As crianças da noite – Parte 12

-Fala logo, por favor!
-Ela está no além. – Ele disse. Assim, numa tacada só.
-Morreu? Como morreu? Não, eu a vi! Ela apareceu na Tv pra mim. Gritando…-Rogério começava a se desesperar.


-A morte tem muitas faces, senhor. Mas… Acalme-se. Precisamos sair daqui. Vamos conversar melhor em outro lugar, sem buzinas. -Disse o motorista, ligando o carro.

Minutos depois, os dois cruzavam um parque muito bonito, cheio de árvores.

-Sabe, a Regina gostava daqui. Vinhamos sempre no verão. Disse Rogério.
O motorista encostou o carro junto ao meio-fio e desligou o motor.
Os dois ficaram ali, em silêncio, vendo as crianças brincando ao longe. Ao fundo, as árvores amareladas de outono tornavam a imagem quase uma pintura.

-Ela morreu mesmo?
-Sim e não, senhor.
-Mas como isso é possível? -Rogério perguntou. E arrematou: -Ou está morta ou está viva.

-Errado senhor. Existe uma infinidade de estados entre a morte e o que consideramos a vida. Veja esta água. – Ele disse, abrindo o porta-luvas e pegando uma garrafa ensebada e suja, com água dentro.

-O que tem?
-Quando ela congela, ela deixa de ser água?
-Não.
-E quando ela evapora? Por acaso ela deixa de ser água?
-Também não.

O motorista de turbante riu em silêncio. Não precisava dizer mais. Rogério entendeu o ponto. Se a água, o elemento mais simples e comum na natureza tem estados, porque a morte, o mais insondável mistério existencial, teria apenas dois estados possíveis?

-O que eu faço? – Perguntou Rogério. Era uma pergunta simples e complexa. Ele realmente não sabia para onde ir depois daquilo.
-Você tem que ir atrás da sua Regina. Mas isso envolve encontrar a Ljuvbna que está com ela. Essa é poderosa e me anula. Eu não consigo saber sobre ela. Andela Dubravka, a mulher-sem-cabeça, é a chave para encontrar sua esposa. A criança da noite deve ser entregue a Ljuvbna que a possui afim de reestabelecer o equilíbrio do outro lado. -Ele disse.
-Eu… Eu não sei como fazer isso. -Disse Rogério.

-Eu conheço um homem que pode lhe ajudar. Mas…
-Mas?
-Eu não sei onde ele está. Ele viaja pelo mundo o tempo todo. Ele conhece os dois mundos.
-E como é o nome dele?
-Eu… Eu não me lembro. Já faz um tempo desde que ele me ajudou com um problema complicado na minha vida.
-Problema? Pior que o meu?
-O senhor não faz ideia de como pode haver problemas bem piores que os seus.
-Mas como falaremos com este homem?
-Eu… Bem eu não sei. O que eu posso fazer pelo senhor é guardar seu telefone de contato. Se ele aparecer, eu conto a situação para ver se ele lhe ajuda.
-Ótimo. -Disse Rogério meio frustrado por não ver uma saída imediata. -Ele sacou o cartão de visitas e entregou ao motorista.

-O que o senhor pretende fazer? -Perguntou o motorista.
-Eu não sei. Acho que vou atrás da menina da foto. Pelo menos é uma pista que eu tenho.
-Não, digo, o que o senhor pretende para o taxi? Para onde vamos?
-Ah, sim. Acho que a essa altura, o melhor seria é ir até a biblioteca municipal.
-Perfeito senhor. -Disse o indiano. Ele ligou o carro e fez meia volta, retornando ao centro.
A biblioteca da cidade ficava num imenso edifício neoclássico em frente a praça central, do outro lado da estação de trens.

Quando o taxi encostou, Rogério pagou a corrida e apertou a mão do motorista.

-Muito obrigado por sua ajuda. Tome, e pode ficar com o troco.
-Sem problemas senhor. Aqui está o meu telefone. Chame se precisar de um taxi. – Ele disse, tirando um cartão surrado do para-sol.

Os dois se despediram e o taxi partiu.
Rogério adentrou a imensa biblioteca. Foi direto ao guichê de pesquisa.
-Bom dia, senhor. Pois não? – Disse a moça de óculos.
-Eu queria pesquisar por uma pessoa. Uma pessoa falecida. Como posso fazer?
-O senhor pode consultar no terminal do terceiro andar pelos indexadores de falecimentos. -Ela disse, apontando o elevador no fim do longuíssimo corredor ladeado de estantes.
Rogério agradeceu e pegou o elevador.
Ao chegar no terceiro andar, pediu ajuda à bibliotecária do setor, que lhe guiou até uma salinha com um computador. Ela mesma fez a pesquisa para ele.
-O nome?
-Ah, sim. O nome é Alice Koeher.
-Tem mais alguma informação? O sistema cruza os dados em busca de qualquer coisa associada ao nome. O que o senhor tiver, ajuda a refinar a pesquisa.
-Ela era irmã de Melissa Koeher. Tinha mais outra que não sei o nome.
-Ok, deixe-me ver aqui. Só um minuto que o sistema hoje está lento, caindo toda hora. E se der certo, aproveite, pois logo cedo a luz aqui estava caindo toda hora. Quase que a biblioteca não abriu.

