Os outros – parte 2

Havia uma comoção na família. Mas Hug estava decidido.

-Não vá. Você vai morrer! – Implorou Anika.

-Isso não está em discussão ele grunhiu.

Toda partida era assim, traumática. As crianças choravam enquanto Hug vestia uma pele de lobo. Subitamente, Nigel se interpôs em sua frente.

-Você não vai! – Ele disse com a autoridade do chefe do clã.

Hug olhou para o pai. Não disse nada.

-Pai. Nunca te desobedeci…

Houve um minuto de silêncio na caverna.

Nigel também não disse nada. Apenas deu um passo e ficou de lado.

Hug passou, beijou sua mulher e saiu, carregando o arco e as flechas. Ele estava descendo as pedras da caverna quando ouviu o grito do pai. Hug olhou para trás e viu, junto a entrada da caverna o seu grupo. Talvez aquela fosse a última vez que via seus familiares. As criaças acenavam chorando. Brom descia as pedras na direção dele, correndo e saltando. Hug notou que ele também vestia peles e tinha um arco nas costas.

-Que marmota é esta? -Perguntou.

-Eu vou junto! – Disse Brom.

-Não vai não.

-Claro que vou! Ela é minha sobrinha. Tenho direito de ir!

-Brom… Olhe lá. Olhe lá em cima. O que você vê?

-Seu pai… Está vindo.

-Não, burro! Olhe lá na caverna.

-Vejo as crianças, as mulheres…

-Isso. Percebe? Quem vai caçar? Meu pai está velho. Se você for comigo e não voltarmos, estamos condenando todos eles lá à morte!

Brom ficou em silêncio. O argumento era definitivo.

Nigel se aproximou com dificuldade. Ele trazia uma pequena cesta de palha em suas mãos.

-Hug. Fale para o cabeça oca do Brom que é loucura ele ir. -Disse Nigel.

-Eu já disse, pai.

-Eu não vou, Nigel. – Disse Brom, tirando o arco.

-Hug, você me desobedeceu. Você sabe que todos os que um dia saíram, nunca mais retornaram. Você conhece a lei e no entanto vai desobedecê-la. Não posso te agarrar e amarrar, você já é um homem… Criado como guerreiro, caçador. É o meu sucessor. Eu semore tive esperança que um dia você lideraria esta família…

-Sim pai.

-No entanto, meu filho… Eu entendo seus motivos. Eu teria feito o mesmo se alguém roubasse você, a Nadja ou a Anika.  Tome, você vai precisar disso.

-O que é isso, pai? – Hug abriu o pequeno cesto. Ali estava uma coisa ao qual ele nunca tinha visto: Plástico.  Era uma sacola lacrável de plastico, tipo zip-lock, contendo um revólver e balas dentro.

-Isso era a arma do meu pai. Antes de morrer, ele me deu e ensinou a usar. Restam poucas dessas coisas. Isso são as balas.

-Balas?

-Sim. Balas. Você coloca uma dessas aqui neste buraco. Fecha, destrava e aponta. Olha por ali. Tá vendo o tracinho? Coloca ele no meio da forquilha… Agora você puxa isso aqui e…

Pá! – A arma disparou e um buraco enorme se abriu no tronco da árvore para onde apontava.  Houve uma gritaria na porta da caverna. Nenhum daqueles indivíduos já havia visto algo daquele tipo.

-Está quente, pai!

-Sim. Por isso eles chamavam de “arma de fogo”. Esta era a coisa que fazia os antigos se matarem nas cidades. Lembra? Os textos sagrados do pai… Eles falam dela.

-Eu lembro, pai! Mas você nunca me disse que tinha isso aqui com a gente. E estas coisas aqui?

-Filho, isso meu pai trouxe com ele da cidade, quando eu era criança. Ele usava para caçar no escuro. Lá havia outras coisas, mas elas se estragaram com o tempo. Desses, só restaram dois. Meu pai me mostrou uma vez. Você pode ver aquela coisinha ali dentro?

-Posso.

-Isso é uma luz. Luz como a luz do fogo ou do sol, mas não queima. Ela é como a luz do vaga-lume. Você dobra isso no meio e sacode. A luz não dura muito, mas ilumina bem.

-Dobro onde? Aqui?

-Sim. Calma! Dobre agora, pois só funciona uma vez.

