As crianças da noite – Parte 20

Os três saíram da casa.
Rogério estava cabisbaixo.
Andaram durante um bom tempo em direção ao metrô e nenhum deles tinha coragem de dizer uma palavra. Todos pareciam ter as mentes fervilhantes de perguntas e pensamentos. Foi só na entrada da estação que Aesh Pandraj olhou o cálice de ouro nas mãos de Leonard e disse.
-É lindo.
-É sim.
-Lindo mesmo. Parece bizantino. -Eles concordaram. Tinha dado um vácuo. Um silêncio. Ninguém parecia querer tratar dos assuntos que ouviram da boca da velha naquela casa esquisita.
-Tá bem tarde. – Disse Rogério, olhando o relógio.
-Pois é. – Respondeu Leonard, olhando na direção do túnel escuro por onde não se via nem sinal do metrô.
-Escute, senhor Rogério… -Disse Aesh, batendo a mão no ombro dele.
-Sim?
-Aquilo que aconteceu lá…
-Tá tranquilo.
-Tranquilo? Ela disse que você vai morrer, meu.
Leonard apenas olhava os dois. Aesh se virou para Leonard e perguntou:
-Senhor Leonard, aquelas duas… Elas sempre acertam?
-Não. Nem sempre. Já erraram duas vezes comigo.
-Mas afinal, o que diabos foi aquilo? – Perguntou Rogério.
-Bom, como vocês viram, é uma entidade sobrenatural. Ela é imortal, mas esta presa no corpo da criança pela eternidade. A velha é apenas um corpo sem nenhum controle de suas funções. A criança controla o corpo.
-Cruz credo! -Rogério se benzeu.
-Pense nelas como um indivíduo em que o corpo segura o cérebro no colo.
-Mas e aquele papo sobre Leraje… Lua de sangue… O que foi tudo aquilo? – Perguntou Aesh.
-Lua de sangue é como chamam o eclipse da lua. O eclipse, principalmente o da lua tem impacto direto entre as criaturas e habitantes de diversos planos. Já o Leraje, é um demônio. Eles vivem em guerra. Só idiotas pensariam que demônios viveriam em paz. Eles estão sempre, o tempo todo em uma guerra permanente pelo domínio da escuridão. Não podem evitar, é sua natureza. Já dizia o meu mestre que a guerra permanente dos demônios foi um presente de Deus para a humanidade, pois concentrados uns nos outros, sobra pouco tempo da atenção deles para nós.
-A questão que levanto é se a velha disse a verdade ou ela disse apenas o que devemos pensar que é a verdade. Aquela última coisa que ela falou… Sei lá.
-Sobre a Luma não iria gostar de pegarmos a mãe dela de volta? -Perguntou Rogério

-Não sei se saberemos o que ela quis dizer exatamente até a hora fatídica chegar. -Respondeu Leonard. -Ela ficou bem impaciente no final… É sempre assim.

O metrô chegou na estação deserta e eles entraram.

-Posso ver o cálice? – Perguntou Rogério.
-Toma.
-Parece antigo. Isso deve valer uma fortuna. – Disse Aesh.
-Certamente que vale… -Respondeu Leonard, e retomando o assunto, se virou para Rogério e perguntou: – E então? O que você quer fazer?
-Vou encarar.
-Vai? -Leonard parecia surpreso.
-Vou. Acho que se isso aconteceu foi porque eu não estava lá. Eu estava fora, deixei as duas desprotegidas. De uma certa forma, eu me sinto culpado pelo que aconteceu a elas.
-Você que sabe.
-Quando quer fazer?
-Vamos fazer logo de uma vez. -Ele respondeu.
-Certo. Vamos fazer no seu quarto, no hotel.
-Bem, senhores… Eu creio que talvez não precisem mais de mim. Gostaria de ir para casa. Já está tarde e…
-Tudo bem, Aesh. Muito obrigado por sua ajuda. -Respondeu Leonard.

Eles continuaram a conversar sobre os caras da gangue até que o metrô chegou na estação perto do hotel.
-Vamos nessa! – Disse Leonard.
-Eu vou deixar meu carro lá em frente ao hotel. Amanhã eu passo para pegar ele. Vou aproveitar o metrô. -Disse Aesh.
-Um abraço. Muito obrigado pela ajuda, Aesh. -Disse Rogério, despedindo-se do indiano de turbante.

Leonard e Rogério saíram e acenaram para Aesh. A porta se fechou e o trem saiu.

