Sozinho em casa, esperando uma lasanha Sadia sair do forno eu não tenho porra nenhuma pra fazer. Penso em escrever no blog. Abro a janela mas a tela em branco me oprime. Eu não tenho nenhuma ideia. Penso no meu dia. No que aconteceu.
Penso no meu trabalho, na ralação, nos amigos. Penso na minha mulher. Penso em levantar da cadeira e ir ver Tv. Mas nada de bom passa na tevê e eu sou obrigado a voltar para o escritório onde me espera a maldita tela branca opressora.
O que colocar ali? Uma aventura? Um conto? Uma outra poesia? Ou comentar alguma notícia? Na verdade não estou com vontade de escrever é merda nenhuma. Eu queria jogar.
Tanto jogo maneiro… Esse da Criterion novo… Meter uns tiros. Deve ser legal.
Mas ele é caro e eu não tenho. Além do mais, jogar me vicia. Eu tenho que segurar a vontade de jogar porque se começo, viro a madruga e amanhã é dia de trabalhar.
Madrugada. Apenas o silêncio. Meus pensamentos me dão a sensação clara de ouví-los.
Eu volto-me para a janela. Olho lá para a rua. Passa um fusca e fura o sinal vermelho.
Ele colide violentamente com uma Brasília ou variante. Não dá pra ver direito, porque o poste está com a luz queimada.
O que eu vejo é o fusca acertar a frente da Brasília, que pode ser uma variant, e rodar, indo parar de encontro ao muro. A buzina dispara. É um ruído irritantemente alto da buzina “bi-bi” típica do fusca. Com a batida, o muro desabou, abrindo um buraco enorme por onde saem dois cães pretos correndo. Podem ser rottweilers. Os cães correm e atacam os caras do posto de gasolina do outro lado da rua que estavam vindo olhar o acidente. O primeiro cão pula sobre o pobre frentista agarrando-lhe o braço e derrubando-o no chão. O homem se debate gritando. O outro cão ia atacar o segundo frentista mas dá meia volta e corre para cima do colega, que se debate desesperado, com um cão mordendo-lhe o pescoço e o outro puxando pelo braço. È uma carnificina. O frentista atônito tá parado, gritando. Gritando acenando. Em desespero. O colega se debate com os cães no chão.
Nisso, eu vejo que o cara da Brasília, que agora tenho certeza que na verdade é uma Variant, desceu do carro. Ele tem algo na mão.
Só depois dos tiros que eu notei que aquilo era um 38. O primeiro cão caiu no chão e o outro ainda morde o pobre negro desfigurado.
O segundo frentista vem correndo com uma vassoura. Acerta vassouradas no cão, erra duas e acerta no colega, que está caído ao chão, aparentemente desmaiado, ou pior. Temo pelo pior, dada a vassourada no quengo. O cão está em frenesi. O maluco da Variant mete mais dois balaços e o cão corre mancando e ganindo. Não estou certo se todas as balas acertaram o cão. Acho que o frentista estava num dia de azar.
O sujeito do fusca está lá dentro ainda, imóvel. Pode estar machucado. Será?
Eu me preocupo que ele tenha morrido na batida com o muro. A buzina disparada ainda. Uma zona. Nos prédios ao redor todo mundo correu para ver. Mas nas janelas, já que ninguém é louco de descer para a rua a essa hora. Vejo que uma mulher grita. Ela grita desesperada. Deve estar dentro do fusca, a julgar pelo barulho abafado. A buzina parou, graças a Deus!
No fusca tem um sujeito tentando tirar o cara do carro. Acho que é porteiro do prédio ali da esquina.
Alguém grita lá do prédio para não mexer no cara. Mas já é tarde. E nem deu pra ouvir bem dada a gritaria. O sujeito tira o corpo ensanguentado e coloca no asfalto.
Outros dois que não vi de onde saíram estão tentando ver se o frentista morreu destroçado pelo cachorro lá em baixo. O frentista sobrevivente corre para telefonar no orelhão.
Penso como a vida é uma merda. Ninguém tem celular quando precisa, mas basta você entrar numa porra dum cinema ou teatro para: “…blim, blim, blim-blim-blim.. alô”?
Ao longe, bem longe, há um barulho de sirene. Não sei se é para este acidente. Está bem longe ainda, ao ponto de que nem tenho certeza se não estou alucinando ela. Agora que a buzina do fusca parou, eu posso perceber melhor a cena. Muito do que penso ver, acho que estou ouvindo, já que a falta da luz do poste atrapalha muito acompanhar o desenrolar dos fatos, e a miopia dá sua contribuição.
Mas mesmo assim, o desenrolar dos fatos é bem interessante agora, já que a mulher em crise desceu do fusca e está estapeando o infeliz ensanguentado estirado no asfalto. O porteiro do prédio tenta segurá-la. O povo da janela está.. Estão rindo!
Meu Deus, como é que pode isso? O cara deve estar morto lá e neguinho tá rindo…
Ela grita algo como “filho da puta! Não morre. Volta! Sua mulher vai me matar!”
Entendi o motivo do riso. O porteiro tenta conter a mulher. Ela se debate sobre o corpo do cara, parece estar tentando uma ressuscitação, mas não sei. Pode ser ódio também.
O maluco da variante voltou pro carro. Está sentado no capô olhando aquela merda. O carro parado no meio do cruzamento. São agora vários motoqueiros que se aglomeram no posto para ver a cena. Gente correndo de camisola começa a aparecer. São as velhas da casa 12 que sempre estão lá na igreja e vivem para fofocar. Uma tem até bobs na cabeça. A outra enrolada num penhoar florido de gosto absolutamente duvidoso, parece ter sido roubado da Dona Nenê da Grande família ou da Bruxa do 71.
