dá a pedra que está no seu bolso. – Disse o mestre.

Enfiei a mão no bolso e retirei de lá do fundo o rubi azul.

Imediatamente Gaap correu até a beira do círculo.

Eu entreguei a jóia para Leonard.

-A pedra! – Ele disse espantado, com sua voz de trovão.

-Sim. Ela está comigo, Gaap. A pedra que você busca a mais de quatro mil anos! – Disse Leonard, mostrando o enorme rubi azul para o demônio.

Foi só então que eu percebi que o buraco que havia na testa da caveira de pedra no altar de Gaap, bem à nossa frente, era na verdade o local para a última pedra azul.

-O que você quer? – Perguntou Gaap, sem tirar os olhos da pedra.

-Queremos sair com vida daqui.- Respondeu Leonard.

Uma explosão de fumaça escura aconteceu e na nossa frente estava o frágil menino novamente.

-Se vocês saírem, a pedra fica com Gaap! – Disse o demônio.

-Sim. – Respondeu Leonard. – O trato está feito.

Leonard estendeu a mão com a pedra para fora do círculo.

O menino se aproximou. Seus olhos brilhando focalizados na pedra. O menino sorriu tal qual uma criança que prostra-se na frente de um doce. Ele esticou a mão para pegar o rubi azul da mão de Leonard. Mas Leonard foi esperto. Ele puxou o braço de Gaap para dentro do círculo. Agora quem gritava era o menino.

-Nããããããã*

Leonard puxou o menino para dentro do círculo ao mesmo tempo que me deu um forte empurrão. Caí de costas, para fora do círculo. Leonard saltou para fora do círculo, mas Gaap agarrou a perna dele e começou a puxá-lo de volta.

-Maldito! Malditooooo! – gritava o menino segurando o rubi azul.O braço esquelético, escuro e enorme do demônio parecia fritar na borda do círculo, agarrado à perna de Leonard.

-Fuja Wilson! Fuja. Ele me pegou! – Gritou Leonard desesperado. A mão enorme do demônio preso no círculo queimava a perna de Leonard.

Corri até a adaga, que estava suspensa no ar e a agarrei Kuran.

Tudo se apagou.

…Estava tudo escuro… Eu estava caído num chão frio, e não sabia que lugar era aquele.

Gradualmente, uma luz fraca, pálida iluminou o lugar e percebi que eu estava em uma espécie de lugar plano. Infinito. Não dava pra ver qualquer coisa em qualquer direção que eu olhasse. Apenas o chão.

Eu olhei ao redor. Não havia nem templo, nem caverna, nem círculo, nem Leonard ou Gaap.

-Onde eu estou? – Perguntei.

-Quem quer saber? – uma voz aterradora, saída não sei de onde surgiu ao meu redor.

-Quem está aí? – Perguntei.

-Quem quer saber? – A voz tornou a perguntar.

-Sou Wilson.

-Não! …Tu és Wilson… O sexto. – A voz falou.

-Hã? Quem fala comigo? – Perguntei em voz alta.

-Eu. – A voz disse. Eu me virei e vi um gigante negro agachado, olhando pra mim. Ele devia ter mais de vinte metros de altura.

-Você é Kuran?- Perguntei espantado. Mas a figura não respondeu. Apenas me fitou com seus olhos enormes e vi se formar um nome na minha cabeça.

-Como veio até aqui? – Perguntou ele.

-Eu não sei. Estava tentando salvar Leonard. Gaap o agarrou e eu…

-Gaap?

-Sim… Gaap o agarrou e…

-Você disse Gaap o demônio Goético? – Perguntou o gigante.

Eu acenei positivamente com a cabeça.

-Gaap pegou Leonard terceiro? – Questionou Kuran.

-Mais ou menos. Ele estava preso num círculo e Leonard pulou do círculo. Mas Gaap agarrou a perna dele e…

-Silencio, Wilson Sexto… Silêncio. Feche os olhos. Eu sinto que você pode não estar preparado…

-Perdão, mestre. – Eu disse, ajoelhando-me diante do gigante de ébano.

-Você comeu carne?

-Sim…

-Ah, é isso. Eu sinto a pureza nas suas palavras, Wilson Sexto. Vou mandá-lo de volta. Mas lembre-se você não se preparou para empunhar Kuran. Você terá pouco tempo antes de ser subjulgado pelo poder da lâmina. Assim que voltar, agarre a arma e enfie-a na borda do círculo. Então eu vou assumir.

