A caixa – Parte 6

 

Eu seguia pela escuridão decidido a ver se havia mesmo alguém do lado de fora. A história do Sr. Alfredo parecia ser verdade e aquilo me assustava terrivelmente. Ele tinha visto alguém preso na caixa, que foi reduzindo  até que sumiu. Eu sabia que a caixa dele – e a minha, estavam encolhendo a cada minuto, mas  não podia imaginar se a caixa de Alfredo ia efetivamente sumir.

Eu andava e pensava: Se havia alguém fora da minha caixa, devia haver alguém numa outra caixa, do lado de fora da caixa dele, e assim sucessivamente. Mas como poderia ser? Quem criou essas caixas de aço? Por que elas encolhem? Estão ficando tão pequenas que já não podem ser vistas? Estão sumindo e indo para algum lugar? Aquilo parecia um pesadelo.

Alfredo havia dito que o homem na caixa que ele ouviu estava falando alemão. Isso me fez pensar se realmente o mundo todo havia sido preso nessas múltiplas caixas de forma aleatória. Com tamanha notícia bombástica, eu havia me esquecido de perguntar a Alfredo como ele podia estar vivo sem beber nem comer nada por tanto tempo. Sei de náufragos que passaram meses à deriva, mas eles bebiam água da chuva e pescaram para sobreviver. Aqui não tem nada além de paredes de metal frio e uma escuridão terrível. Eu andava com dificuldade, porque já me sentia bastante debilitado. Meu estômago roncava de fome e isso me dava um sono danado. Eu sabia que aquilo era um sinal claro de meu corpo pedindo um alivio ou ia entrar em modo de economia de energia.

Fiquei pensando naquela enorme pizza de calabresa com catupiry, cortada à francesa, que encharcou de cerveja e foi praticamente inteira direto para o lixo. Ah, se eu pudesse voltar no tempo. teria comido ela inteira, teria mamado toda a cerveja de cima, o que também não seria nada mal. Um chopp seria perfeito. Eu estava ficando completamente desesperado e a vontade de comer que produzia aqueles pensamentos só me dava mais fome, piorando as coisas. Meu estômago parecia tão vazio quanto a caixa. Minha fome era tanta que eu pensei em apostar com Alfredo que eu morreria vítima da falta de alimento antes mesmo da minha caixa sumir. Fosse como fosse, era uma aposta que eu ia ganhar, já que antes disso ele teria “ido pra terra do pé junto”.

Senti uma ponta de arrependimento de pensar assim dele, coitado. Porém, nada eu podia fazer. Ele estava numa espécie estranha de corredor da morte. Só podia esperar seu derradeiro momento. Eu, por minha vez, pensei que se fosse para ver a caixa me sufocar, eu preferia morrer antes. Ela que esmagasse meus restos, mas eu já teria “beiçado”.  Separei um tempo na cabeça para pensar na forma como eu ia cometer o suicídio. Se a morte seria inevitável, por que esperar? Talvez tenha sido por isso que Alfredo não ouviu mais o gringo. Talvez ele tenha caído na real, perdido totalmente as esperanças e se matou. Não sei como alguém se mata numa caixa apertada com o tamanho de um fogão, mas deve ter um jeito. Talvez batendo a cabeça na parede até estourar…

Finalmente cheguei na parede. Ali estava o aço frio tocando nos meus dedos. A parede era muito, muito lisa. Eu tinha certeza que se houvesse uma luz ali ela se mostraria totalmente espelhada, de tão lisa.

Agora minha meta era falar com o outro cara. Será que havia alguém lá fora? Comecei a socar e chutar a parede. Eu berrei, assoviei, fiz um puta dum escarcéu. Então, tive uma ideia que me ajudou. Arranquei o cinto da calça e desferi altas porradas com ele, usando como um chicote, com a fivela de aço grosso na ponta contra a parede. Aquilo sim, fazia um belo barulhão e tive certeza que era capaz de ecoar dentro da caixa do sujeito, por maior que ela fosse.

Bati durante um longo tempo, e esperei. Depois retomei as batidas e novamente dei um tempo para ver se ele vinha. Na minha cabeça, como a caixa de fora era muito maior que a minha, ele ia levar um tempo enorme para vir seguindo o som das batidas. Então tive a ideia de bater em código morse. Bati um SOS improvisado na parede caixa.

Ele não veio. Nada, não havia nenhum grito, nem som, nem nada. Eu fui ficando cada vez mais puto. A falta de comida me deixava com um humor péssimo, e talvez por isso, comecei a xingar tudo que foi nome. Meu stress começou a tomar conta de mim. Eu dava porradas com cada vez mais força na lateral enquanto gritava: – Vem seu filho da puta!

Mas não vinha ninguém e aquilo me deixava cada vez mais e mais irritado. Eu puxei com força o cinto no ar e dei uma senhora pancada no aço. A paulada foi tão forte que o cinto ricocheteou e me acertou na cabeça.