-Obrigado pai.

-Filho, isso é tudo que eu tenho. Tudo que me restou da civilização. Agora, passo os itens dos ancestrais a você, na esperança que possa voltar um dia.

-Obrigado, meu pai. Eu voltarei.

Os dois se abraçaram e Nigle voltou com Brom para a caverna.

Hug subiu a montanha e se embrenhou na mata, ouvindo o choro das crianças e mulheres atrás de si.

 

 

Muitas horas depois, Hug ainda estava subindo a montanha. Olhou à sua frente e viu a pedra do olho. Era a última vez que via aquela pedra. Em toda sua vida ele só tinha chegado naquele ponto. Estivera ali diversas vezes, sempre em caçadas. Mas agora ele se via numa situação incomum. Ele sabia que ninguém jamais havia retornado após cruzar aquela pedra. Hug levantou bem o pé e pisou na terra proibida. Desejou que os alienígenas fossem apenas um mito, uma fantasia de uma sociedade que já havia se desfeito em guerras e caos. Mas conscientemente, ele sabia que os outros estavam mesmo lá fora, a espreita, em busca de mais e mais pessoas para seus objetivos imperscrutáveis. Gerações humanas haviam perecido nas mãos daquelas criaturas e seu poder sobrenatural.

Seu conhecimento do caminho ia apenas até ali. O desconhecido agora o aguardava. Cada árvore, cada pedra, cada elevação e rio eram surpresas e desafios novos, prestes a serem transpostos. Hug ouviu um uivo distante.

-São os lobos! – Pensou.

Enquanto cruzava um pequeno curso d´água, Hug não tirava um pesamento da cabeça: -Se os outros não me pegarem, a natureza pega.

Mas ele era movido pelo desejo de trazer Tarim de volta. Enquanto vencia as encostas, agarrava-se em galhos e pendurava-se em pedras, repassava mentalmente o caminho e direção onde os estrangeiros haviam dito que estavam seguindo. Hug pensava em como iria dar cabo de cada um daqueles malditos desgraçados que roubaram sua filha.

Hug estava absorto em seus pensamentos de vingança quando foi despertado por um estranho som. Era um som diferente de tudo que tinha escutado.  Teve medo.

Saltou numa moita e ficou imóvel.

Ao longe, uns 50 metros talvez, montanha abaixo, viu passar no ar o primeiro aparelho. Aquela era a primeira vez que via um deles. E o som que ele emitia era assustador. De tempos em tempos, a coisa disparava flashes de luz pela floresta.

O aparelho de forma estérica passou em zigue-zague, contornando as imensas copas das árvores, se fastou e afundou em meio a densa floresta, ao longe.

Hug ficou ainda no meio da moita por algum tempo, até certificar-se que não mais ouvia o estranho ruído dos aparelhos.  Ele olhou o sol entre as árvores. Observou a distância e a direção para onde seguiria. Saiu da moita e retomou seu percurso.

Enquanto andava, desviando e pedras e saltando grossos troncos, ouviu o som característico de um rio. Hug sabia que a mata era muito densa e certamente os estrangeiros teriam saído na madrugada. Sem luzes, eles só teriam tochas para iluminar o caminho, ainda mais carregando consigo uma criança. O mais logico é que eles tivessem seguido o rio, trafegando sobre as pedras. Hug seguiu o som do rio e deparou-se com um amplo caminho de pedras, de todos os tamanhos, entremeadas com cachoeiras, corredeiras e redemoinhos.

Na beira do riacho, ele notou alguma coisa: Era uma pegada.

Estava meio disforme, por estar em parte cheia da água do rio, mas Hug pôde ver, na marca, os distintos formatos de uma pegada humana.

-Eles passaram aqui! – Pensou, satisfeito.

O homem ganhou uma força extra, mobilizado pelo sentimento de que sua filha estivesse perto. Talvez apenas duas ou três horas à sua frente.

Hug começou a saltar entre as pedras. Sempre de olho nas pequenas poças de lama ao redor, na busca de indícios da passagem dos estrangeiros. Sem imaginar que seriam seguidos, eles mal se preocuparam em disfarçar os rastros.

Já era fim da tarde quando Hug viu que o rio desembocava numa cachoeira de porte médio. Ele estudou como desceria pela queda d´água, mas era muito alto. Saltar era loucura, pois as pedras pontiagudas na base, o estraçalhariam facilmente.