-Sim, mestre…

-Wilson?

-Sim?

-Antes de voltar, quero que saiba que foi bom lhe rever. – Disse o gigante. Eu não entendi nada, afinal pra mim era a primeira vez que ia até aquele lugar.

Quando abri meus olhos estava diante da lâmina. Ela queimava nas minhas mãos como brasa. Agarrei firme o cabo e saltei na direção do círculo. Leonard gritava com a criatura agarrada na perna dele. Eu cravei a lâmina no chão de pedra e ela afundou como se a pedra fosse manteiga.

Uma labareda de fogo azul levantou ao redor de todo o círculo magico. O braço de Gaap virou pó. Leonard caiu exausto a um metro do círculo.

Eu me levantei e arrastei Leonard, que estava quase inconsciente devido a dor. A perna dele estava severamente queimada. Dava para ver a carne afundada onde Gaap se agarrou.

Gaap agora sem um braço, gritava feito um animal dentro do círculo, mudando em várias formas. Uma mais horrenda que a outra. Subitamente, um buraco no chão dentro do círculo se abriu e a mão gigantesca de Kuran atravessou o chão, agarrando Gaap que se debatia como um animalzinho indefeso. A mão o arrastou para a escuridão do abismo. O fogo azul ao redor do círculo se apagou e só restou as marcas no chão do templo. A pedra azul estava caída, no meio do circulo magico.

-Wilson… Obrigado. – Disse Leonard, entre gemidos de dor.

-Nossa, essa foi por pouco. – Eu disse, pegando o meu rubi azul.

Nisso, o teto do templo começou a estalar. Olhamos para o alto e vimos que as rochas antigas estavam começando a querer ruir.

-Sem o poder de Gaap este lugar vai entrar em colapso. – Disse Leonard.

-Vamos dar o fora daqui! – Eu disse. Agarrando-me a Leonard, para que ele pudesse se apoiar no meu ombro. Leonard agarrou Kuran e num único puxão retirou a lâmina ancestral do chão de pedra. Guardou-a no bolso do casaco.Eu peguei a mochila com a câmera no chão.

-Vamos por aqui. – Disse ele, apontando o caminho.

Nós corremos o mais rápido que os ferimentos de Leonard permitiram.

Saímos para a caverna, que começava a ruir. Estalactites despencavam do teto.

Corremos para o salão dos ossos, que também estava em colapso. Milhares de ossos caíam por todos os lados, fragmentando paredes num pó fino e fedorento.

Nos arrastamos tateando pelos ossos, até chegarmos a passagem. Um vento forte veio lá de dentro, epurrando anuvem de pó contra nossos rostos.

-Tá desabando tudo lá dentro! – Gritou Leonard.

-Venha, estou vendo a passagem! – Eu disse enquanto nos embrenhávamos pelo salão das colunas. Saltamos do rochedo, caindo na parte inferior da cruz esculpida na montanha. Atrás de nós o ruido ensurdecedor da montanha sendo engolfada num gigantesco soluço. Uma explosão de pedaços de ossos, pedras, pó e terra se abateu sobre nós. Nòs despencamos do alto da entrada do templo, caindo no chão duro e pedregoso do platô da montanha.

-Ung. – Eu me machuquei.

Aquela foi a última coisa que lembro antes de acordar nos braços de Ruppert Ellis.

-Hã? – Ruppert?

-Wilson! Você está bem? Está inconsciente há vários dias, meu amigo!

Leonard entrou na cabana.

-Wilson! Wilson meu amigo! Ele capengava da perna, apoiado numa bengala.

-Leonard… O que aconteceu?

-Fomos resgatados, meu amigo. Ruppert voltou para nos encontrar. Como você se sente?

-Ung… Uma dor nas costas danada. – Eu respondi.

-Você salvou minha vida. – Leonard disse.- Muito obrigado. -Disse enquanto me abraçava.

Minutos depois, eu saía da cabana.

Estávamos em Tatrang. Reconheci Suleiman e o Profeta, que me saudaram do jeito tradicional.

Allan R. Laforet se aproximou.

-E aí, meu amigo? Quer dizer que você achou Leonard mesmo! – Disse ele.

Eu concordei, mas não dei detalhes. E mesmo que desse, ele não iria acreditar.