Aquilo despertou um ódio mortal dentro de mim. Perdi a noção completamente e chicoteei a parada com uma violência que eu nem sabia que existisse dentro do meu coração. Eu bati, bati, cada vez com mais força, cada vez o som da pancada era mais e mais alto, até que eu me senti afundando. Não entendi na hora o que estava acontecendo.

Só quando eu me vi, no chão, caído, emborcado junto a lateral de aço, que me dei conta. Eu tinha desmaiado. O esforço, a falta de comida, talvez a pancada, ou talvez aquilo tudo junto, tinha me levado a nocaute.  Certamente a glicose baixou porque eu não comia há muito tempo. Enquanto estive em repouso, o corpo conseguia gerenciar a situação, mas quando exagerei, foi à gota d´água. Levantei com tudo rodando. Fiquei ali, sentado, esperando me sentir melhor. A vontade de vomitar estava foda, mas não tinha nada na barriga para sair. Meu estômago se contraía e as dores eram terríveis. Eu achei que talvez não fosse sair vivo daquela experiência horrenda.

-Quem tá aí? – Ouvi bem ali do meu lado. Era tão perto que eu me assustei. Fiquei quieto sem saber o que dizer. Estava ofegante. A vontade de vomitar não passava.

-Tem alguém aí? Ei??? Alguém?? – Ouvi. Seguiu-se algumas batidas na parede, bem do lado do meu ouvido. Era uma voz de mulher.

-Socorro! – Eu gritei, batendo na parede.

-Socorro! – Ela bateu do outro lado. – Chama os bombeiros, moço. Eu tô presa num… Tanque… – Ela gritou de lá. Eu imediatamente saquei que era uma novata. Ainda não sabia onde estava. Nem sequer devia saber que a forma do cativeiro era de caixa. Ela devia ter acabado de “chegar”.

-Calma! – Eu berrei. – Você tá sozinha?

-Eu… Eu não sei. Pelo amor de Deus, moço! Liga pros bombeiros. Tá tudo escuro aqui! – Ela gritou choramingando.

-Calma, moça. Olha, eu também estou preso aqui, com um senhor, um tal de Alfredo.

-Alfredo? Cadê ele? – Ela perguntou.

-Então, ele está… Bem, deixa pra lá. Ele não ta aqui junto comigo. Olha só, presta atenção… Qual é seu nome?

-Mara.

-Mara, você tá em pé?

-Tô.

-Então senta aqui perto da chapa. Eu to bem do outro lado. Ok? Agora calma. Meu nome é Anderson.

-Que lugar é esse?

-Mara, olha só, vou te contar exatamente o que está acontecendo, mas você tem que ficar calma, ok?

-Tá… – Ela deu uma pausa. Acho que estava sentando. – Fala. – Ela disse.

-Eu acordei aqui alguns dias atrás. Eu não faço nem ideia que lugar é esse. Mas ele é igual uma caixa, uma caixa enorme. Toda de aço.

-Uma caixa? Mas como assim?

-Olha, Mara… É uma história meio comprida explicar agora como que eu descobri isso, mas o lance é o seguinte, eu estou dentro de uma caixa, que está dentro da caixa em que você está!

-Hã? Caixa dentro da caixa? – A voz dela parecia incrédula. Contei os segundos para ela pensar que eu era um doido e ela estava num hospício.

-Não… Tipo. Sabe as bonecas russas, onde tem uma dentro da outra e da outra e da outra fazendo uma bonequinha cada vez menor?

-Matrioska? Eu tenho! – Senti o sorriso em sua voz. Era bom sentir que mesmo naquela condição miserável, eu, um moribundo desprezível, era capaz de fazer uma moça sorrir.

– Então… Isso mesmo. Imagina que você ta dentro de uma boneca dessas. Eu to dentro de outra… Que ta dentro da sua. E o Alfredo, ta numa pequena, dentro aqui da minha.

-Nossa, que viagem. – Ela disse rindo.

-É sério. Não tô brincando.

-E na boneca dele? Tem, outra?

-Bem… Tinha, com um cara gringo, mas… Ele morreu.

-Hã?

-Olha, a gente não sabe que lugar é este, nem como a gente chegou aqui, se alguém trouxe… Nada a gente não sabe quase nada. Mas a gente descobriu que em cada caixa tem uma pessoa, e eu vim procurar quem estava na caixa fora da minha.

-Ah, era você que tava batendo?

-Era.

-Pô, que merda. Eu achei que eram os bombeiros.

Eu pensei em contar a Mara que as caixas estavam encolhendo, e que cedo ou tarde elas iam nos esmagar, mas tive pena. Ela parecia jovem.

-Quantos anos você tem, Mara?

-Dezoito… Quer dizer, faço dezoito daqui quinze dias.

-Você lembra como que veio parar aqui?

