A moeda preta

Parecia mais um dia normal como qualquer outro na Twins Pawn. Entre compradores de quinquilharias e pessoas pobres devendo para agiotas, se humilhando ao máximo para fazer algum dinheiro, Dave Atkins bebia um café já meio frio atrás do balcão.

Consultou as horas. Larry estava atrasado como sempre. Os atrasos constantes do irmão sempre deixavam Dave aborrecido. Sentia que levava o negócio da família nos ombros.  Mas ainda era cedo, e viu um dos funcionários se aproximar com uma cara estranha.

— Qual foi neguinho?

— Dave, o telhado do depósito voltou a vazar!

— Molhou alguma mercadoria?

— Bem em cima dos cascos, Dave.

— Ah não… Puta que pariu!  Vamos lá ver.

Os dois foram para o depósito. Chegando lá viram que a coisa estava mal. Um vazamento das telhas produziu uma cascata, que descia pela parede e caiu bem em cima da arara dos casacos de visom da loja.  Duas funcionarias estavam correndo para tirar os outros casacos das araras.

— Silvia, manda esse material aí pra lavar no Joe´s.

— Sim Dave, deixa comigo. — Falou a moça de aparelho nos dentes, puxando uma enorme caixa de papelão repleta de casacos de pele molhados.

Dave estava junto com Wilson olhando o lugar de onde vinha a água quando finalmente Larry deu as caras.

— Vazou de novo essa bosta, foi?

— Olha aí, bem em cima dos casacos. — Dave apontou a caixa.

— Deve ter sido a tempestade de vento da terça. O pior é que tem coisa aí que é do penhor. Nem é nosso. Se essas pessoas vierem resgatar, vai dar o maior auê. Vamos mandar lavar no…

— Já mandei. A Silvia já vai levar.
— Ok, ok… — Larry pegou o celular e discou alguma coisa. Depois, começou a reclamar sobre o vazamento com o empreiteiro.
Dave fez sinais com a mão pelo ar, e sussurrou: “Fala da garantia, fala da garantia!”

Como Larry havia assumido o problema, Dave voltou ao balcão.
Minutos depois, chegou uma mulher querendo vender uns brincos.

— São de ouro, tio. Ganhei da minha avó.
Com vinte anos de trabalho na loja de penhores, Dave sabia reconhecer o ouro e as múltiplas imitações dele de longe. E aquilo não era ouro nem a pau. Apesar disso, havia um protocolo a ser seguido ensinado por seu falecido pai.  “Sempre que chegar um item falso, nunca descarte-o de cara. Dê uma desculpa e recuse com educação.”
O velho sabia das coisas.

Mas Dave não estava num dos bons dias e o negócio do prejuízo do telhado e nos casacos de visom contribuíram para seu mau humor.

— Se isso aí for ouro eu sou o pato Donald, moça.
E foi o que bastou para a mulher começar a se estressar. Ela começou a dizer que era logico que era ouro, que aquilo era herança da família, e que ele era um idiota.

— Pode levar embora essa porcaria!
— Você é um idiota. Tá pensando o que, babaca! É ouro sim!  Vou levar pra alguém que entenda mais que você, velho estúpido!
— Tenha um bom dia, moça.
— Maldito! Maldito! — Ela gritava conforme “little” Zed a empurrava para fora da loja, falando baixo com sua voz grave: –Vá pra casa, vá pra casa…

Minutos depois chegou um homem querendo vender um videocassete.

Dave olhou com cara de nojo.
— Não tenho interesse, ninguém mais quer isso.

— Mas são quatro cabeças e funciona perfeitamente! Tenho até o controle. Preciso pagar o aluguel. Me ajuda, moço.

— Não vai dar eu já tenho uns nove desses no depósito.

— Pelo amor de Deus, cara. Eu vou ser despejado!

— Hum… Deixa eu ver. — Dave disse, com má vontade. Olhou o aparelho de todo lado. realmente estava em boas condições.

— Tá pensando em pedir quanto nesse treco velho aí?

— Eu queria pelo menos uns oitenta dólares?

— Pago cinco dólares.

— O que? Eu preciso de cem para o aluguel, moço! Não pode fazer por cinquenta?

