Seu Raul era um homem pobre. Ele vagava pela cidade, consertando portas, arrumando telhados e cuidando de jardins em troca de pratos de comida. Vez ou outra, alguma boa alma lhe dava umas roupas, uns mantimentos. E assim ele seguia a vida. Era andarilho. Não tinha casa nem ponto fixo.
Um dia, seu Raul vinha passando por uma rua muito chique. Era cheia de árvores dos dois lados, e as casas eram muito bonitas. Verdadeiras mansões. Já era passado do meio dia, quando Raul notou que seu estômago roncava forte.
Foi quando ele viu, que estava em frente a uma casa com portão de grade, onde no quintal, um homem fazia um churrasco.
A boca de Raul encheu-se de água olhando aquela linda picanha brilhando ao sol. A fumaça cheirosa proveniente das gotas de gordura que pingavam das linguiças subia ano ar, inundando todo o ambiente com o delicioso cheirinho do churrasco.
-Bom dia. -Disse ele para o homem que fazia o churrasco.
-Não tem comida não. -Respondeu o velhaco, sem lhe olhar na cara.
-Tudo bem, não tem problema. Eu tenho um pão velho aqui.
-Então coma seu pão, que eu como a minha carne.-Respondeu o velhaco.
O velhaco era o Doutor Capinã. Um velho rico, famoso por sua avareza na cidade. Ele era dono de mais da metade da cidade. Vivia de imóveis de aluguéis e salas comerciais. Sempre com carrão do ano, sempre usando as melhores roupas, mas não dava esmola, não ajudava ninguém.
Seu Raul sentou-se em frente ao portão da mansão do velhaco e sacou de sua sacola um pacote de papel cor de rosa. Daquele embrulho tirou um pão. Era um pão francês já duro.
O velhaco comia pedaços de carne enquanto via Raul tentar quebrar o pedaço do pão, duro como uma pedra.
Então Raul teve uma idéia.
-Doutor Capinã?
-Fala.
-Não tenho cara de lhe pedir um pedaço da sua fabulosa carne de churrasco, mas será que o senhor permitiria que eu colocasse o meu pão aí perto da sua carne, de modo que a fumaça da carne entranhasse no pão e ele ficasse pelo menos com um gostinho mais perto do dela? -Perguntou ele.
Qualquer pessoa ficaria compadecida com tamanho gesto de humildade, e daria um prato de carnes para o pobre homem, mas aquele não era um sujeito comum. Era Doutor Capinã.
-Olha, eu ia dizer que não, mas o senhor sabe. Parte-me o coração comer meu churrasco e te ver comendo só este pão duro e seco. Então, pode me passar o pão que eu coloco ele aqui na fumacinha pro senhor.
O golpe havia saído pela culatra. O sujeito era tão safado que aceitou colocar o pão duro do seu Raul na fumaça do churrasco dele.
Raul passou com todo o cuidado o pão pela grade do jardim. O Velhaco colocou o pão num espeto e pendurou-o sobre a churrasqueira.
Enquanto o pão ia pegando a fumacinha do churrascão de picanhas e linguiças, os dois homens, cada qual em seu lado do gradil batiam papo.
Era uma conversa estranha. Seu Raul era um homem simpático, conversado. Contou a vida para o velhaco, que era um sujeito na maioria das vezes quieto, sem amigos.
Raul contou da fazenda que possuía, das mulheres que teve e dos filhos que viu morrer.
Quase uma hora depois, quando a fome chegou em seu clímax e não dava mais para aguentar, seu Raul pediu o pão de volta.
-Ah, sim. O pão. -Disse O Doutor Capinã.
-Pois é. Acho que já deve estar com o gostinho da carne. POde passar ele pra mim?
-Claro… São dois reais! -Disse o velhaco.
-Dois reais? -Perguntou Raul.-Como assim? O pão é meu!
-É seu, mas a fumaça é minha. Eu deixei o senhor desfrutar da fumaça do meu churrasco, que acrescentou valor ao seu pão. Por isso eu exijo pagamento. Senão, não tem pão.
Aquilo era o cúmulo da filhadaputice humana. Cobrar por deixar o pão do pedinte na fumaça do chgurrasco, que ele preemptóriamente se negou a compartilhar com o homem.
