Como uma máquina de jogar xadrez intrigou o mundo

Até Napoleão jogou contra ele. Mas esse autômato capaz de vencer as pessoas no Xadrez, era o puro suco do 171

Em 1770, surgiu uma novidade tecnológica que impressionou o mundo. Um autômato que conseguia jogar uma partida de xadrez. Não só jogar, como quase sempre vencia os oponentes humanos.

Construído em 1770 por Wolfgang von Kempelen (1734-1804) essa engenhosa máquina foi feita para impressionar a Imperatriz Maria Teresa da Áustria.

Nessa mesma época, autômatos impressionantes também assombravam o mundo como esse que escrevia de verdade, usando uma série de sistemas de engrenagens que geravam movimentos bastante precisos, como um relógio:

Cordas, molas, alavancas e engrenagens pareciam fazer um milagre. (pessoalmente, eu ainda acho bem perto do milagroso mesmo)

Assim, nesse contexto surgiu “o turco”.  Ele era um mecanismo que parecia ser capaz de jogar um partida contra um forte oponente humano, assim como executar o problema do cavalo, onde o Cavalo deve ser movimentado no tabuleiro de modo a ocupar cada casa somente uma vez.

Uma réplica em escala real de “O turco”

A elaborada máquina foi projetada para se parecer com um robô vestido de turco que poderia derrotar até mesmo os melhores jogadores de xadrez humanos.

Esse autômato começava a operar e as pessoas podiam ver, por uma portinhola, uma série de engrenagens esquisitas de latão girando e estalos, e alavancas mexendo pra lá e pra cá. Logo o braço robótico do boneco começava a se mover, mudando as peças no tabuleiro. Todos chocados, pareciam incrédulos com o quão longe a engenharia e a tecnologia mecânica tinham conseguido chegar. Mais ou menos como hoje nos espantamos com a Inteligência Artificial.

A implementação inicial da tecnologia científica, ainda em estágios primitivos, despertava uma fascinação que misturava admiração e medo, trazendo à tona figuras e fantasias que emanavam dos traumas sociais da acumulação primitiva. A habilidade de criar ilusões se tornava quase uma necessidade para aqueles que enfrentavam as dificuldades de sua época, seja lutando contra a fome e a violência de forma crua, seja de maneira mais sutileza enfrentando a vida nas cortes.

Nesse contexto, o autômato emergia como uma representação tanto de utopias encantadoras quanto de realidades mais sombrias.

Assim, o genial artista húngaro Wolfgang von Kempelen revelou ao mundo sua invenção engenhosa em meio a uma aura de mistério. Sabendo que Maria Teresa da Áustria se deleitava com espetáculos de ilusionismo, Kempelen encontrou terreno fértil na corte do Império Austro-Húngaro, já em declínio, para apresentar seu autômato jogador de xadrez, que competia de igual para igual com humanos.

A intrigante máquina, apelidada de O Turco, exibia características exóticas, alinhadas ao orientalismo da época. Com torso e cabeça de um boneco barbudo, vestido com uma túnica turca e turbante, segurando um cachimbo, a máquina fascinava pelo seu design e complexidade. Kempelen fazia questão de mostrar as engrenagens internas da máquina, abrindo portas e gavetas do seu gabinete para revelar um mecanismo intrincado.

Obra de arte da engenharia

É comum vermos o Turco sendo menosprezado como somente um engodo para distrair ricos medíocres, mas não se engane! Essa era MESMO uma obra incrível de engenharia. Tudo bem que ele não pensava sozinho, nem tinha qualquer mágica envolvida, mas ao tentar entender como essa coisa funcionava, você ficaria perplexo com a engenhosidade absurda desse treco.

O Turco era uma máquina intrigante, composta por um manequim em tamanho real com cabeça, torso, barba negra e olhos cinza, trajado com uma túnica turca e um turbante, típico de um mágico oriental, segundo o jornalista Tom Standage. Seu braço esquerdo segurava um longo cachimbo turco, enquanto o direito repousava sobre um grande gabinete de aproximadamente 110 cm de comprimento, 60 cm de largura e 75 cm de altura. No topo desse gabinete, havia um tabuleiro de xadrez de 45 cm de lado.