Os dois já estavam quase chegando no hotel quando notaram um carro de polícia parado em frente.
-Opa. Espere! -Disse Leonard, segurando o braço de Rogério.
-Hã? O que foi?
-Ali… Tem polícia na porta do hotel. Devem ter ido atrás de você.
-De mim?
-Devem estar achando que você matou o homem na sua casa.
-O investigador? Mas não fui eu. Foi… Foi aquela… coisa.
-Quer que eles acreditem nisso?
-E o que fazemos então, Leonard?
-Não sei… Deixe-me pensar. Deixe-me pensar…
-Mas e se não for? E se os policiais estão ali por outro motivo?
-Você vai pagar pra ver? E se te prendem? Como você vai trazer a Regina de volta?
-É… Tem razão. Que tal a porta dos fundos? Sempre tem uma porta nos fundos.
-Esquece garoto. Isso só funciona em filme. Olha, vamos fazer o seguinte. Tá vendo a marquise aqui? Eu te ajudo a subir ali naquele poste. Dali você pula na marquise e vai por cima até ali atras do letreiro. Eu entro e vou no segundo andar, abro a janela e você entra.
-Parece um bom plano.
-Tira esse paletó e pisa aqui! – Disse Leonard juntando as mãos para ajudar Rogério a subir no poste.
Rapidamente ele saltou para o poste. Agarrou-se num ferro e dali passou para a marquise.
-Ok! Vai lá! – Disse ele fazendo um sinal positivo com o polegar.

Leonard foi até o hotel. Chegou ao balcão e perguntou se havia quartos vagos.
-Tem reserva?
-Infelizmente não… Mas tenho o mais importante, o dinheiro! – Disse Leonard, tirando um bolo de notas de cem e colocando-as sob o balcão de madeira escura.
-Sem problemas, senhor. Só um minuto.
Enquanto o encarregado da recepção pegava as fichas, Leonard olhou os dois policiais sentados no saguão. Estavam de olho nele.

-Boa noite. – Disse Leonard.
Os policiais não disseram nada, apenas acenaram com a cabeça.

Leonard se virou para o rapaz da recepção e sussurrou:
-Que isso ali? Segurança?
-Tivemos um problema com um hóspede… A polícia ta caçando ele em tudo que é lado. Acho que é maluco, pois o vigia me disse que ele andou correndo quase pelado no corredor ontem.
-Esse mundo está cada dia mais maluco, meu jovem. Quanto lhe devo?
-Aqui está. – Disse o rapaz, mostrando a cifra na notinha com a ponta da caneta.
-Sete, oito, nove… E dez. Tome. Pode ficar com o troco.
-Muito obrigado, senhor. tenha uma boa estadia. Tem bagagem?
-Não, não. A bagagem chega amanhã. – Disse Leonard.
-Wilson, leve o senhor Leonard até o seu apartamento. Suíte 608. -Disse o jovem ao rapaz da recepção.
-Não, não precisa. Pode deixar. Eu vou sozinho. -Disse Leonard, dispensando os serviços do rapaz. – Aqui. Tome. – Disse Leonard, dando uma nota de cinquenta para o jovem.
-Obrigado senhor! Tenha uma boa noite.

Leonard pegou o elevador. Apertou os botões seis e o dois. Desceu no segundo andar.

Ele foi até o salão de jantar. Certificou-se que estava sozinho.
Leonard levou um susto quando ouviu uma batida. Era Rogério junto á janela.
No fim do salão estavam as janelas. Antigas, enormes. Deu um pouco de trabalho mas Leonard conseguiu destrancá-la e Rogério finalmente entrou.

– Ufa, que demora, hein? Tinha barata lá fora!
– Desculpe garoto. Eu fui o mais rápido que pude. Bom, vamos lá pro quarto. -Disse ele já se dirigindo para o elevador.

Os dois chegaram no quarto de Rogério.
-Quer beber alguma coisa?
-Me dá esse uísque ali. – Disse Leonard, apontando a garrafinha sobre o frigobar.
Rogério pegou e jogou para Leonard. Abriu o frigobar e pegou um refrigerante.
-Aqui está… A última Coca-cola da minha vida. -Disse Rogério, fitando a latinha vermelha super gelada.
-Bom… Estou pronto. Quando quiser, me diga. -Disse Leonard, após mamar o uísque da garrafinha.