-Como eles passaram por aqui com Tarim? – Pensou.

Hug observou com cuidado o caminho. Duas grandes pedras ladeavam a descida da cachoeira. Tudo estava recoberto de limo.

Ele começou a escalar com cuidado, encontrando um caminho entre as rochas. Enquanto descia, Hug começou a notar que o volume de água aumentava rapidamente. Em meio ao som da cachoeira, olhou para cima e notou que o tempo estava fechado no alto do pico. Certamente estava chovendo lá em cima, o que indicava que uma cabeça d´água iria engolfar-lhe rapidamente. Aquilo o deixou bastante preocupado. Pendurado na rocha, ele conferiu o embornal de couro que trazia nas costas junto ao arco. O revolver de seu avô e as barras de luz química ainda estavam intactos. O saco hermético estava fechado. Havia pedaços de comida e peixe seco. O volume de água agora já era o dobro de quando ele começara a escalar o paredão.

– Talvez eles tenham descido com cordas. – Pensou, olhando as marcas nos galhos das árvores na margem do rio.

Hug agarrou-se a uma ponta e esticou-se todo, tentando pisar numa loca de pedra no paredão. Ele precisava chegar naquela loca para agarrar-se em outras pedras e assim continuar sua descida. A água gelada do rio caía sobre ele com pressão.

Hug pisou na loca e seu pé escorregou no limo. Ele tentou ainda se agarrar na pedra, mas era extremamente escorregadio. O volume de água que descia o desequilibrou e ele não viu escolha senão saltar para trás com a maior força que podia, torcendo para escapar das pedras lá em baixo.

Hug estourou contra a água do lago formado na base da cachoeira.

Ele afundou e viu tudo escuro. A forte pressão da água o empurrou para baixo. Ele engoliu água. Bateu contra uma pedra no fundo. Não sabia para que lado devia nadar. Quando Hug chegou a superfície, quase sem ar, sentiu as coisas rodando ao seu redor. As árvores pareciam querer fechar-se em volta dele. De baixo, ele pôde ver o quão alta era aquela cachoeira. Sentiu uma dor lancinante na cabeça. Ele levou a mão na testa e assustado, viu a mancha de sangue em sua mão. O nível da água estava subindo rapidamente. Hug nadava desesperado, mas as correntezas só aumentavam. Enquanto nadava, ainda atordoado com a pancada, lembrou as palavras que ouviu de seu pai quando ainda era só um garoto: “Nunca nade no rio. A correnteza pode te puxar para debaixo duma pedra” .

Quando enfim chegou na margem, estava exausto. As coisas rodopiavam ao seu redor e ele se sentiu perdendo as forças. Hug só teve tempo de saltar da pedra em que estava para o capim seco antes de finalmente tudo apagar.

Seria impossível dizer se ele ficou ali algumas horas ou mais de um dia. Quando finalmente despertou, estava enterrado na lama da margem. Mas isso era o de menos. O que o fez acordar foi aquele terrível som.

-O aparelho. – Pensou, com os olhos esbugalhados de pavor.

A menos de dez metros dele, sobre a clareira do lago da cachoeira, estava um aparelho parado no ar. Ele flutuava baixo, quase tocando a água.

O aparelho emitiu aquele estranho apito que fez todas as entranhas de Hug se contorcerem. O medo tomou conta dele por completo quando viu o aparelho jogar suas luzes em cima dele.

 

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. “Que marmota é essa?” kkkkkkkkkkkkkkkkkkk Onde se passa a história? É sempre uma características dos seus contos divididos em partes ter esse continua na melhor parte. Muito bom!!!

    • Mas a verdade é que eu boto o gancho para que eu mesmo tenha tesão de continuar. Eu sou volúvel com as histórias, e sem fazer isso fatalmente eu tenderia a acabar a história abruptamente para começar outra.

    • Eu acho que sai amanhã. Talvez se eu conseguir um tempo aqui eu escreva ela hoje a noite ainda, pra não deixar as ideias escoarem.

  2. Realmente envolvente a história!
    Gosto bastante dessa temática pós- apocalíptica. É sempre bom ler uma boa história de sobrevivência. Fico na espera para saber quem/como são os Outros… 

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