O interior do gabinete era complexo e projetado para enganar os espectadores. Ao abrir a porta esquerda da frente, revelavam-se engrenagens semelhantes às de um relógio, enquanto a parte de trás do gabinete também se abria, permitindo ver através da estrutura. O lado direito do gabinete continha uma almofada vermelha e componentes móveis, proporcionando uma visão clara do interior. Escondidas sob as roupas do manequim, havia portas adicionais que expunham ainda mais o mecanismo interno, mantendo a ilusão para o público.

O tabuleiro no topo era fino o suficiente para permitir o uso de magnetismo. Cada peça de xadrez possuía um pequeno imã em sua base, e um sistema de fios sob o tabuleiro permitia ao operador da máquina identificar quais peças eram movidas. Além disso, números de 1 a 64 sob o tabuleiro ajudavam o operador a monitorar os movimentos do oponente. Kempelen às vezes demonstrava a não influência de magnetismo externo ao colocar um imã mais forte ao lado do tabuleiro.

Como método adicional de distração, Kempelen usava uma pequena caixa de madeira colocada no topo do gabinete, insinuando que ela controlava algum aspecto obscuro da máquina. Alguns chegavam a acreditar que o Turco possuía poderes sobrenaturais.

Internamente, o tabuleiro continha furos ligados a alavancas que controlavam o braço esquerdo do manequim, permitindo-lhe mover-se sobre o tabuleiro e manipular as peças. A operação era iluminada por uma vela, com um sistema de ventilação integrado que, ao ser ativado, fazia o manequim “FUMAR O CACHIMBO”. Outras partes da máquina permitiam ao Turco fazer expressões faciais e tocar um sino durante os movimentos.

O projeto permitia ao apresentador da máquina abrir todas as portas disponíveis para o público, mantendo a ilusão.

Tanto o mecanismo de relógio visível no lado esquerdo da máquina quanto a gaveta que guardava o conjunto de peças não se estendia por completo até o fundo gabinete, ao invés disso, estes avançavam até somente um terço do caminho. Um assento móvel também instalado permitia ao operador que ficava apertado ali dentro da máquina se esconder dos observadores quando o apresentador abria as várias portas.

O tabuleiro no topo do gabinete era fino o suficiente para permitir uma ligação magnética. Cada peça de xadrez tinha um pequeno, porém forte imã em sua base, e quando eram colocadas sobre o tabuleiro as peças seriam atraídas ao imã amarrado a um fio sob os lugares específicos no tabuleiro. Isto permitia ao operador dentro da máquina ver que peças eram movidas no tabuleiro. Embaixo do tabuleiro havia os números correspondentes de, 1 a 64, permitindo ao operador a ver casas do tabuleiro que eram afetadas pelo movimento do oponente. Os imãs internos eram posicionados de modo que forças magnéticas externas não influenciassem as peças, e Kempelen permitiria que algumas vezes um imã maior ficasse ao lado do tabuleiro numa tentativa de mostrar que a máquina não era influenciada pelo magnetismo.

Como outro método de distração, o Turco vinha com uma pequena caixa de madeira semelhante a um caixão que o apresentador colocava no topo do gabinete. Enquanto Johann Nepomuk Mälzel, um proprietário posterior da máquina, não utilizava a caixa, Kempelen algumas vezes espreitava dentro da caixa durante a partida, sugerindo que esta controlava algum aspecto da máquina. Alguns acreditavam que a máquina tinha poderes sobrenaturais, com um demônio ou espírito preso nela.

O interior continha também um tabuleiro provido de furos conectado a uma série de alavancas pantográficas que controlavam o braço esquerdo do manequim. O ponteiro de metal no pantógrafo movia o interior do tabuleiro, e permitia simultaneamente mover o braço do Turco sobre o tabuleiro no gabinete. O alcance do movimento permitia ao operador do braço do Turco subir e descer, e movendo a alavanca abria e fechava a mão, permitindo segurar as peças no tabuleiro. Tudo isso era realizado pelo operador sob a luz de uma simples vela. Um trabalho insano e ele ainda precisava ser um ás do Xadrez.

Após Mälzel adquirir a máquina, ele incluiu um sintetizador de voz que permitia ao Turco anunciar “Échec!” (xeque em francês) durante as partidas. Um sistema de discos de latão com números, dentro e fora do gabinete, permitia ao operador e ao apresentador comunicarem-se através de um código numérico.