-Tudo bem. Vamos lá. Como que faz?
-Deita aí na cama. Estica o braço. -Respondeu Leonard, puxando a manga da camisa social do rapaz. -Tudo bem?
-Tudo.
-Vamos precisar de um fogo. Ah, já sei. A lixeira banheiro! -Disse Leonard pegando o cesto de metal.
Enquanto Leonard picava o jornal em pedaços dentro do cesto, Rogério bebia os últimos goles do refrigerante.
-Ei Leonard! – Disse Rogério, interrompendo o trabalho.
-Sim?
-Ali! -Disse ele, apontando o detetor de fumaça no teto.
-Opa! Um contratempo. Se acendermos isso esse treco dispara o alarme.
-Temos que nos livrar dele. Me dá seu sapato!
-Meu sapato?
-Cala a boca e me dá logo, porra! – Disse Leonard, impaciente.
Rogério tirou o sapato de couro. Entregou ao Leonard, que subiu na cama e começou a desferir sapatadas em direção ao teto. Na terceira tentativa, ele atingiu em cheio o aparelho, que se despedaçou.
-Será que pifou mesmo? -Perguntou Rogério olhando os pedaços caídos sobre a cama.
-Bom, pelo menos o alarme ainda não disparou.
-E o que a gente faz agora?
-Agora eu vou colher o seu sangue. Vou tacar fogo no papel e vou jogar lá…
-É muito sangue… Né?
-É sim. -Disse Leonard, cabisbaixo. -Você precisa ter certeza disso. Pode deixar como está e tocar sua vida sem ela.
-Não. Eu estou certo. Eu quero fazer isso. -Disse Rogério, decidido. -Só que…
-Só que?
-Eu não imaginei que fosse acabar assim. É triste isso. Talvez eu nem a veja.
-É… Eu não sei nem o que dizer. Tem que ter coragem para fazer isso.
-Leonard, diga a ela que a amo e sempre amarei. – Disse ele, antes de fechar os olhos e deitar na cama.
-Eu digo. Olha… Tem uma coisa. -Leonard falou, procurando algo no bolso interno do paletó.
Depois de um tempo remexendo puxou um saquinho de pano preto. Ali estava cheio de coisinhas. Pareciam moedas.
-Que diabo é isso?
-Umas tranqueiras… Não importa. Deixa ver se eu acho aqui. Calma aí…
-O que foi?
-Tome. Coloque essa semente aqui debaixo da sua língua. Ela tem gosto ruim, já aviso logo.
-Hung, tem gosto de merda!
-Aguenta que isso vai fazer o seu sangue fluir direto. Vai tornar nosso trabalho mais rápido.
-Certo. Vamos logo com isso! – Disse Rogério fechando os olhos com força.
Leonard pegou uma navalha no banheiro e veio até o lado da cama.
– Já parou de sentir o gosto? Quando parar, avise.
– O sabor de merda tá diminuindo.
– Tá ficando doce?
– Tá sim.
– Chegou a hora. Essa é sua última chance de desistir, garoto.
– Corta logo, porra!
Leonard não disse nada. Agarrou com força o braço de Rogério. Sentiu como o rapaz tremia. Ele não queria admitir, mas estava morrendo de medo. Com cuidado, ele fez dois talhos, em forma de uma cruz sobre o pulso de Rogério.
-Huuung! -Ele gemeu.
-Tudo bem?
-Hum-hum!
O sangue começou a verter em profusão, pingando no carpete creme do quarto.
Leonard pegou o cálice sobre a cama e colocou no chão, amparando o fio de sangue que descia. O cálice enchia rapidamente.

Leonard pegou um isqueiro e acendeu o jornal dentro da lixeira. O fogo crepitava, iluminando o banheiro de uma cor laranja.
Ele disse: – Marenka, Marenka, Marenka… Eu exijo que liberte a Regina. Em troca lhe damos os sete cálices de sangue, como nossa oferenda.
Leonard pegou o cálice cheio do sangue e derramou no fogo.
Voltou até Rogerio que estava na cama com o braço a verter uma poça de sangue escuro no carpete.
-Como está indo? – Ele perguntou de olhos fechados.
-Estamos indo bem. Já foi o primeiro. Só faltam seis!
-Estou sentindo calafrios.
-É assim mesmo. Relaxa.
Leonard encheu o segundo cálice com o sangue de Rogério.
Levou até o cesto em que ainda crepitava o fogo.
-Marenka, Marenka, Marenka… Receba o segundo cálice do sangue, em troca de Regina. Eu exijo que Liberte Regina!

Leonard voltou até Rogério: -Ainda está aí?
-Ssssim… Eu… Es-tou. – Disse ele, gemendo. Parecia lerdo. O sangue já começava a fazer falta. Leonard Soube que ele estava prestes a perder a consciência.

O terceiro cálice se enchia com o sangue quando uma batida violenta na porta os assustou.

-É a polícia! Saiam com as mãos para cima!

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Uow… eu que peguei o conto pela metade e não sei a procedência de Aesh Pandraj achei que ele ia furtar o cálice e os dois só iam descobrir em cima da hora.

  2. Eu estava suspeitando que na hora que eles começassem a tirar o sangue alguma coisa ia atrapalhar..rsrs. Que azar.
    Ansiosa para a continuação!

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