Histórias do Mundo Gump ( para Irmão Fabiano)


Aqui começa nosso segundo episódio das Histórias do Mundo Gump. O Irmão Fabiano não deu colher de chá. A imagem mostra duas silhuetas de pessoas comendo, uma garrafa sobre a mesa. Nada mais. È uma pintura, e não sei se vale pintura, porque eu tinha pensado que seria só com fotos, mas vamos tentar assim mesmo. Vou fazer este em estilo roteiro. Lá vai:


A ENCOMENDA

RESTAURANTE ITALIANO – EXT. DIA

Um velho vem caminhando por uma calçada. Para na frente de um restaurante italiano. No letreiro, em letras garrafais está escrito “Cantina di Capri”.

O velho tira um pequeno papel do paletó, confere o nome. E entra no restaurante.

RESTAURANTE ITALIANO – INT. DIA

O velho para na porta do restaurante. O interior lotado de msas, com pessoas comendo macarronadas e canelones. No fundo do restaurante há uma senhora. Ela fuma um cigarro. O velho troca olhares com a velha. Ela não apresenta nenhuma reação, mas move levemente a sobrancelha direita.

O velho sorri e esgueira-se pelas mesas até alcançar a mesa no fundo, onde está a velha senhora, que agora enche outra taça de vinho.

O velho se senta.

VELHA – Está atrasado.

VELHO – Desculpe. Não conhecia direito o restaurante. Estranho ver você.

VELHA – Imaginava alguém mais mal encarado, certo?

VELHO – Sim, achei que você só agenciava o serviço.

VELHA – Não senhor. Vamos logo ao assunto.

VELHO – Bem, sabe como é…

VELHA – Desembucha logo. Você me procurou para um serviço.

VELHO – Sim, sim. Posso comer alguma coisa antes pelo menos?

VELHA – Não. Eu já pedi pra nós.

VELHO – Pediu?

VELHA – Pedi. Pedi um Fetuccine à Bolonhesa.

VELHO – Ótimo. Até que não pediu mal. Vinho gostoso esse também.

VELHA – Olha aqui. Eu tenho mais o que fazer. Se você me chamou aqui para almoçar com você, perdeu seu tempo.

VELHO – Não, não. Não é isso. È que… Bem… Estou doente.

VELHA – E daí?

VELHO – O médico falou que é grave.

VELHA – Grave? Quão grave?

VELHO – Grave do tipo que mata.

VELHA – Hum… Certo. E daí? No telefone você me falou e eu não acreditei. Fale novamente.

VELHO – Bom, os meus filhos morreram em acidente de carro. Minha mulher morreu há vinte anos. Sou sozinho. Estou velho. Já tenho setenta e nove.

VELHA – Pois é.

VELHO – Quando soube da doença, fiquei desesperado.

VELHA – É triste. Mas todo mundo vai um dia.

VELHO – Não. Você não está entendendo. È uma doença séria. Degenerativa, auto-imune. O médico explicou que eu vou sofrer lentamente na cama do hospital até morrer.


Surge uma moça com avental quadriculado. Ela traz uma bandeja com o fetuccine e outra com um pote de molho. Serve aos dois. Enche a taça de vinho e sai.

VELHA – Continue.

VELHO – Bem, então é um fim de vida horrível.

VELHA – Entendo. No início achei que você era maluco.

VELHO – O Wilson me passou seu telefone. O Wilson lá do bar.

VELHA – È um bom amigo. Já fiz serviços pra ele.

VELHO – Mas então?

VELHA – Parece tranqüilo. Você trouxe a grana?

VELHO – Sim. Tá aqui nessa malinha.

VELHA – Os trinta mil?

VELHO – È.

VELHA – Posso ver?

VELHO– Claro. Olha só. – Diz o velho metendo a mão na maleta e tirando um bolo de notas de cem amarrradinho.

VELHO – Aqui dentro tem mais vinte e nove destas. Cheirinho de dinheiro novo.

VELHA – Muito bom.

VELHO – E então? Como será?

VELHA – Rápido e limpo. Como você preferir. Mas me intriga uma coisa…

VELHO – O que?

VELHA – Por que contratar uma assassina profissional? Por que não pular da janela ou se jogar embaixo de um caminhão? Ou mesmo um tiro na cabeça?

VELHO – Não tenho coragem de cometer suicídio. Pensei muito nisso. Cheguei a tentar um enforcamento, mas desisti na última hora. Não tenho a coragem necessária.