O computador ficou rodando a ampulhetinha durante longos e intermináveis minutos até retornar um monte de resultados contendo o sobrenome Koeher.
A maquina refinou a primeira busca apontando os documentos que continham os nomes de Alice e Melissa Koeher. O resultado apontava o numero de um microfilme.
A bibliotecária anotou num papelzinho os números dos documentos, e minutos depois, voltou com uma caixa contendo alguns livros e os microfilmes.

Durante horas Rogério buscou por notícias relacionadas aos Koeher. Ele descobriu as referências ao incêndio na mansão. Ele teria sido causado por uma vela acesa. Harry Koeher Gratz era o empresário rico do setor ferroviário, que estava viajando quando soube da morte de suas filhas.
Somente uma de suas filhas havia sobrevivido ao incêndio, sendo retirada dos escombros em chamas por um de seus empregados. Melissa Koeher havia sobrevivido por milagre, mas suas irmãs ficaram carbonizadas.
Koeher nunca se recuperou daquele baque. Mas havia uma informação curiosa. Outro jornal, dois anos após a tragédia, relatava que Harry Koeher vendera uma parte de seu negócio para investidores ingleses e havia se mudado para a Nova Inglaterra, levando consigo sua filha Alice Koeher.
Os dois jornais não traziam fotos, mas davam a clara noção que o palpite do motorista estava correto. Melissa Koeher, a menina da foto, havia sido sacrificada para trazer de volta à vida sua irmã, que era a preferida de Harry.
Provavelmente, a foto de Melissa era a última foto da menina.
A maior parte das citações envolvendo os Koeher terminava com notícias dos negócios da empresa. Eram notícias sem grande importância, mas então, Rogério se deparou com a fotografia de Harry Koeher Gratz.

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Era uma foto de Aunspach, datada de 1892. Ali estava ele. Um homem jovem, com um cavanhaque comprido e dois olhos muito claros perdidos no vazio. Era ainda assustador ver um homem sabendo que ele havia matado sua filha mais velha para trazer de volta à vida sua filha do meio. Teria valido à pena?

Rogério ficou ali, observando a foto de Aunspach quando um estranho vento frio lhe atingiu a nuca.

Ele teve medo de olhar, mas sua visão periférica deixava ver uma estranha e fantasmagórica forma atrás de si.

Rogério tentou conter o medo e virou-se de súbito, afim de encarar quem quer que fosse que estivesse atrás dele. Mas não havia ninguém. Surpreendentemente, a salinha de consulta estava vazia.

Então, um movimento inesperado chamou-lhe a atenção. Ao fundo, entre as estantes de livros, na penumbra da enorme biblioteca passou aquele corpo sem cabeça.

Rogério teve um calafrio imediato. Ela estava lá. Estava vagando entre as prateleiras. Talvez aquilo quisesse dizer alguma coisa.

Ele se levantou e saiu da salinha, indo direto para a seção de livros antigos. Vagava pelos imensos corredores repletos de livros. O cheiro era de mofo e poeira. Estante após estante, não havia sinal daquela figura horrível de mulher sem cabeça.

Ele estava andando, olhava entre as estantes, em busca do vestido preto. Não se ouvia passos. O terceiro andar era um deserto tenebroso, cheio de livros antigos e iluminação ruim. A reforma da biblioteca feita dois anos antes não teve verba para chegar ao terceiro andar e se concentrou nos dois primeiros, onde realmente havia movimento.

Rogério seguiu até o fim do corredor, quando as estantes que formavam um complexo labirinto se afunilavam. Ali ele percebeu que estava num beco sem saída. As estantes terminavam umas nas outras. num hexágono de prateleiras com livros escuros de capa de couro. No lugar não havia ninguém.

Rogério pensou em voltar e se virou para sair. Mas então, ele começou a sentir uma profunda angústia que corroeu sua alma. O frio na espinha voltou. Ele teve medo de olhar para trás. Mas ouviu o inesquecível farfalhar do vestido antigo.

Quando ele olhou para trás, lá estava ela, vindo na direção dele com aquelas mãos brancas e magras.

…E então a luz apagou.

 

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Tenso demais, já falei que esse é o seu conto mais assustador né? Philipe, da próxima vez que demorar assim pra postar o próximo capítulo, manda uma mensagem para os leitores dizendo que não foi pego por uma Ljuvbna rsrsrsrs. Ótimo capítulo, ansioso pelo 13º capítulo.

  2. “-Eu conheço um homem que pode lhe ajudar. (…)”
    “-E como é o nome dele?”
    “-Eu… Eu não me lembro. (…)”

    Mas nós lembramos!