Após sua estreia na corte em 1770, Kempelen afastou o autômato das atenções por uma década, focando em outros projetos como máquinas a vapor e dispositivos capazes de realizar a reprodução da voz humana. No entanto, em 1781, por ordem do Imperador Romano-Germânico José II, Kempelen reativou o autômato para impressionar um visitante russo, levando a máquina à uma turnê europeia que incluiu duelos de xadrez com figuras notórias como Benjamin Franklin e, posteriormente, até Napoleão Bonaparte.

O Turco foi vendido, depois da morte de Kempelen, por seu filho a Johann Nepomuk Mälzel, que revitalizou e levou a máquina para os EUA, onde cativou figuras como Edgar Allan Poe. Após várias apresentações e uma turnê internacional, O Turco acabou em um museu na Filadélfia, onde infelizmente acabou destruído por um incêndio em 1854.

Após o incêndio que destruiu O Turco, surgiu com bastante êxito nos EUA um similar, do mesmo modo com trajes orientais, de nome Ajeeb, que jogou partidas de xadrez, a partir de 1868, com pessoas importantes como Houdini e Theodore Roosevelt.

 

El Ajeeb

A lenda de O Turco inspirou a criação de outros autômatos, como o Ajeeb e o Mephisto, que também jogaram xadrez vestidos de maneira exótica e se tornaram atrações populares nos Estados Unidos e na Europa, enfrentando personalidades como Houdini e Theodore Roosevelt.

O autômato Mephisto

Estes autômatos, além de entreter, refletiam a complexidade das interações humanas com a tecnologia e as máquinas, em uma época em que a linha entre realidade e ilusão era frequentemente borrada.

O que sustentava o encanto era o enigma que cercava uma máquina capaz de demonstrar habilidades notáveis em uma atividade tão intelectualmente desafiadora quanto o xadrez. À medida que as suspeitas sobre a autenticidade do autômato como um mestre de xadrez aumentavam, também cresciam a curiosidade e a demanda por mais truques para ocultar que por trás da fascinante máquina havia uma engenhosa combinação de mecanismos encantadores e um habilidoso jogador de xadrez responsável pelo jogo.

Durante o período em que O Turco esteve sob a guarda de Kempelen, permanece um mistério quem era o verdadeiro especialista em xadrez que enganava a corte austríaca.

No entanto, é conhecido que William Schlumberger foi o habilidoso operador nos Estados Unidos. Após sua morte de febre amarela em Cuba, O Turco perdeu um operador à sua altura.

Já o Mephisto, para superar as suspeitas do público, empregou técnicas ainda mais sofisticadas de magnetismo, semelhantes às usadas em O Turco, posicionando seu operador em uma sala adjacente, de onde ele controlava o boneco.

A habilidade técnica ao longo do tempo se desenvolve e o fascínio inicial se transforma. Em 1912, um engenheiro e matemático espanhol chamado Leonardo Torres y Quevedo criou o El Ajedrecista.

El Ajedrecista

Pela primeira vez, surgiu um verdadeiro autômato que, embora não jogasse uma partida completa, conseguia ganhar um final de jogo com torre e rei contra um rei humano.

Quevedo, ao converter habilidades de enxadristas humanos em um algoritmo restrito, marcou o nascimento do primeiro jogo de computador da história. O encanto foi reacendido e o mistério permaneceu, embora gradualmente as pessoas começassem a aceitar que era realmente a máquina que executava os movimentos.

No entanto, ainda não percebiam que tanto o algoritmo quanto o uso de eletromagnetismo para mover as peças eram criações humanas, e não provenientes da máquina.

Na década de 1990, a Inteligência Artificial avançou significativamente com o confronto entre Deep Blue, um computador desenvolvido pela IBM para jogar xadrez, e o campeão mundial Garry Kasparov. Em 1996, Kasparov venceu três jogos e empatou dois, mas o Deep Blue ganhou o jogo inicial, marcando a primeira vez que um computador venceu um campeão mundial de xadrez em um jogo.

Deep Blue contra Kasparov

Em um encontro subsequente em 1997, após atualizações no Deep Blue, o computador ganhou duas partidas, empatou três e perdeu uma. Kasparov acusou a IBM de manipulação, sugerindo intervenção humana durante o jogo. A falta de transparência da IBM sobre a programação do Deep Blue manteve esse mistério por muito tempo, até que se revelou que um comando específico evitou que o computador repetisse indefinidamente uma busca, levando a uma jogada trivial – um erro humano que fez Kasparov pensar que enfrentava algo mais avançado.