VELHA – É a primeira vez que pego um cliente querendo o suicídio.

VELHO – Não, suicídio não. Eu quero ser assassinado. Quem vai me matar é você. Não é suicídio. Eu…

VELHA – O que foi?

VELHO – Esse vinho. Deu dor de cabeça.

VELHA – Esses vinhos vagabundos…

VELHO – Vou tomar um remedinho quando chegar em casa.

VELHA – Que seja. Bem, aqui vou eu.

VELHO – E quando será?

VELHA – Prefiro não dizer agora. Mas você saberá quando o momento chegar.

VELHO – Ok, muito obrigado.

Eles apertam as mãos. A velha levanta-se e pega a sacola. Sai do restaurante sem olhar para trás. O velho fica ainda tomando mais um gole de vinho. Chama a garçonete.

VELHO – Menina…

GARÇONETE – Sim?

VELHO – A conta, por favor.

GARÇONETE – A Senhora já pagou, senhor. Ela deixou um bilhete para o senhor.

VELHO – Bilhete?

GARÇONETE – Exato, senhor. Aqui está.

A garçonete entrega um pequeno pedaço de papel creme dobrado ao meio ao velho.

“ Foi um prazer fazer negócios com você. Chegou a sua hora. Ass: Vanda”

O velho tenta entender o bilhete. Parece não fazer o menor sentido. A dor de cabeça começa a ficar mais e mais forte. O velho olha para a garçonete e ela se assusta.

GARÇONETE – Senhor? Está se sentindo bem, senhor?

VELHO – (grunhindo)

O velho leva as mãos na garganta. Tudo gira ao redor dele. Está suando frio. Fica pálido. Os sons parecem ficar embolados e a última coisa que ele vê são as pessoas do restaurante olhando para ele.

O velho cai no chão. Está morto. Envenenado.


FIM

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Sem palavras. Porra, excelente seu roteiro, sinceramente, jamais imaginaria algo assim.
    O que é interessante na história? Originalidade. Singularidade. Imprevisibilidade.
    Cara, já disse e volto a repetir: você é (muito) bom nisso!
    Valeu Philipe!

  2. Philipe,

    descobri a maravilha do seu blog há algumas semanas e tenho sempre o visitado. Mas ultimamente você parece mais inspirado! Acabou que atrasei minha leitura! ehhehehe

    Acabei de ler e amei o texto do restaurante. Confesso que quando lí sua descrição da imagem terminando com um “Nada mais.” eu não esperava ver no texto tudo que vi na bela pintura.

    Pensei: não acredito que ele não viu o terceiro elemento esmurrando o que segura o talher! Ou será que eu que estou vendo demais?

    Ao final da leitura, fiquei encantadíssima! Todos os personagens presentes em brilhantes atuações! Hehehe!

    Parabéns. Muito bom. No que depender do seu talento, continuarei minhas visitas quase diárias!

    Abraço,

    Daniela Marques
    Belo Horizonte

  3. Realmente, está incrivelmente envolvente. O texto é criativo demais!!!!
    Vou providenciar uma imagem para desafiar ainda mais a sua imaginação!

  4. Perfeito!! Passei uns tempos sem visitar o blog por falta de tempo, sou professora de inglês e elaboro muitas aulas e provas, mas eis-me aqui de novo te prestigiando! Parabéns pelo grandioso texto mais uma vez! (E minha mãe ao lado do pc, me ouvindo ler pra ela! rsrsrs)

  5. Opa!! Faço sim, Philipe!! Sou bacharel em tradução! Passei num concurso público pra dar aulas de inglês no Estado do RN devido à minha licenciatura, mas tradução é meu forte! Me diga a proposta, eu encaro!

  6. Philipe, parabéns por todos os seus textos. Como eu já até falei em outro comentário, eu “descobri” o mundo gump por acaso, dei uma lida, gostei, fui lendo…. fui lendo….. quando dei por mim, já tinha lido um monte de histórias suas! isso foi bem antes de seu aparecimento no Jô Soares. Eu devia ter gravado a entrevista, uma pena
    Cara, você tem tino para ser cronista de jornal. Pena que nenhum funcionário de jornal – ou até mesmo alguém que dirija – te descobriu ainda. Mas também, nem sei se isso te agradaria, só digo que eu leria um jornal que você fizesse crônicas do dia-a-dia
    grande abraço jovem, fica com Deus

    • Oi Guilherme, fico feliz de saber que você gosta aqui do blog. Realmente, eu gostaria muito de escrever num jornal. Seria uma realização.

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