— Ok, pra te ajudar, faço por dez. Pago dez nesse seu lixo pra te ajudar.

— Enfia os dez no rabo! Eu quero cem!

— Ei, cara. Estou falando numa boa. Por que está falando assim? Quem você pensa que é?

O homem desesperado sequer respondeu. Agarrou-se no videocassete como um naufrago prestes a pular no mar e saiu da loja batendo firme os pés no chão que mais parecia uma marcha. Ao lado dele, Little Zed apenas andava em silencio impávido, como uma montanha.

Larry veio dos fundos.
— Dave, os empreiteiros estão vindo. Acionamos garantia. O Gutierrez esta vindo com eles.
— Certo. Aproveita e veja com eles a reforma do banheiro das meninas do penhor.
— Tudo bem. Você atendeu o velho do videocassete, né? Zed me contou.
— Outro xarope. Tem dia que é foda…
— Esse velho veio ontem. Quis arrumar confusão. Foi na hora do seu almoço. Começou a gritar, tentou subir no balcão. Quase que o Zed deu um tapão na cara dele.

Os irmãos foram interrompidos por Wilson.

— Fala neguinho. O que é a merda dessa vez?

— Pessoal, ali no balcão tem uma moça com um item interessante para avaliar.

— Penhora ou venda?

— Venda.

Eles foram até a mulher. Ela tinha uma espada de samurai.

— Como vai, tudo bem? Hummm… Legal.

— Ah, não! Nem cabe mais espada lá atrás, Dave. — Disse Larry.

Dave entendeu o jogo.

— Calma, bro. Vamos ver o que essa senhora tem pra nos contar.

A mulher pigarreou. Ela tinha a expressão serena de uma professora de literatura aplicando prova. Ela devia ter uns sessenta anos, com duas rugas pronunciadas no rosto, mas seus olhos eram de um verde esmeralda muito bonito. Os cabelos brancos adornavam e iluminavam seu rosto. Suas roupas eram um pouco antiquadas, e ela usava pelo menos um cordão com diamantes e uma pulseira de ouro puro. O olhar clínico de Dave concentrou-se nesses elementos, imediatamente traçando uma ideia de seu status social. Enquanto isso ela contava como a espada estava na família e tinha sido trazida do Japão pelo avô.

— E ela ficou esquecida todo esse tempo, mas quando começamos a reforma na garagem, um compartimento secreto apareceu e assim reencontramos a espada do vovô…

Era comum que clientes sempre chegassem com histórias mirabolantes para valorizar as peças.
Larry seguiu com o teatro da venda.

— Legal, é uma peça boa, mas a verdade é que o mercado está cheio disso, moça.
— Diga, senhora. Quanto a senhora pensa em pedir pela espada?
— Bem, eu fiz o dever de casa… – Ela disse.

Aquela era uma frase perigosa que os dois irmãos já tinham escutado outras vezes no negócio de penhor. Ela continuou.  –Essa é uma espada importante… Aqui a marca do fabricante, ó. Estou querendo pelo menos vinte e dois mil.
— Hum… Certo. — Dave examinou a arma com uma lupa. Depois passou a lente para Larry.

Assim que Larry bateu o olho percebeu. Não era uma arma qualquer. Era uma Masamuni.
Lary tossiu duas vezes. A mulher diante do balcão olhava distraída para um anel na vitrine, e não notou a tossida dupla. Uma mensagem em código entre os irmãos. Um famoso truque dos penhoristas. A tossida dupla significava “coisa boa”.

Dave coçou o olho direito.

— Eu acho que é falsa. — Disse Larry, taxativo. — Vendemos umas réplica dessa aqui mesmo, na semana passada. Por mim, é “não”.

— Uma réplica? A mulher disse, envergonhada e confusa.

— Olha, na Segunda Guerra, muitos soldados vieram do Japão trazendo espadas. Era muito comum que eles fossem enganados e trouxessem itens assim… Então, engrupiram seu avô. E o melhor que posso fazer é oferecer duzentos dólares, porque sempre tem um garoto fã de anime querendo enfeitar o quarto.

A mulher olhou a lâmina enferrujada.

Dave olhou para Larry. Era o momento crítico.

