Estavam acampados nos confins da Amazônia fazia três meses. A barraca de palha era pequena e cheia de mosquitos, que já acostumados com a fogueirinha permanente, insistiam em chupar-lhes o sangue.
Lá estavam os dois homens. Irmanados na pinga.
Um era Zé Carlos de Azevedo. O outro, Leonardo Silva Jardim. Ex-seringueiros, ganhavam a vida agora como garimpeiros.
Procuravam por ouro, diamantes, esmeraldas… O que aparecesse primeiro.
Não aparecendo nada, iam mais adentro na floresta e armavam outro acampamento, quase sempre próximo dos igarapés.
A noite de sábado tinha sido fria. Na escuridão da floresta, cheia de ventos e lamentos de pássaros da escuridão, gritos de macacos e corujas, os homens tomavam a cachaça e mascavam fumo. Os pedaços de um pintado já ressecado das vastas gorduras, fazia de aeroporto para as moscas ao lado do fogo.
Já deitados nas redes, a fogueirinha acesa ao lado, combinaram de ir a um vilarejo, descendo o afluente de rio no dia seguinte, para rezar na igreja e com sorte, dançar num baile.
O dia seguinte veio rasgando a noite com fachos de luz se espalhavam por entre as copas das árvores.
Zé Carlos acordou e já deu com Leonardo em pé. Revólver na cintura. Facão na mão e o embornal de couro atravessando-lhe o peito.
– Vai aonde compadre?
– Caçar.
– Mas hoje é domingo compadre.
– E daí?
– A gente ia na igreja, uai…
– Ah, vou caçar.
– Mas domingo é dia de descansar. Deus fez o domingo pra descansar, compadre.
– Domingo também se come… – Disse Leonardo, virando-se para a mata e desaparecendo em meio a floresta.
Zé Carlos desceu da rede. Colocou a vasilha no fogo pra fazer um café.
Acendeu o cigarrinho de palha. Ficou ali alguns minutos pensando. PApel de homem mesmo não era ficar ali igual bobo com uma chaleira. Homem, amigo, compadre, tem que acompanhar o parceiro na caça. É obrigação.
Levantou-se e pegou a espingarda. Ajuntou as coisas, recolheu as esteiras e as redes. Colocou um pedaço de rapadura no embornal, verificou o estado da pólvora e partiu no rastro de Leonardo.
Zé Carlos andou pela mata por horas, sem encontrar o amigo. Havia perdido dele.
Leonardo era hábil caçador. Caçar havia virado seu passatempo dos domingos. O sujeito estava há semanas chamando Zé Carlos para caçar com ele nos domingos, mas ante a reticência do colega em fazer tamanho trabalho num dia reservado por Deus para descansar, partiu sozinho, ainda que contrariado.
Zé Carlos andava em círculos pela mata, subia colinas e escalava escarpas de rocha agarrando-se em raízes sem encontrar a trilha do colega.
Estava a esgueirar-se entre os troncos grossos de uma árvore que crescera numa pedra coberta de líquens de todos os tipos, quando foi que ouviu os berros mais medonhos que jamais ousou imaginar.
Os gritos gorgolejantes e guturais encheram sua alma de pavor. Zé sentiu um arrepio subir pela coluna, gelando-o na alma. Passou a mão na espingarda e pôs-se de barriga entre o tronco e a rocha úmida. Ficou a espreita do que fosse. Os gritos continuaram.
Zé ficou no alto, sobre a pedra, como estátua, sem se mexer. Estava oculto pelas gramíneas e musgos. Esperava para ver o que era. A arma em riste. A mira feita.
Os berros foram-se fazendo ouvir cada vez mais perto. E a cada grito, Zé contraía mais a arma contra o peito. A tremedeira aumentava com o barulho. E ele enfim começou a rezar em pensamento. Pedia para aquilo acabar logo. Mas os ruídos aumentaram.
Zé viu com os próprios olhos algo que nunca, pessoa alguma, havia testemunhado e saído viva para contar: Era um espetáculo horrendo, que quase o pôs louco de tamanho pavor.
Ali, diante dele, num plácido igarapé a sombra da floresta surgia o mapinguarí.
Mapinguarí era um macacão peludo de mais de quatro metros de altura. Seu corpo recoberto de fiapos pretos nojentos, emplastrados de sangue equilibrava-se sobre duas pernas que mais pareciam troncos retorcidos para trás, de tão disformes.
Cambaleava com os pequenos, porém musculosos braços, segurando uma carcaça humana. Era Leonardo, seu pobre companheiro de barraca. Morto, esfrangalhado, ainda gotejando sangue. Os intestinos pendurados como uma corda que ia até a grotesca boca da criatura cheia de dentes cerrados em fileiras.
O monstro com as unhas grossas como as de uma onça arrancava pedaços do desgraçado infeliz e jogava-os na bocarra escancarada. Via-se, dessa boca horrorosa, rasgada, o que deveria ser um tipo de nariz disforme até o meio da barriga. Não há maneira correta de descrever o horror que era o Mapinguarí, senão compará-lo a uma boca gigante cheia de dentes coberta com pelos pretos compridos e dois braços musculosos com garras afiadas e pernas retorcidas de dinossauro.
Aquela abominação estancou, parado no igarapé comendo o compadre de Zé Carlos, quando subitamente, falou sozinho.
Zé não pôde conter a surpresa de ver que aquilo falava. Mas ainda mais impressionante foi o que o monstro falou, com sua inconfundível voz gutural, como que saída diretamente do inferno:
– Domingo também se come.
E entrou novamente na floresta densa, sumindo ante as folhagens, rindo seu riso maldito, em meio aos grotescos ruídos gorgolejantes.
Gostaram? Essa é minha contribuição ao Dia do Folclore. Eu adoro os monstros do folclore brasileiro. Riquíssimo, vastíssimo, com milhões de seres incríveis.
Mas só se fala nos mesmos. Chega de Saci.
Esta história é uma adaptação que eu fiz de uma lenda original do Mapinguari amazônico, coletado e publicado pela primeira vez em 1928 por José da Silva Campos e posteriormente republicado pelo Câmara Cascudo em “Geografia dos Mitos Brasileiros”.
É interessante notar a estrutura moral do mito, que ( na grande maioria das lendas referentes especificamente ao Mapinguari) trata da punição pela renegação da igreja e do descanso dominical, bem como a função estrutural do ser como uma defesa da natureza ante a um caçador. Nesta estrutura, estão o Mapinguari, Caipora e o Curupira. Todos membros de uma mesma família mitológica.
Grande Câmaca Cascudo!!! Sou de Natal, terra dele!! Aqui existe a casa de Câmara Cascudo e o Memorial de mesmo nome, para guardar as memórias do nosso folclore e tantas outras obras riquíssimas! Me senti orgulhosa de ler o nome de um grande autor potiguar em seu blog!!! Gostei de ver!!!
Uma correção: não se pode colocar a cuia no fogo para fazer café. Pois ela é feita de um fruto, e pegaria fogo. Ela serve para servir de prato e cantil.
É que em alguns lugares do interior o povo chama de cuia qualquer vasilha que não tenha alça. Foi bem observado. Alterei para vasilha e corrigi uma montanha de outros erros gramaticais.
Gostei do seu conto,minha avó que é do interior conta uma historia com esse msmo sentido,que se deve guardar os domingos.Ela usa esse ‘domingo tbm se come..’ no conto dela rsrs
kkk