O experimento Carlson – Parte 2

Quando o rochedo começou a se movimentar, Morten Carlson tentou olhar pra baixo da beirada para definir se era o momento de arriscar a vida e pular da carapaça daquele monstruoso bicho.  Ele tentou se agarrar numa afloração cristalina, mas antes que pudesse tomar uma decisão segura, sentiu uma fortíssima pancada na cabeça e tudo apagou.

….

Carlson acordou sentindo um suave balançar. Custou a recuperar os sentidos. Acordou de frio. Devia estar quase zero grau. Felizmente seu traje interno estava preparado para temperaturas perigosas e compensou o calor. Havia uma centena de pequenas baratas passeando na cara dele quando acordou. Aquilo o assustou e encheu de nojo. Felizmente elas correram e se esconderam nas fendas assim que ele fez menção de se levantar. Estava tonto. Viu uma mancha de sangue onde algumas baratas corajosas ainda estavam se alimentando.  Uma pedra havia rolado e o acertou na cabeça. Carlson percebeu que havia escapado por sorte da morte. Se seu corpo tivesse pendido para o lado errado, teria desabado de cima do enorme casco, encontrado seu destino lá em baixo.
O enorme monstro ainda estava andando. Balançava de um lado para o outro à medida em que subia e descia pequenas dunas.
Carlson não sabia quanto tempo esteve desacordado, mas notou algo interessante quando olhou ao redor. Junto com ele estavam pelo menos oito rochedos errantes enormes. O que antes era uma pedra solitária na planície infinita agora se revelava uma coleção de rochas pontudas gigantes, como monstruosas conchas de pedra. Sob elas um sem número de patas ciliadas, enormes, cada uma do tamanho de um poste de rua. Essas patas andavam se movimentando num padrão matemático que lembrava os remos dos trirremes gregos. As pernas se moviam numa onda de um lado e depois de outro. Debaixo da rocha brotavam quatro tentáculos gigantescos na frente e atrás. Esses tentáculos pareciam enormes antenas. Talvez fossem patas ou alguma mutação que converteu patas em equipamentos sensoriais ou de defesa. Os rochedos mais próximos estendiam essas coisas uns nos outros, e eventualmente eles se embolavam. Carlson ficou ali tentando entender, no lusco-fusco da madrugada se os rochedos errantes estavam copulando, lutando ou se comunicando. Era difícil de saber de longe, ainda mais com pouca luz. Uma coisa parecia concreta, os enormes animais não eram solitários. Eles se juntavam em grupos, como uma manada de montanhas muito loucas. Nenhuma era igual a outra.  Carlson olhou na direção em que seguiam e viu, perto do horizonte o que pareceu ser uma cordilheira, uma serra monstruosa.
Somente quando o dia começou a clarear que ele notou que a serra era um agrupamento massivo daquelas coisas. Se sentiu como um carrapato num bisão.
Pela distância, estimou que as montanhas errantes levariam pelo menos um dia de “cavalgada” até chegar no “cluster”.
O terreno arenoso havia dado lugar a um infinito de pedras roladas, parecidas com seixos brancos enormes. Era como ser um animal minúsculo na praia.
Morten retornou para o abrigo do platô, e pegando o kit de socorro na mochila, começou a tratar seu ferimento. Derramou um pouco d’água no cabelo, pois ele estava emplastrado de sangue.

Aquilo foi um erro.

Tão logo a água derramou e escorreu pelas fendas, a pedra gigantesca parou. Estancou como se houvessem jogado uma âncora. Um monte de rochas soltas se desprendeu e rolou para todo lado.
Estava para começar um dos eventos de maior desespero em toda a fantástica vida de Morten Carlson.
O enorme tentáculo veio como que do nada, e começou a “farejar” a poça de água, com tal volúpia que Morten saltou para trás e se agarrou na beira do platô, desesperado de medo.
Como que num épico estouro de boiada, os outros rochedos que se espalhavam por uma distância de quase um quilômetro ao redor dele dispararam. Logo, eles os alcançariam em uma correria maluca, se chocando, explodindo, rachando e colidindo, o que produziu um festival de destruição e de pó e pedra voando para todo lado. Era como se as montanhas errantes ao redor tivessem detectado a água, e a água talvez fosse algo tão precioso ali, que todas as demais atacaram sem piedade o “baratão” onde ele estava alojado.
Dezenas de enormes tentáculos se estapeavam no ar. Cada um deles tinha a espessura de um poste de luz. Ser acertado por uma coisa daquela seria com certeza morte certa. Eles se atingiam como se fossem enormes chicotes peludos. A rocha onde ele estava, parecia tentar –  inutilmente – se desvencilhar, mas estava ficando cercada de outras pedras igualmente grandes. Algumas eram até duas vezes maiores que a montanha onde ele estava.  Quando deu por si, estava no meio de duas montanhas que vinham num “aperto progressivo” que parecia ser uma espécie de tática de combate.
Carlson avaliou suas chances. As pedras errantes eram muito rápidas no modo “frenesi”, saltar da carapaça e tentar correr pela areia e escapar dos rochedos certamente resultaria em acabar esmagado.
Eventualmente os rochedos conseguiam se empurrar usando as dezenas de pernas, mas isso só fazia com que elas levantassem e colidissem cada vez mais forte.
Carlson tentou se proteger atrás de um ressalto, quando viu que um baratão enorme ia colidir. Se preparou para o iminente momento do choque como quem vê um imenso navio se aproximando velozmente do outro.

