O crânio – Parte 8

-E agora Bruno? – Perguntou Gui, sorvendo o restinho do milkshake do fundo do copo com um sonoro barulhão.
-Agora não sei. Mas ele arrumou o emprego, pelo menos.
-Mas oitenta mil nos juros do cheque especial vai ferrar tudo. Duvido que ele ganhe para sair do buraco no emprego novo.
-Acho que ele vai ganhar menos do que ganhava na firma antiga… Mas pelo menos já não ta mais aquele climão lá em casa. Tinha que ver ele.
-Coitado cara.
-Meu… Tá ligado que foi a caveira?
-Hã?
-A caveira. Eu pedi a ela o emprego. Minutos depois ligava a dona lá.
-Porra cê ainda acredita nisso, cara? Tu é um merda mesmo…
-São fatos. Contra fatos não há argumentos!
-Então por que você não vai la e pede pra virar macho? Ei tu não vai querer o restinho não? Passa pra cá! Hummm. Odeio flocos. Não sei pq você pede flocos…
-Fala sério, porra. Deixa de ser folgado, Gui. Porra tô enjoado…
-Tá. Falando sério agora, meu velho: Vai em casa e pede para ganhar na porra da loteria, seu jumento!

Bruno comeu mais duas batatas fritas e ficou em silêncio olhando para Gui. Gui sorria com uma cara engraçada.

-Ei. Tá certo, hein?
-Ah… Não vai dizer que vc vai pedir pra ganhar na loteria mesmo? Bom, então pede para eu ganhar também! Vamos jogar? Vamos? Vamos? Jogamos o mesmo numero aí tu pede. Eu pago aqui, tó! – Disse ele estendendo uma nota de dez reais para Bruno.
-Vou pedir mesmo!
-Isso, pede! Vamos botar pra fuder!
-Tá, vamos!

Os dois levantaram da lanchonete e correram pelo shopping. Havia uma lotérica no andar de baixo. Mas ao chegarem lá ela já estava fechada.

-Porra, acabou de fechar. Lá se vai minha sorte.
-Mas não tem galho! A gente joga e pede amanhã! E… Ah. – Disse Bruno.
-Ei, ei. Cara que foi? Que foi? Bruno? Bruno?

Bruno caiu pesadamente. Bateu violentamente a cabeça no chão. Várias pessoas vieram correndo para ajudar.
-Bruno! Bruno! – Gritou Gui, tentando acordar o amigo.
Logo um médico apareceu no meio do povo.
– Sai, sai! – Gritou.
O médico pegou o braço do Bruno. Mediu com a mão a pulsação.
-Ele desmaiou. Chamem uma ambulância. Abre espaço aí. Abana aí dona! Mais forte, minha senhora! Ele é epiléptico? – O médico perguntou para o Gui. O rapaz negou com a cabeça. Disse ao médico que Bruno estava seriamente doente. O médico fez uma expressão de preocupação quando ouviu o que Gui contou a ele.

-Acho que ele vai internar. – Disse o homem de branco. – Avisa a família! Logo depois o médico foi embora.

-Puta que o pariu! – Gemeu Gui, já pensando em como ia falar com Dona Sandra.

Bruno lentamente recobrou os sentidos. Tentou se sentar, mas as pessoas não deixaram.
– Espera que tá vindo os socorro! – Alguém disse.
-Socorro?
-Você desmaiou cara!
-Porra. De novo? Eu tô enjoado. Acho que vou vomitar.
-Deita, deita aí. Respira. – Disse Gui, enquanto fuçava no celular.
-Tá ligando pra onde o viadinho?
-Pro disque sexo… Lógico que é pra tua mãe!

Bruno arrancou o celular da mão do Gui. – Me dá essa porra aqui!
-Ei!
-Porra, eles estão numa boa pela primeira vez desde sei la quando e você vai ligar pra minha mãe pra foder o clima dos véio? Tá maluco? Quantas vezes você já me viu desmaiar, ô seu gay?
-Mas cara. O médico disse que…
-Que médico? Que médico?
-Um que veio passou aqui… E…
-Ah, vai a merda, porra. Ei, me larga, me larga! Tô bem já.
-Calma gente, deixa ele! Ele teve só uma queda de pressão. Calma pessoal! – Gritou Gui para a pequena multidão que o cercava, vendo que Bruno ia levantar de qualquer jeito. -Vamos, te levo pra casa, cara. – Disse ele, ao amigo.

Quarenta minutos depois, Gui e Bruno chegavam na casa dele. Gui mandou Bruno deitar.
-Deita no sofá mermo!
-Ung, porra que enjoo do caralho. Tô quase devolvendo o Big Mac.
-Tá russo ainda?
-Tá. Tô bem zonzo ainda, véio. Ainda mais você dirigindo daquele jeito o bat-movel. Mas eu não ia entrar numa ambulância nem fodendo.
-Cara a gente tinha que ir pro hospital.
-Tá, tá. Amanhã eu vou cara. Não vou morrer de véspera.
-Cara isso é coisa séria, meu. A galera fica bolada com você, Bruno. Essas porra que tu faz… Só te metendo a porrada nessa fuça feia mermo.
-Olha quem fala. Tu parece um Exu!
-É mas na hora da merda, tô lá contigo. Ih, olha só… – Gui pegou alguma coisa no criado mudo. Estava sobre a pilha de correspondências cheia de contas e cobranças.
-Que isso?
-Um bilhetinho. Cartinha de amor? É da Bia! Sente o perfuminho.
-Dá aqui, porra.
-Toma.