— Eu não sei. Acho que vou fica com ela para lembrar do vovô.

— Bem, a senhora que sabe. A propósito, a senhora gostou desse anel? Quer ver na mão?
— Posso?

Dave abaixou-se e pegou o anel na vitrine. Era de ouro branco, com pequenas incrustações de água-marinha.

— Nossa, que lindo…
— Coube perfeitamente em você. — Disse Larry, encaixando apressadamente o anel no dedo da mulher.
— E eu vos declaro marido e mulher. — Disse Dave sorrindo. A mulher riu sem graça.
–Eu aceito.
— A Ruth me mata, ha,ha,ha — Disse Larry.
— Quanto está saindo essa beleza?
— Estamos pedindo quinhentos e noventa e nove.
— Nossa, ficou lindo… — A mulher estava encantada com o anel.

Dave coçou o queixo. Era outro sinal.

— Olha, vou ser sincero. Eu sou uma pessoa muito franca. Eu gostei de você. Ficou realmente bom em você. E vejo pelas suas outras joias que a senhora tem bom gosto. Conhece coisa boa. Vou te fazer uma proposta…
— Cuido com a Ruth mano! — Dave brincou.  Todos riram.
–…Você deixa essa sucata aí, bota mais cem dólares, e o anel é seu.
A mulher pareceu levar um choque. Ela ficou congelada, olhando o anel, vendo o brilho das lindas pedras azuis.

Dave olhou para Larry. Era a jogada da semana.
Segundos pareceram dura eternamente até que finalmente ela disse. “Eu não sei…” e pegou a espada do balcão.

Dave e Larry viram ela devolver o anel. Agradeceu um pouco tristemente e se foi.

A mulher foi andando para a porta.
Dave olhou para Larry e sussurrou: “è uma Masamuni cara!”
— Vou atrás dela?
— Não sei, não sei… Acho que perdemos essa.
— Isso ia botar uns quinhentos mil dólares no nosso bolso!
— Será que ela sacou a jogada?
— Sei lá. Vamos ficar firmes.
A mulher passou pela porta de vidro.
Os irmãos se entreolharam em luto.

Nisso, começou uma pequena confusão entre dois caras que estavam se estranhando pelo lugar na fila do penhor. Larry correu para ajudar Little Zed a separar os brigões e os escoltar porta afora.
Dave atendeu um homem que estava querendo comprar um relógio. Olhou, olhou e desistiu.

Então, para sua surpresa, ele levantou os olhos e quem estava ali no balcão com os olhos fixos no anel de água-marinha? Era ela. Ainda segurando a espada.
Dave sorriu.
— Esse anel é inesquecível, eu sei! — Ele disse, pegando no balcão e colocando diante dela. Os olhos verdes da mulher faiscavam.
— Sabe rapazes, entrei no meu carro e não consegui tirar o anel da cabeça. –Ela disse.
Larry veio correndo.
— Olha quem voltou!
— Estou querendo o anel.
Larry olhou para Dave. E em seguida emendou:

— Mas sabe o que é? Aquela proposta que fizemos já caducou, senhora.
— O quê? — Ela arregalou os olhões verdes. Até Dave estava de olhos arregalados com a cara de pau de Larry.
— Sim, eu propus cem dólares mais essa quinquilharia enferrujada aí, mas você não quis. Agora o preço subiu.
— Ah, mas isso não tem nem dez minutos!
— Qual é, mano? — Dave estava estarrecido.
— Era pegar ou largar e ela largou. Agora a proposta é: Cento e cinquenta dólares mais o ferro velho.
— Poxa, você aumentou cinquenta dólares em dez minutos? Ah… — A mulher estava ficando vermelha de raiva.
— Espere, senhora, espere… Eu vou convencer ele. Calmaí. — Disse Dave, agarrando Larry pelo braço e saiu puxando para o escritório.
— Ei, ei, me larga!
— Vem cá, porra! Vamos ter uma conversinha!

Eles fecharam a porta e se olharam. Dave trancou a porta com uma expressão de pura raiva.
E então os dois explodiram na gargalhada.