Está a maior falação na rua. Os donos da casa que o muro caiu surgem desesperados. Os dois vem correndo. O marido vira-se e grita para as crianças voltarem pra dentro. Três bacuris de uns quatro a sete anos correm de volta para o buraco do muro. A mulher vê o cão caído morto e começa a gritar. Ela tá tendo um chilique. ih, vai desmaiar, vai desmaiar a coroa! O marido tenta segurar, mas agora são duas mulheres tendo chiliques. O povo ainda grita das janelas. Não dá pra entender o quê.
O pobre negão está esfacelado ali numa poça sanguinolenta e ela está ajoelhada alisando o cachorro assassino. Não faz sentido, mas é trágico.
As velhas se aproximam da mulher que vela o cão morto. Elas apontam para o sujeito da variante. Ele está sozinho sentado no capô. Cabeça baixa. Acho que tá chorando, não sei.
A mulher corre pra lá. A dona do cão está puta. As velhas da rádio-fofoca falaram naturalmente quem foi que matou o… Não ouvi o nome. Parece Ringo, ou Bingo, ou Pingo…. Uma merda assim, que não combina com um cachorrão daquele tamanho nem ferocidade.
Ela foi lá tirar satisfação com o cara. Empurrou ele. O marido dela vem correndo tentar acalmá-la. Ih, carai! Fudeu. O cara da Variant empurrou a mulher e ela caiu estatelada no chão. Quase mete a cabeça no meio-fio. Os motoboys gritam algo como “ÔôôôÔ…”
O marido dela chega e se mete entre ela e o cara da Variant que estava quieto na dele.
Recomeçou a discussão. O marido empurra o cara da Variant. Ameaça meter a mão na cara. O homem da Variant meteu… Ai meu Deus! …a mão no casaco e sacou o trabucão novamente.
O marido da mulher dá um passo pra trás. O cara da variant avança e mete dois enormes tapões na cara do sujeito, que quase tropeçou na mulher. Eu só escuto a parte do “Quer morrer? Quer morrer? Reage, filho da puta! Reage!”… Ah, só pode ser polícia esse puto.
As crianças choram olhando pelo buraco o papai que vai morrer. As velhas correm para o hortifruti desesperadas. A gritaria recomeçou forte com gente berrando dos prédios.
O dono da casa levantou e agora corre com a mulher. A galera das janelas em coro “Amarelou, amareloooou”.
A maior vaia.
O maluco da Variant aponta a arma aleatoriamente na direção das janelas. Dá um tiro. Fez-se o mais completo silêncio que eu já testemunhei na vida. Agora deu certeza que é polícia.
O cara da Variant senta novamente sobre o capô e fica isolado. Agora a rua é apenas silêncio. Todos apenas se olhando desconfiados. A coisa ficou tensa.
O barulho da sirene não está mais no ar. Aquilo não era o socorro mesmo. E pelo que parece, o socorro vai demorar.
Os porteiros e os vigias do estacionamento junto com os vigias do hortifruti estão colocando uma lona em cima do negão e uns jornais no corpo do cara do fusca. A mulher do cara lá do fusca chora desconsolada. A amante. Dizem que a mulher mesmo só chora assim no enterro, e quando tem televisão. Ou então, quando o cara é rico.
Um estalo seco ecoou na noite e as velhas gritam. Todo mundo grita, Muita correria. Eu olho pro canto e vejo que o meganha lá da Variant está caído sobre o capô. Surge atrás do poste o marido da dona dos cachorros. Ele tá com uma 12 na mão. Parece ser cano serrado ou algo assim.
Caralho o maluco virou no Charles Bronson!
Agora me lembro que ele é ex-PM também. Puts. Nunca humilhe um ex-pm!
O maluco tá caidão em cima da variant toda fodida. Braços abertos igual o Cristo Redentor. O revolver caiu. A mulher do ex-pm vem gritando em desespero, com as mãos na cabeça. Ouço um ruído de batuque eletrônico.
No fim da rua, lá em baixo perto do açougue eu vejo que vira um carro cantando pneu. É um Vectra tunado. O som toca um funk no último volume. Ele está muito rápido. Rápido demais! Parece que o cara não está vendo o… Ah, não… Puta que pariu!
O carro vem a toda cantando pneu e entra com a variante, o morto e tudo dentro do posto de gasolina. Eles atingem a bomba.
O posto explodiu! Exódiu, caralho! Explodiu! Puta merda, quebrou um monte de janela e eu caí de bunda aqui no chão.
Vejo subir um um clarão que ilumina a rua. É um barulho como uma bomba atômica. Eu sinto o som no meu peito. Caí atrás da janela. Me levanto para ver a merda.
Vejo que pedaços de pessoas voam. O predio sacode. Eu penso que vai acabar o mundo. Tenho medo que desabe tudo.
Sinto o cheiro do óleo e da gasolina. Uma língua de fogo gigante se precipita sobre o que era o posto. Da janela vejo pessoas em chamas correndo. Muitos corpos se espalham pelo chão. Os que sobraram dos motoboys estão queimando aos gritos no chão. Em meio a fumaça, noto que o posto agora é uma cratera com pedaços de telhado e vigas.
Fogo muito fogo.
Eu sinto o calor. Não consigo respirar direito. Meus olhos ardem. Os carros estão de cabeça para baixo no bololô retorcido. Todas as janelas dos prédios em volta explodiram. Tá tudo sem luz. O poste caiu. Eu sinto o cheiro ruim da fumaça. O cheiro ruim e ressecado da fumaça escura…
Caralho. A lasanha tá queimando!