Bruno pegou a cartinha. Leu o que estava escrito.

-E aí? E aí?
-Não entendi nada.
-Hã?
-A Bia e sua mania de escrever em francês, meu. Ó.

Et si tu n’existais pas
J’essaierais d’inventer l’amour
Comme un peintre qui voit sous ses doigts
Naître les couleurs du jour
Et qui n’en revient pas

Bia

-A Bia é foda, Brunão.
-Por isso que eu…
-Tá de quatro.
-Tipo isso.
-Bota no celular aí que vc descobre o que quer dizer.

Bruno pegou o celular e digitou.
-E aí? – Perguntou Gui.

-E se você não existisse;
Eu teria que inventar o amor;
Como um pintor que vê sob seus dedos;
Nascerem as cores de um dia;
E que não voltam mais;
Bia

Gui pulou do sofá e caiu sentado no tapete da sala.
-Ca-ra-lhows! Tu comeu muito bem comida! Francamente!
-Ó o respeito, ô seu puto!
-Nada a declarar. Muita moral. Se a mulher escreve um negócio desse aí pra mim eu também rastejo feito uma lesma atras dela igual você cara! Agora eu te entendo.
-É… – Disse Bruno, jogando o celular na mesinha de centro.
-E aí? A tonteira?
-Sei lá. Ainda tô meio fodido…
-Cara… Vou perguntar uma parada óbvia. Nem precisa responder, que eu já sei que sendo burro igual você é, não fez.
-Quê?
-Já pediu pra porra da caveira lá pra você ficar bom?
-…
-Pela tua cara já vi que não. Porra… Ele pensa na prova, na namorada, até no emprego do pai e ta aí todo fodido com essa merda no sangue. Se precisasse dum nego burro, você não servia.
-Cara não pedi não.
-Bora pedir?
-Mas e a loteria?
-O que você acha mais importante? Resolver SUA saúde ou ganhar dinheiro que você pode ganhar depois de amanhã?
-Saúde.
-Bora lá. Vem, te ajudo. Vai, porra bota força aí mané!

Gui levantou Bruno do sofá. Foram até o quarto. Bruno sentou-se na cama e Gui ficou em pé ao lado da estante, olhando a caveira de pedra em seu pequeno altarzinho.

-E aí? Como é o ritual? O que vc faz?
-Eu pego ela, boto no colo, olho nos olhos dela e peço mentalmente.
-Sério? Não rola nem um pentagrama? Nem umas velas? Nem uma gostosa nua?
-Não.
-Assim não tem graça!
-Mas é desse jeito que funciona. Passa ela aí.
-Mas eu posso pegar? Será que não afeta?
-É… pode crer. Talvez afete, né?
-Pega você. Não vou botar a mão nessas merdas não.
-Cagão.

Bruno se levantou da cama com dificuldade. Pegou a caveira e olhou nos olhos dela. Por um segundo ele concentrou-se nas bolas brilhantes de vidro iluminadas pela luz da lâmpada do ventilador de teto. Ele pediu para ser curado. A luz gradualmente foi sumindo e somente o brilho ocupou sua visão e então lentamente se apagou também.
Bruno desabou no meio do quarto, com caveira e tudo. O crânio bateu no chão e quebrou os olhos.

-Bruno! Brunooo! – Gritou Guilherme em pânico. -Volta. Bruno! Bruno! Olha pra mim. Bruno! Volta! – Ele sacudia o amigo, sem sucesso.

Bruno estava num lugar escuro. Andou sem saber onde estava. Era um completo silêncio. Parecia um vácuo. Ele abaixou-se e tocou o solo. Era frio. Parecia ferro. Sentiu nos dedos uma espécie de poeira. Tinha cheiro de poeira.
Não se via absolutamente nada.

-Ei? – Ele gritou. Mas não houve resposta e nem eco.

-Eeeeei? – Nada.

Que lugar era aquele? Como ele foi parar lá?

Bruno saiu andando em meio a escuridão, sem saber onde estava… À medida em que andava, foi sentindo mais e mais medo. Ele se lembrou com dificuldade de estar no quarto, e de ter seu amigo ao seu lado. De olhar nos olhos da caveira.
Então, enquanto andava sem saber para onde ia, os braços esticados para frente, imerso na mais completa, abissal e assustadora escuridão, ele teve um calafrio que se cristalizou numa angústia profunda, e após hesitar em balbuciar, ele finalmente gemeu o que o afligia como uma navalha lhe cortando o coração:

-Puta que pariu. Eu morri!

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Se um dia eu acordar num lugar escuro eu vou ter certeza que estou na maldita caixa, me deitarei na posição fetal e irei chorar como um bebê até que o Mungo me pegue!

    porra Philipe, se o Bruno tá na caixa e o Leonard esta a beira da morte, então o Bruno tá fodido!

    obs: Você tem uma coisa com essa caixa hein? Já esteve lá?

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