— Viu a cara dela?
— Ela vai cair! Ela vai cair, cara!
Vamos esperar um pouco. — Ele disse, olhando para o monitor de vigilância. A mulher olhava derretidamente para o anel.
— Já deu?
— Já.
Eles saíram com cara de quem comeu e não gostou.
— Olha, tivemos uma conversa dura lá atrás. Desculpe tê-la deixado esperando… Mas temos um acordo aqui. Não consegui convencer meu irmão a voltar na proposta antiga… Esse cara é cabeça-dura.
A mulher baixou os olhos, constrangida. Dave seguiu falando.
–… Mas vamos fazer o seguinte. Olha aqui. — Ele tirou a carteira do bolso e pegou uma nota de vinte e outra de cinco. Jogou no balcão. — Eu vou pagar metade para esse chorão aí. Do meu bolso. A senhora paga cento e vinte e cinco e o anel é seu.

A mulher sorriu: –Fechado!

Larry se apressou a recolher o dinheiro e a espada no balcão. Dave indicou:

— Vá ali naquela moça do guichê. Ela vai fazer a papelada.

A mulher foi toda feliz.

Minutos depois ela saiu segurando com a caixa da jóia na mão.

— Tchau rapazes!

— Volte sempre!

Os dois se entreolharam sorrindo.

— Vamos ligar para o Sanderson. Tenho certeza que ele vai pegar essa espada para a coleção! Entre quinhentos e setecentos e sessenta mil, com certeza!

— E a burra: “Fiz o dever de casa…” Imagina se não tivesse feito!
— Eu fico até com pena de dar volta em gente assim, coitada. — Disse Dave.
— Olha à sua volta. Foi assim que papai construiu isso tudo. É dever do mais esperto tirar proveito do mais burro. Além do que esse treco estava esquecido atrás da parede da garagem… Ela não tem nenhuma ideia do que vale. — Larry saiu rindo para telefonar ao colecionador.

Dave ficou no balcão.
Um sujeito pobre apareceu. Ele queria penhorar um anel repleto de pequenos diamantes.
— Nossa. Belo anel você tem aí.
— Já penhorei ele aqui umas três vezes. Venho aqui desde o tempo do seu pai.
— E o que está pegando agora?
— Perdi na roleta. Mas tenho certeza que recupero. O anel é minha garantia. Sou um profissional.  — Ele disse, com um certo tom orgulhoso.
Dave avaliou o anel com a lente.

— Quanto pagamos na ultima vez?
— Quatrocentos e cinquenta.
— Humm… Tá. Vou jogar quinhentos no teu peito.
— Fechado garoto. Hoje mesmo eu volto pra buscar.
— Pode ir ali no guichê três. Fechamos às sete.

O homem velho foi até o balcão, preencheu a papelada e saiu com cinco notinhas de cem, balançando no ar como um leque: “Logo mais estou aí!”

— Tenha um bom dia.

Dave estava quase saindo para o almoço, quando viu entrar uma figura estranha. Era um homem oriental, com longos bigodes brancos, careca lustrosa contrastando com a barba branca lisa. Sua face era emaciada, ele parecia não comer há décadas. O homem andava devagar, vestindo uma enorme bata branca. Ele se aproximou do balcão. Estendeu sua mão trêmula e ossuda num aperto de mão. Dave apertou devagar, tinha medo que o velho se quebrasse como um biscoito amanteigado.

— Como vai o senhor?
— Tenho uma coisa para vender.
— Tudo bem. O que é?
— Já vai chegar. Espere um pouco. — Disse o velho chinês.
A porta se abriu e dois homens de terno entraram. Eles traziam uma caixa de aço que media cerca de quarenta centímetros. Eles estavam fazendo uma cara feia, que dava pra ver por trás dos óculos escuros. A caixa devia ser muito pesada. Eles vieram andando e chegaram diante do balcão.
— Pode botar no chão. No balcão vai quebrar o vidro! — Disse Dave.
Os homens colocaram no chão, com um suspiro.
Dave se debruçou no balcão da loja de penhores e olhou a caixa. Era um cofre laqueado.
— Nós não estamos comprando cofres, amigo.
O velho sorriu os dentes amarelos e desgastados sob o bigode branco.

— Não é o cofre.  — O velo apenas olhou para os seguranças.