-Não é justo! -Gritou seu Raul.
-É justo. Justíssimo! -Devolveu o velhaco Capinã.
A contenda tornou-se séria e cada vez mais os dois homens se exaltavam, cada qual em seu lado da grade. Os vizinhos saíram as ruas para tomar conhecimento do embróglio.
Mais e mais pessoas iam se aglomerando. Umas ao lado de Capinã. Outras ao lado de Raul. O impasse começou a tomar ares de confusão. Manel, o dono da quitanda fez sinal para o menino correr para chamar uma autoridade, ou aquilo poderia acabar em morte.
Dali a uns minutos, surgiu Tibúrcio, o juiz. O povo abriu caminho e o velho Tibúrcio, um homem velho e muito inteligente se aproximou.
O povo em silêncio ouvia.
-O que está acontecendo aqui? -Perguntou o velho juiz.
-É que ele não quer me dar o meu pão. -Disse apressado seu Raul.
-Como é? -Perguntou o Juiz.
-A coisa é o seguinte, doutor Tibúrcio. O seu Raul apareceu aqui na grade da minha propriedade pedindo um pedaço de carne. A carne que eu comprei com o meu dinheiro. Portanto, minha carne. Como ela é minha, é meu direito decidir se a como, se a dou ou se jogo fora. Certo?
-Certíssimo. -Respondeu o Juiz. O povo que estava a favor de Capinã aplaudiu ruidosamente, sob vaias dos que estavam a favor do velho pedinte.
-Pois bem. Eu neguei a ele um pedaço de carne. Então ele me propôs colocar o pão dele sobre a fumaça da minha carne, de modo que o pão dele pegasse uma fumacinha proveniente da minha carne e ficasse com um sabor melhor. Assim eu prestosamente concordei.
-Certo. Continue.
-Pois quando ele achou que estava bom, me pediu o pão. Eu disse a ele que o serviço que eu havia prestado a ele custaria dois reais, afinal o pão dele estava com gosto de guardado, e colocando sobre a fumaça do meu churrasco, ficou com um sabor melhor. Dois reais foi pela prestação do serviço de melhorar o sabor do pão do seu Raul. Que se nega a pagar.
-Hum…Entendi -Disse o Juiz coçando o queixo. O povo em silêncio. Todos aguardavam a opinião abalizada da autoridade.
Os dois homens, cada qual e um ponto da pirâmide social, esperavam saber para o lado de quem a justiça inclinaria sua balança.
O juiz pensou por dois minutos. E em seguida respondeu.
-O doutor Capinã está certo. – O povo explodiu em uma confusão de aplausos, assovios, vaias e gritos. Mas o juiz levantou a mão em sinal que ainda não acabara de proferir sua sábia sentença e a multidão de súbito se calou. E então, Tibúrcio continuou. Virou-se para o seu Raul e disse:
-Seu Raul, o senhor tem os dois reais aí?
-Tenho sim senhor. Ganhei na porta da igreja. Tá aqui. -Disse o pobre homem estendendo uma velha meia com duas moedinhas dentro.
-Doutor Capinã, se aproxime da grade para receber o pagamento, faz favor. -Disse o Juiz em tom sóbrio.
-Agora pode devolver o pão. -Disse o Juiz, o que prontamente o velhaco fez. O pão foi entregue ao seu Raul. O velhaco mais que depressa estendeu a mão. O juiz levantou a meia com as duas moedinhas.
-Doutor Capinã, o senhor está vendo o dinheiro?
-Estou sim senhor. -Disse o velhaco, ávido pelas moedas. O juiz então sacudiu a meia, de modo que as moedas se batiam, fazendo o barulhinho do dinheiro.
-Doutor Capinã, o senhor está ouvindo?
-Estou sim senhor. -Disse o velhaco, já meio impaciente.
-Então está pago. Se o senhor cobrou pelo cheiro, pode receber pelo barulho. -Disse o juiz, devolvendo os dois reais do Seu Raul. O povo aplaudiu em êxtase.
Doutor Capinã voltou para sua casa puto da vida e nunca mais saiu de lá.
FIM