Foi uma pancada excepcional.  A explosão furiosa quase o projetou no ar. Carlson se agarrou onde pôde, mas o rochedo dele balançava como um titânico joão-bobo. As duas pedras estavam agora emparelhadas, medindo forças. Ele escutou as rochas trincando ao se raspar. Os tentáculos ainda lutavam no ar, se engalfinhando. Quando a rocha abaixo dele começou a se desfazer, ele pensou que acabaria caindo entre as duas montanhas. Morten teve a certeza que não tardaria a morrer naquela confusão provocada por um ridículo tantinho de água derramada.
Foi justamente ao pensar nisso, já quase caindo para o esmigalhamento entre as duas pedras, que surgiu a solução para o frenesi apocalíptico das rochas errantes.   Ele pegou a garrafa de água e jogou longe. O mais longe que conseguiu. Tão logo a garrafa acertou o casco de um rochedo errante menor, explodiu em pedaços, lançando água para todo lado.

Pobre pequeno rochedo… Imediatamente toda a atenção das enormes pedras se voltou para o pequenino baratão, e seu casco molhado. Ele tentou correr, mas logo foi eclipsado por umas quatro outras pedras gigantes que viraram sobre ele, numa confusão tremenda de poeira, tentáculos e prosbócides malucas se chicoteando no ar.
A própria pedra que ele estava, que vinha sendo atacada finalmente se libertou dos atacantes e tentou escapar. Carlson notou que ela estava deixando um rastro marrom atrás de si. Certamente a barata havia sido gravemente ferida no embate. Isso significava que sua “carona” em direção à cordilheira das baratas estava condenada.
O monstro andou por cerca de duas horas, perdendo progressivamente a velocidade. Talvez em decorrência dos ferimentos. Parecia estar perdendo algum tipo de hemolinfa. O calor havia voltado. Era o segundo dia e o frio havia dado lugar a um calor sufocante. As pedras ao longe ainda se chocavam e o impacto das explosões ficava cada vez mais fraco. A baratona ferida andou um pouco mais e então parou. Logo, ela começou a se sacudir. Carlson notou que ela estava se enterrando novamente. Era uma eficaz tática para escapar do calor, ou talvez uma forma de usar os tentáculos gigantes para buscar água na areia profunda.
O rochedo passaria muitas horas enterrado como uma montanha, impávida na paisagem, até que a temperatura cedesse e ela retomasse sua peregrinação. Aquela era a chance de Carlson descer e explorar um pouco mais aquele bicho.
Com os impactos e a destruição causada na luta entre as pedras errantes, uma via de fácil acesso acabou sendo escavada no lado sul do casco. Grandes pedaços quebrados ainda pingavam uma gosma marrom com um cheiro desgraçadamente ruim. Era uma substância pegajosa, com cheiro de chorume. Fezes talvez?

Ele não estava muito interessado em coletar amostras daquilo.
Tratou de pegar a mochila e descer com cuidado para não escorregar na gosma fedida.
Desceu para a areia. A areia era um tipo de regolito esbranquiçado. Parecia o solo lunar. O solo era formado por seixos de dois a três centímetros, quase sempre redondos.
Morten Carlson afastou-se do casco e caminhou com dificuldade pelo regolito, tentando estimar qual seria a dificuldade de prosseguir a pé. Ele havia gastado uma das garrafas de água da mochila, mas ainda havia sobrado outras duas, e ainda tinha um microgerador de água na mochila. evava seis horas para gerar um litro a partir da compressão da umidade do ar. O filtro também era capaz de filtrar qualquer tipo de água, fosse salobra ou contaminada.
Morten abriu os painéis solares da mochila afim de carregar as células de combustível. O período de noite no planeta ele ainda não sabia por causa da pancada, mas por via das duvidas, achou melhor carregar as células ate porque estava gastando bastante energia com o aquecimento corporal durante a noite. Consultou o relógio no traje e viu que esteve desacordado por seis horas. O dia do planeta era aproximadamente a metade do dia na Terra.
Morten estava montando os painéis quando notou uma fraca, mas crescente perturbação no solo. Era como um ruído de baixa frequência. Pensou que talvez fosse uma comunicação da barata, como os elefantes fazem na África, batendo o pé no solo. Mas não era.

O som cresceu de intensidade e ele notou que já parecia um pequeno terremoto, deslocando os regolitos sob seus pés. Morten se levantou e olhou ao redor. Assustado, notou que a enorme montanha onde há poucos minutos ele estava cavalgando agora estava sendo tragada para um enorme, colossal buraco, que já parecia ter o tamanho de um campo de futebol. O buraco estava se abrindo sob a criatura, que tentava inutilmente se agarrar, agitando feito luca aqueles tentáculos e montes de perninhas. Mas o solo era todo formado por aquelas bolinhas que pareciam bolinhas de gude.

Morten Carlson sabia o que aquilo significava, porque já havia visto uma criatura na Terra que caçava daquele jeito.
Por saber o que esperar, ele tinha a dimensão do que aconteceria com ele também caso não corresse o mais rápido que pudesse para longe. O buracão estava se expandindo rapidamente, tragando as pedras para o centro.  Com toda certeza havia uma criatura enterrada no solo, uma caçadora de emboscadas.  Morten disparou a correr feito louco naquele solo desgraçado. Seu baixo peso atuava a favor dele.
Ele correu por ceca de dez minutos para o mais distante que podia.
Tão abruptamente como surgiu, o buracão agora se fechava. E se fechava ao redor da baratona. Ela estava sendo engolfada por enormes patas monstruosas, que puxavam a criatura para debaixo da areia.

Morten parou de correr e ficou olhando assustado. Não só estava exausto, a ponto de desmaiar de calor e sede como estava petrificado de medo. Talvez, ao correr no deserto, corria o risco de acordar algum outro “caçador de emboscadas”.

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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