Dave tornou a olhar. Enquanto o velho se abaixava lentamente, os dois homens de terno preto se afastaram e ficaram a uns dois metros do velho.  Instintivamente, little Zed, o segurança fisiculturista da loja  já se aproximou.

o velho mexeu nas alavancas e no disco de números e símbolos da porta do cofre. Ele então se abriu com um clique que ecoou na loja. O velho meteu as duas mãos brancas e ossudas dentro da caixa e de lá retirou um pedaço de bambu com todo cuidado. Ele se levantou com dificuldade e colocou o pedaço de bambu no balcão. Então, em silêncio e tão lento quanto se estivesse debaixo d´água, disse ao Dave:

— Eu vou mostrar uma coisa que poucas pessoas já viram. Por favor, aconteça o que acontecer, não toque no meu objeto. Em hipótese alguma. Você entendeu, rapaz?

— Sim, claro. Vamos lá.

Larry chegou.

— Que porcaria é essa aí?

— Quem é esse menino?
— É meu sócio. Meu irmão.
— Como vai? O velho estendeu a mão. Doutor Lao. Prazer.

Eles se cumprimentaram e o velho tornou a falar sobre não tocar no item dele. Larry concordou, curioso.

O velho foi com a mão tremendo, e com o polegar e indicador, suspendeu lentamente a tampa do bambu, com tamanho cuidado que parecia estar lidando com uma dinamite. O pedaço de bambu revelou ser uma caixa simples, aparentemente antiga. Dentro, forrada em um feltro vermelho escarlate, havia uma almofada e sobre ela, uma simples moeda preta, pequena, que parecia ser de algo entre o metal preto e uma rocha obsidiana.

— O que é isso?

— É minha moeda preta.

Larry olhou para Dave.

— Tá de sacanagem, né? Que isso? Pegadinha da televisão?
— Calma cara, deixa o nosso amigo falar. Diga, meu senhor. O que é isso que o senhor trouxe.
— Essa é a moeda preta de Goro Nyudun. — Disse com algum orgulho na voz fraca.
— E ela e um colecionável?
— Numismática.  — Gemeu Dave, tossindo duas vezes.
— Cuidado, não se aproxime! Cuidado! Eu disse! — O velho agarrou o braço de Dave quando ele pegou a lente de aumento para ver de perto.   Os dois seguranças vieram na direção do balcão.
— Ok, ok. Espera. — Dave soltou-se.
Os seguranças recuaram para a posição original.
— Como vou comprar se não posso avaliar? — Larry questionou.
O velho deu de ombros: — Olha com o olho, garoto.

E quanto o senhor está pedindo nessa… Nessa… Coisa?

— Eu quero… Vinte e nove mil, quatrocentos e dois e setenta e cinco centavos.

Dave olhou para Larry sorrindo.

— Todo dia tem um doido.

— E o que faz o senhor pensar que vamos querer isso?
— Eu não sei. Me digam vocês. Querem?
— É só uma moeda preta. Antiga, certo?
— Muito antiga, sim.
— Mas eu acho que não vamos conseguir vender isso, senhor.
— Bem, talvez vocês não saibam o que estão vendo. Me permite explicar?

Os homens ficaram em silêncio de braços cruzados atrás do balcão. Lao debruçou meio corpo na vitrine e sussurrou: “Este é um item… mágico”.
— Mágico? Do tipo do Harry Potter?
— Quem?
— Nada, nada. Prossiga por favor. — Interrompeu Dave.
— Quem encosta essa moeda conhece o o maior prazer que pessoa pode sentir. Não existe, nem existirá prazer maior. Mas isso tem preço alto. Muito alto!
— E como o senhor sabe? Já pegou nela?
O velho deu uma gargalhada gutural — Não, não, nunca, jamais! Lao não burro.  — Então prosseguiu:

— Quando Mao dominou a China, templos mais antigos saqueados e assim moeda saiu de lá. Mas isso não vem ao caso… O importante é que Lao é o guardião da moeda preta de Goro Nyudun. Mas eu estou com problemas. Preciso viajar para ajudar amigo doente. A venda da moeda é para que eu resolva meu…

Larry interrompeu o velho.