Estávamos na cidade, em um grande acampamento. Havia aviões parados na pista de pouso improvisada nas proximidades. Os uigures acenderam uma fogueira e os músicos chegaram. Minutos depois a clebração começou, sem hora para acabar.

Havíamos cumprido nossa missão sagrada. Havíamos enfim vencido o deserto.

-Gan Bei!- Gritei para eles, levantando meu copo de bai jiu.

-Gan Bei!!! – gritaram de volta.

 

 

Fazia dois meses que eu havia voltado ao Brasil e ainda não tinha conseguido coragem para adentrar aquele lugar. Quando finalmente pisei no interuir da floricultura, abrindo a porta que soava a sineta, vi seu Epaminondas fazendo contas na mesa atrás do balcão. Ele olhou de soslaio. Não se deu ao trabalho de olhar bem quem era. Mas mesmo que olhasse, certamente não iria me reconhecer de terno, gravata e chapéu Panamá.

-Pois não. O que quer comprar? – Perguntou com aquele detestável sotaque.

-Eu quero comprar a floricultura. – Eu disse.

O velho soltou uma sonora gargalhada e olhou. Ao bater os olhos em mim, ele empalideceu, como se estivesse diante de um fantasma. O cigarro que pendia da boca dele caiu.

Eu enfiei a mão no bolso e retirei dali o pequeno diamante que havia trazido comigo do deserto. Coloquei a reluzente pedra sobre o balcão.

-O que me diz?- Perguntei.

-O velho corcunda se aproximou, me olhou de cima abaixo, pegou a pedra e olhou contra a luz.

-Vendido! – Ele disse sorrindo feito um cão.

-Mas antes…

-Antes o que?

-Pega aqueles sacos de esterco ali. Coloca daquele lado. – Eu disse.

-Sim mole… Sim senhor. – Epaminondas gemeu de mau humor.

Pelo vidro da vitrine da floricultura, eu vi Leonard no interior do encostado junto ao meio-fio. Fiz um sinal positivo pra ele e ele me deu um adeus. O carro saiu.

Eu não gostava de despedidas, mas eu veria Leonard de novo muito antes do que esperava.

 

FIM

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Muito bom, seria bom que vc escreve-se outras aventuras de Wilson, algo como o amadurecimento dele até tornar-se um mestre ou outro fim qualquer

    • Boa pergunta… Eu não sei. Vamos ver o que rola aí. Acho que a próxima minissérie será sobre a caçadora de lobisomens.

      •  Depois da continuidade desse, tem que fazer uma pro caçador…. essa tô curiosa… to até imaginando ele chamando o aprendiz Wilson novamente pra mais uma missão… hehe…. amo o MG… bjus

  2. Pronto, agora vc conseguiu me fazer ficar esperando continuação de 2 Contos seus. Prendeu minha atenção do início ao fim. Na hora em que o Gaap falava guturalmente eu tava imitando o Gaap. Muito Foda. Parabéns por mais uma Saga Mega-Espetacular!!!

  3.  Gostei do blog é viciante, um bom vício é claro visto que essa palavra é na maioria das vezes relacionada a maus costumes. Nunca li tanto e em tão pouco espaço de tempo. Muito obrigado pelas grandes histórias, vou continuar acompanhado.

  4. Cara, tô curtindo seu blog a pouco tempo mas tá incrível.
    somente esta história já dava um filme e tanto. Enquanto eu lia, eu assitia o filme na minha cabeça.
    Parabéns, voce escreve como poucos.

  5. 2014, mas ainda vale um elogio, muito bom o conto, 1:38 da madruga e não desgrudei até terminar. Esperando o desfecho de crianças da noite. :)

  6. Só para deixar registrado Philipe, que mesmo em 2015 seus contos ainda são lidos e relidos!! Lembro de ter lido conforme você ia lançando, mas foi gostoso reler tudo! Agora, esperando lançar o capitulo 10 da cadeira obscura, decidi reler (e ler alguns q deixei passar nesses anos) todos os contos (curtos e longos)! Está sendo uma experiencia maravilhosa!! Parabéns por nos proporcionar, durante todos esse anos, leituras de qualidade e matérias interessantes!!

  7. Relendo esse conto foda aqui e me passou pela cabeça o seguinte. Da última vez que o Leonard apareceu, ele tava bem ferrado em A Cadeira Obscura. O conto seguinte no mesmo universo foi O Crânio. Será que o Wilson ainda estava vivo no ano em que O Crânio se passa?

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