      • Philipe, o conto está interessante, mas, sinceramente, não consigo entender algumas reações dos demais leitores fiéis. Sim, é curioso (prefiro ler à noite, sempre que possível. Foi o que fiz com o conto da caixa, para entender alguns comentários) mas… só isso. Curiosidade, apenas. Não consigo sentir “medo” na história.
        Para mim, é uma ficção como outras tantas. Sem desmerecer o crédito do autor, claro, mas acho que não me “desligo” da realidade o suficiente, para “entrar” na história. Nunca tive medo dos mortos (ou seja lá qual for o “estado” deles). Sempre tive – e tenho – medo de alguns “vivos”.
        Deve ser por isso que sou fã de um certo vulcano orelhudo, lógico ao extremo, e que sempre saúda: “vida longa e próspera!”.

        • Acho natural. Algumas pessoas vivenciam mais a fantasia que outras. Uma vez li um livro do stephen king e não senti medo algum tb, mas o cara é aclamado como o “papa do terror”. Mas por outro lado, ja senti medo vendo filme e até em videogame. Acho que é uma questão de imersão, sei lá.

          • Também sou fãzaço dele, mas não sinto medo com seus livros, nem com os filmes decorrentes deles. Sustos acontecem, os sentidos parecem enganar, mas, terminado o filme – ou o livro – restam apenas as lembranças.
            A propósito, lí o conto da Caixa, para entender alguns comentários dos colegas, e não pude deixar de notar algumas coincidências:
            A faca de quatro lâminas, com uma cabeça, lembra a “phurba” do filme “a batalha de Riddick”;
            As transições entre este mundo e o “mundo de lá” – o da caixa – lembram o seriado “Fringe”, com seu universo paralelo;
            O tal Leonard, que transita entre mundos, me lembrou o filme “Constantine”.
            Serão meras coincidências – existem outras – ou foram inspirações para o desenrolar da trama?

          • Bom, eu nunca vi Fringe, e nem li o constantine, e só vi, mas não lembro de como era A batalha de Riddick. Eu me inspirei num tipo de punhal ritualístico do Tibet. Talvez eles tb.
            O Leonard foi sendo criado aos poucos. Ele apareceu primeiro como um cara que seria um louco mas que não era em “O caçador”. Depois em “A busca de Kuran”, ele apareceu na juventude, numa expedição ao deserto da China. Na Caixa ele estava velho. A caixa se passa já bem recente, e podemos ter um pouco mais de ideia de quem é o Leonard. Mas creio que as coisas sobre ele e sua ordem mística ainda estarão mais claras no próximo conto do caçador, que se passará na Segunda Guerra Mundial.

  3. Queeee medooo, nossa, credo ainda bem que isso é um livro, pq se fosse eu iria borrar as calças cair e esperar a morte kkkkkkkkkkkkkkkk creedo!!!!!!!! Muito bom fhilipe!!!!! =D

  4. Leonard é o pica das galáxias! Vai chegar nessa burxa biscate, dar uma bicuda, e falar, “arranca esse vestido preto que você é moleca!”.

  5. Quem será o tal homem misterioso que irá ajudá-lo hein???
    Eu tenho um palpite fortíssimo e acho que todos já sabem também…
    sdauhsdauhsdhusdahuhsdahusda

    Muito bom o conto Philipe…

  6. Phillipe, tem uma periodicidade para vc publicar esses contos? Comeceis. Ler ontem e na verdade não notei se vc faz isso semanalmente ou quando acha q tah legal. Sinceramente, a pior parte é esperar pelo próximo capítulo.
    Está sensacional isso. Vou ler “A caixa” pois aqui tem muitos comentários sobre ele.

    • O certo mesmo seria Todo dia ter, mas é que nem sempre eu consigo e tempo necessário para escrever o conto. Eu publico ele imediatamente após escrever (e nem reviso antes) eu já reviso com ele publicado, pra aumentar a adrenalina. Atualmente a periodicidade é “quando dá”. Provavelmente a parte 13 farei hoje. Espero consegui fazer ela até de noite. Eu tb tento intercalar, pq sei que embora muita gente esteja seguindo o conto, tem muitos leitores que naõ estão, assim, de vez em quando eu pauso ele e posto posts “stand alones”.

      • Sem contar que a espera aumenta a ansiedade, e “prende” ainda mais o leitor fiel, certo? Como dizem os pescadores: para pegar o peixe, não se pode deixar a linha frouxa, para não sair do anzol, nem esticada demais, para ela não arrebentar.

  7. Olha aí! Tentar pegar a mulher sem cabeça lá no hotel tinha tudo pra dar errado. Ela não gostou de ter que pular a janela pra fugir dele e agora quer se vingar!

  8. -Eu conheço um homem que pode lhe ajudar. Mas…
    -Mas?
    -Eu não sei onde ele está. Ele viaja pelo mundo o tempo todo. Ele conhece os dois mundos.
    -E como é o nome dele?

    Nem posso imaginar!!!

  9. Leonard, Leonard, Leonard!!!! Pomponzinhos no ar torcendo pra ele aparecer!!!!! Ele é o Chuck Norris do Mundo Gump!!!!
    Bjos
    Juju

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