— Não temos interesse! Obrigado por mostrar.

O velho chinês ficou parado, olhava para Larry com seus olhos apertadinhos, sob o monte de rugas. Ele parecia ter congelado.
— Eu disse que não vamos querer, senhor. Tenha a bondade.

O idoso comprimiu a boca uma careta feia. Baixou os olhos, pegou com muito cuidado a tampa de bambu e cobriu a caixa. Depois pegou a mesma e lentamente a colocou no cofre preto.

Dave olhou para o velho ali abaixado. Notou o pé dele numa sandália, que era uma deformidade digna de um filme de terror.
Dave com pena, disse a ele:
— Senhor, olha, vou fazer uma proposta. O senhor esta pedindo…

— Vinte e nove mil, quatrocentos e dois e setenta e cinco centavos.  — Lao falou, se agarrando ao balcão enquanto se erguia precariamente.

— Oito mil.

— O que?

— Oito. Mil.
— Oito mil? Oito mil? Oito mil não resolve meu problema, rapaz!
— Bem, é o que eu acho que vale. Ainda temos que mandar avaliar e oferecer aos coleciona…

— Não não! Você não pode vender! Não pra vender. É pra guardar no seu cofre. Lao vem buscar!
— Ah, então é um penhor?

— Não sei o que é isso, desculpe. Mas não é pra vender! Não pode vender!

Dave olhou para Larry.
Larry coçou o olho direito.
Dave pigarrou.
Larry passou a mão no cabelo.
Dave se virou para o velho.

— Bem, eu vou dizer uma coisa. Eu sou uma pessoa muito franca. Eu gostei do senhor. Estou vendo que o senhor está precisando mesmo desses vinte e nove mil…

— Não, vinte e nove mil quatrocentos e dois e setenta e cinco centavos. — Ele corrigiu.
— Isso, exatamente. Vamos fazer o seguinte… Quando o senhor planeja pagar o penhor e retirar sua caixa?
— Em dezoito dias.  Talvez dezenove.
— Eu vou fechar com o senhor em quinze.
— Hã?
— Em quinze dias o senhor Lao vem aqui, paga vinte e nove e quinhentos e recupera sua moeda.
— Mas você vai me dar só vinte e nove mil quatrocentos e dois e setenta e cinco centavos.
— Sim, mas esse é um negócio. Veja. Olha ali, e preciso pagar o salario do Zed. Né Zed?

O brutamontes mal encarado acenou com a cabeça assertivamente.

O velho olhou para a caixa no chão. Ele se virou para Dave e estendeu a mão ossuda no ar.
— Aceito. Aceito. Em quinze dias.
–Ah… Espera! Tem uma coisa. — Larry interrompeu: — Não aceitamos itens em cofres. Pega a caixa e vamos guardar só a caixinha de madeira, tio.

O velho chinês retesou o corpo.
— Não pode caixa?
— Regras da casa, senhor.
Ele abaixou-se com dificuldade e com os movimentos lentos de um mestre de Tai Shi, pegou a caixinha lá de dentro e colocou no balcão.

Depois estendeu a mão branca e ossuda no ar. Dave apertou.
“Negócio fechado”.
O velho sorriu. Larry chegou com um envelope e uma guia azul de recolhimento de penhor. O velho contou na frente deles colocando as moedinhas no balcão.
“Sim, sim… Setenta e três, setenta e quatro… Setenta e cinco! Está certo!”
Eles agradeceram e o velho moveu a cabeça. Os dois homens fortes de terno pegaram o cofre e saíram em silêncio. O velho se virou e disse:
— Não toque a moeda. Volto em quinze dias.
— Senhor?
— Sim?

— Olha não pode perder o papel azul no envelope! Se perder o papel do penhor a moeda vai ser nossa. Só devolvemos com o papel. Em quinze dias. Se chegar com dezesseis dias, a caixa é nossa. Entendeu?
— Não perderei. Em quinze dias. Nem catorze nem dezesseis… Tenham um glorioso dia.

Ele se virou e saiu da loja.
Os dois se entreolharam.