O Deep Blue funcionava com uma Inteligência Artificial que necessitava constantemente de atualizações com novos dados por parte dos operadores.

Computadores mais recentes, como o AlphaZero da DeepMind, são programados para aprender a partir dos dados coletados em suas partidas. A DeepMind, apesar de seu sucesso, enfrentou controvérsias, como a aquisição ilegal de dados de pacientes do NHS para desenvolvimento de sua IA em saúde, e foi adquirida pela Alphabet Inc. por US$ 500 milhões.

A questão persiste, derivada do mesmo mistério fascinante: que operações ocorrem durante o funcionamento da máquina?

“O diabo se esconde nos detalhes”

Recentemente, Jeff Bezos lançou uma plataforma de crowdsourcing em que empresas buscam trabalhadores para serem contratados remotamente a fim de atuarem em pequenas tarefas, sob demanda, de um modo ou de outro afeitas ao mundo digital e que computadores ainda não são capazes de fazer, como identificar o conteúdo de uma imagem, responder questões ou escrever descrições de produtos. Os trabalhadores são (mal) remunerados a cada “micro tarefa” realizada, num sistema de contratação completamente à margem das legislações trabalhistas. A plataforma de micro-trabalhos se chama, não sem ironia, Amazon Mechanical Turk. Trata-se daquilo que ficou conhecida como uma IA artificial, justamente como o ilusionismo que autômatos como O Turco utilizaram para atrair o fascínio das plateias ao fazer parecer que a máquina realmente jogava xadrez por si, quando ela era operada de fato por um exímio enxadrista.

No coração do Vale do Silício, o lema “Fake it till you make it” vai além de uma simples frase motivacional; torna-se uma estratégia de sobrevivência essencial. Empreendedores como Elizabeth Holmes e Elon Musk navegaram por esse limiar, projetando um futuro brilhante com base em inovações que ainda nem saíram do papel. O trajeto para a inovação é custoso e intrincado, demandando uma certa encenação para atrair investidores. Essa manipulação do tempo, contudo, possui aspectos negativos. Quando as promessas constantemente adiadas acabam se mostrando ilusórias, o risco de cair em práticas fraudulentas aumenta.

Amazon Go – Os super computadores eram indianos

Recentemente, as lojas Amazon Go se tornaram um símbolo dessa dualidade. Apresentadas como o pico da conveniência automatizada, logo se descobriu que, escondidos atrás da fachada tecnológica, milhares de trabalhadores humanos, muitos deles na Índia, ficavam assistindo os clientes comprarem, e asseguravam a operação do sistema.

Esse caso serve como um forte lembrete de que, em muitas das chamadas “inovações” modernas, o digital ainda dissimula o trabalho manual, em uma promessa de futuro que ainda está muito atrelada à realidade atual.

Esse fenômeno não é inédito. Nos bastidores dos aplicativos de entrega e de táxi, o que muitas vezes se apresenta como soluções digitais acaba por revelar-se surpreendentemente humano. O problema não reside em utilizar a encenação como um meio para impulsionar a inovação, mas sim quando essa estratégia se desdobra em decepção.

A fronteira entre inovação disruptiva e fraude é extremamente delicada. “Fake it till you make it” é uma dança perigosa nessa linha tênue, onde a transparência sobre os mecanismos de inovação pode ser decisiva para diferenciar uma verdadeira revolução de meras ilusões.

A prestidigitação aqui engana não apenas sobre quem realiza o trabalho, mas também sobre como ela dribla legislações e proteções sociais.

Em 1940, Walter Benjamin refletiu sobre essa relação entre técnica e trabalho em seu texto “Sobre o conceito de história”, criticando a visão dogmática de progresso e propondo uma abordagem crítica ao uso da tecnologia, não como dominação da natureza, mas como um meio de revelar potenciais latentes.

Esse entendimento aponta para uma reavaliação de como interagimos com as inovações tecnológicas, reconhecendo tanto sua capacidade de transformação quanto os desafios éticos que elas apresentam.

O Turco, e seu empoeirado 171 que assombrou o mundo, nunca pareceu tão atual quanto hoje, na era da mentira.

fonte fonte fonte

Receba o melhor do nosso conteúdo

Cadastre-se, é GRÁTIS!

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade

Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

Artigos similares

Comentários

  1. comp era possível sintetizar vozes em 1770? engrenagens de um relógio já me deixam impressionado… mas isso vai muito além

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

Advertismentspot_img

Últimos artigos