-Lembro mais ou menos. Eu tava no carro da Pri, uma amiga minha. A gente voltava do aniversário de um amigo nosso quando eu dormi no banco de trás… Não sei como, acordei no chão gelado, e pensei que tinham me colocado num caminhão… Eu não via nada. Fiquei esperando alguém vir me buscar, mas então ninguém veio. Nisso eu ouvi umas batidas e uns gritos, mas estava muito longe. Eu ouvi umas batidas no metal e achei que os bombeiros estavam vindo me tirar de dentro do caminhão. Eu fui andando na direção do barulho, mas não via nada. Aí parou e eu não sabia o que fazer. Eu andei muito e vi que não podia ser um caminhão, pois era muito grande. Achei que podia ser uma igreja abandonada. Depois pensei que podia ser um tanque de petróleo vazio…Eu continuei andando sem rumo,  até bater numa chapa. Eu ouvi um gemido e era você aí fora… – Ela contou. E emendou logo em seguida – Ai que vontade de fumar um cigarro!

Eu achei graça dela usar a expressão “você aí fora”. Ela ainda não tinha caído na real que eu tava “dentro”.

-Bom, Mara, eu vou voltar lá na caixa do Alfredo pra contar a ele que falei com você.

-Não, não, pelo amor de Deus! Não vá embora. Fica aqui comigo. Eu tenho medo de escuro. – Ela gritou assustada. Parecia uma menina. Me lembrei como a adolescência pode ser cheia de altos e baixos. Era uma maldade uma menina tão jovem condenada como nós. Ali eu tive a dimensão da pena que certamente Alfredo sentia de mim. Talvez, por me ver tão mais jovem do que ele, ele se visse como um afortunado de ter conseguido viver tantas coisas em vida antes de vir parar aqui. Sob esta ótica, ele era realmente quem estava em vantagem.

-Mas, moço, como que a gente vai sair daqui?

-Calma, nós vamos dar um jeito. O importante é você não sair daqui. Sua caixa é bem grande, e você pode acabar não me ouvindo quando eu voltar.

-Tá tudo escuro, eu não tenho lugar nenhum pra ir mesmo. – Mara respondeu.

Voltei correndo para contar ao Alfredo a descoberta. Ele estava certo. Cada caixa continha uma pessoa. Eu corri esbaforido pela escuridão. Quando achei que ja estava chegando comecei a tradicional sucessão de assovios, esperando que ele respondesse. Depois de alguns assovios e alguma corridas adiante ou vi o inconfundível chamado de Alfredo. Fui na direção.

Quando finalmente cheguei na caixa dele, o ouvi gritar la de dentro.

-E aí garoto? Achou o cara?

-Achei!

-Achou? – Ele parecia muito surpreso. – E o que deu?

-Não era um cara. Era uma menina. Ela se chama Mara e tem 18 anos.

-Coitadinha. – Alfredo gemeu dentro da caixa.

-Pois é. Ela nem sabe que é uma caixa. Tava achando que era um tanque. – Eu disse, sentando-me junto à parede da caixa de Alfredo.

-Você demorou à beça. – Ele disse. – Minha caixa diminuiu mais.

-Sério?

-Sério. O espaço esta acabando, garoto. Mas tenho uma novidade pra te contar.

-O que?

-Eu achei uma coisa aqui dentro.

-Coisa?

-Sim… Você não vai acreditar, mas eu chutei uma coisa aqui no escuro. Quando abaixei para ver, era uma garrafa de água.

-Água?

-É… Uma garrafa de água. Mas o estranho é isso. Não tinha água, quer dizer, não nos últimos dias, pois logo no primeiro dia, eu tinha achado uma garrafa de plastico, mas ela estava pela metade. Eu tinha bebido tudo.

-Mas, de onde que veio a água?

-Eu não sei, mas acho que tem a ver com a coisa que anda por aqui.

-Seu Alfredo, aquilo era sério?

-Claro, porra! Você acha que eu sou o quê? Um doido pra inventar histórias?

-Não… Quer dizer, é que… – Eu procurava as palavras certas, mas não as achava. Alfredo cortou meus pensamentos com uma pergunta direta:

-Você sentiu, não foi?

-Senti.

-Ele está por aqui. Eu sei.  – Alfredo disse. Ele falou uma coisa meio baixa, que eu não ouvi.

-Hã?

-Chega mais perto da parede. – Ele falou.

Eu colei a orelha na parede de metal. Do outro lado ouvi Alfredo sussurrar:

-Eu finjo dormir, e sinto quando ele passa.

Senti o medo voltar com carga total. O “Mungo” não era imaginação!

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Só quero saber como a Mara vai ficar quando souber que está dentro de uma caixa que está dentro de outra caixa. Em cada parte a história vai pegando fogo, agora é esperar pela parte 7.

  2. Felipe,

    Não falo muito, mas já sou seu fã há pelo menos um ano!
    Cara, as partes 4 e 5 tão zicadas… não consigo abrir a 4 desde as 15:00hs e agora tentei abrir a 5 e tb não rolou!
    Abração,
    João

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