— Mas que porra foi essa?
— Aqui só entra doido, puta que pariu.
— Bom, vamos levar essa porra lá pro cofre.
— Eu não vou botar a mão nisso. Tá louco? — Disse Dave
— Pô, vinte anos nessa merda e você ainda acredita em maluco religioso? Lembra do cara do Santo Graal do Indiana Jones?
— Eu só não quero confusão. Prometemos ao Fu Manchu.
— O bisavô do Bruce Lee é só mais um doido, cara. Aposto que essa merda não dá nada.
— Não conta comigo nessa, Larry.
Larry se virou para Little Zed.
— Ei Zed, chega aí!

— Fala chefia.
— Tá aqui, cinquenta mangos. Abre essa bosta e pega a moeda.
Zed estranhou.
— Cinquenta dólares? Você dando dinheiro? Ah, fala sério! Qual e o truque?
— Apostamos que você não abre a caixa e pega. É um teste.
— Zed olhou bem a caixa de bambu cru e envelhecido na mesa. Foi com a enorme mão, abriu a caixa e ali estava a moeda na almofada escarlate.
Zed olhou para os patrões. Dave e Larry sorriam.
Zed esticou os dedos, mas então estancou. Voltou com a mão e enfiou nos bolsos da jaqueta de couro.
— Não, não. Melhor não.
— Qual é, negão? Tá com medo do que, porra?
— Não sei. Não sei. Não vou botar a mão nesse troço aí não Larry.
— Ah, só tem cagão nessa merda mesmo. Chama o Wilson lá.
Zed chamou Wilson.

— Coé?
— Neguinho é o seguinte, eu e o Dave fizemos uma aposta. Apostamos que não tem ninguém corajoso para pegar essa moeda preta ali na caixa. O Zed já amarelou. E tu? Vai amarelar também igual frango?

Wilson olhou a caixa. Olhou a moeda.
— Só pegar?
— Só.
— Mas qual a parada?
— Pegou, levou a grana. Olha, vou casar mais vinte!

Larry botou outra nota sobre a de cinquenta.
Agora a loja fechada pra almoço, toda a equipe da loja já estava perto do balcão olhando. Wilson olhou, olhou, viu a moeda, o dinheiro sorrindo pra ele no balcão da loja de penhores.

— Vai ou não vai, porra?

— Não sei, não estou com boa sensação.
— Tá vendo? Só tem cagão aqui.  — Larry disse para Dave — Casa uma grana aí que eu pego!
Zed meteu a mão no bolso, arrancou mais vinte dólares de um bolinho de notas amassado e colocou na mesa. Wilson pegou uma de dez e “casou” na aposta.  As meninas do penhor colocaram dez dólares cada uma no bolo de notas.
— E agora? Quem vai?
Ninguém tinha coragem.
Dave viu que Larry se aproximou, meteu a mão na moeda e tirou da caixa.

— Tá vendo, ô bando de pau no cu? Só só uma merda duma moeda velha!

Todos começaram a rir, e Larry botou de volta a moeda na caixa. Ele pegou o dinheiro no balcão e já ia enfiando no bolso.  E então deixou o dinheiro cair no chão.
Ele começou a ter uma convulsão e caiu sobre o balcão.

— Larry, Larry? Larry? Que foi?
As meninas do penhor começaram uma gritaria de espanto.
Larry caiu no chão, começou a agitar o corpo e gemer. Seus olhos esbugalhados olhavam para o teto. Ele babava.
— É convulsão! É convulsão, o segurança Zed Gritava. Dave tentou amparar o irmão.

Larry estava se mexendo em espasmos incontroláveis no chão. Ele sorria, tinha uma expressão incontestável de prazer, mas ela logo se transfigurou em horror.
E então começou a esquentar.
Dave segurava a cabeça do irmão, e começou a sentir seus dedos lentamente afundando na carne pegajosa da cabeça dele.

Todos da loja de penhores se espantaram ao ver que Larry estava literalmente derretendo num caldo amarelo.

Minutos depois, não havia mais sinal do gerente da loja. Suas roupas ainda fumegavam com uma gosma amarelada e malcheirosa a escorrer dela.

Zed vomitou. As meninas saíram correndo. Wilson tentava telefonar para o 911.

Dave contemplou desolado o monte de carne sumindo na poça de gosma amarelada.

FIM

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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