A caixa – Parte 3

Eu não podia estar maluco. O barulho tinha sido real. Assim que eu acordei com o susto, ainda ouvi o eco fraco ecoando na câmara.

Eu fiquei quieto, esperando algum sinal, um novo estouro. Pensei que talvez fosse alguém abrindo uma porta, algo assim.

Mas não ouvi nada além do silêncio que fazia meu ouvido zumbir.

Pensei em deitar e tirar mais um cochilo, mas foi aí que eu ouvi um negócio estranho. Era longe, baixo, quase inaudível, mas estava lá. Era um barulho que parecia alguém gritando. Era “Socorro”… Estava longe, fraquíssimo… Talvez eu tivesse escutado aquilo por mais tempo do que eu imaginava, mas como era muito baixo, posso não ter notado.

Eu precisei prestar muita atenção para me certificar que aquilo não era a minha imaginação.

Fui andando depressa na direção do som, mas ele era tão baixo que o som dos meus pés no chão abafavam o barulho. Para piorar, o desgraçado que estava gritando de vez em quando parava. Quando isso acontecia eu precisava ficar parado, imóvel, com a respiração presa, para ter silêncio o bastante e conseguir identificar a direção do som. Forcei minhas orelhas para frente com os dedos, tentando clarear a recepção do som. Acho que não resolveu nada. Ou se resolveu, foi pouco.

Virou um balé. O cara gritava e eu dava alguns passos na direção do som. Mas aí o puto parava de gritar e eu precisava parar também. Teve um momento que ele ficou frenético, gritando direto, mas então ele parece que cansou, o que me obrigou a passar muito tempo, muito mais tempo do que eu queria no meio do lugar. Sem referencial, me sentia extremamente vulnerável ali. Incrível como me tornei dependente das paredes do hangar.

Mentalmente, eu desenhava um mapa na cabeça, pois saí do canto “DA”. Eu acho que fui esperto evitando andar na diagonal. Eu também não me virava. Estava sempre com o rosto na mesma direção. Se eu achava que o som vinha da esquerda, dava alguns passos para a esquerda, mas sempre me movendo de lado, sem me virar. Eu também contava meus passos, de modo que esperava que pudesse refazer a rota voltando, muito embora minha memória fosse de qualidade duvidosa.

É difícil precisar quanto tempo levei naquele balé de lenta aproximação. Suponho que me tomou duas horas e meia até chegar numa posição no salão em que eu podia escutar mais claramente.

O cara ficou em silêncio mais tempo que de costume. Eu temi que ele tivesse ido embora. Comecei a gritar desesperado:

-Eeeeeeei! – Vocêêêê… Alôôôô…

Eu gritava a plenos pulmões e já estava prestes a desistir quando ele respondeu com o grito de socorro.

-Socorro, pelo amor de Deus! Alguééém!

O cara parecia extremamente feliz. Gritei de volta.

-Quem está aí? Onde você está?

O som do cara ainda estava longe, mas já dava pra saber que eu não estava sozinho.

-Eu… Eu não sei! – Ele berrou de lá. O som era abafado, como se ele tivesse um balde na cabeça. Eu precisava me esforçar para entender. Ele disse alguma coisa que não entendi lhufas, mas então compreendi claramente a parte em que ele perguntava quem eu era.

-Meu nome é Anderson! – Gritei.

A cada grito dele eu me movia, tentando ir cada vez mais rápido, para chegar nele. Mas estava bem difícil.

-Amigo? Tá me ouvindo? – Gritei pra ele.

-Siiim! – Ele respondeu.

-Cante uma musica aí! Assim eu posso te localizar. Ta tudo escuro aqui!

-Hã?

-Canta! Canta qualquer coisa aí. – Berrei o mais alto que eu pude.

O cara finalmente entendeu, e começou a cantar a plenos pulmões. Eventualmente ele parava e começava a tossir. Imaginei que ele estava doente ou algo assim. Ainda era difícil localizar no espaço somente pelo som, mas então ele fez algo que achei genial. Ele assoviou como se estivesse num show de rock. Por ser bastante agudo e contínuo o assovio dele gastava menos energia, e eu ouvia bem mais claramente.

Rapidamente fui me aproximando do som, até que estava bem alto ao ponto de eu pensar que ele estava perto de mim. Ele já me ouvia mais claramente. Ainda havia o eco e a reverberação estranha, mas eu podia apostar minhas ficas de que ele estaria a dez ou doze metros de mim.

-Pelo amor de Deus, socorro! – Ele berrava. Parecia bem assustado.

-Calma. Estou chegando. – Respondi.

Eu andei na direção do som. Estava com o peito explodindo de felicidade. Era outra pessoa. O tempo de solidão havia ficado para trás.

Topei com alguma coisa. Esbarrei o braço na parede. Era fria e lisa. Estranhei aquilo, porque no meu mapa mental eu estava perto do meio do lugar, não na lateral. Mas talvez eu tivesse me enganado.  Comecei a tatear. Eu levei uns dois minutos tateando para me tocar que ali estava uma caixa de aço. Havia alguma coisa ali no meio.

Comecei a medir com passos. Uma lateral dela media dez metros.

Então deu a explosão. Eu levei um susto tamanho que quase caí para trás. Saltei de banda no ato. O som vinha da caixa. Ouvi claramente a voz do outro. Ele estava ali dentro.

-Socorro. – Era ele socando e chutando a caixa.

-Calma.

-Me tira daqui! – Ele gritava assustado.

-Qual o seu nome?

-Alfredo!  – Ele disse. Percebi que pela voz parecia um cara duas vezes mais velho que eu.

-Calma seu Alfredo.

-Você é bombeiro?

-Quem eu? Não, eu não. Eu sou jornalista.

-Que lugar é este? – Perguntou Alfredo pra mim. Naquela pergunta uma coisa ficou clara: Ele também não fazia ideia de onde estava. Certamente quem tinha me enfiado naquela jaula imensa havia também colocado aquele senhor, numa jaula bem menor.

-Olha, seu Alfredo… Eu vou falar com o senhor, o senhor me escuta bem aí?

-Estou ouvindo. Ta meio baixo mas eu escuto, garoto.  – A tática estava dando certo. Eu estava conseguindo acalmá-lo.

-Então, seu Alfredo, eu não sei que lugar é este. Eu acordei e ja estava aqui. Está tudo escuro aqui fora. Não dá pra ver nada.

-Aqui também, mas eu consigo ver com a luz do celular.

-Você tem um celular? – Me espantei. Naquela época ninguém tinha celular. Só médicos, ricaços e pessoas importantes podiam ter celular.

-Tenho, mas ele não tem sinal. E mal dá pra ver alguma coisa aqui. É muito escuro. Estou numa caixa de aço. Parece um condém.

-Parece o que?

-Um condém, garoto.

-O que é isso, seu Alfredo?

-Aquelas caixas que usam em navio, para levar produtos.

-Ah, tá. – Só então entendi que o eco atrapalhava entender. Ele tinha dito contêiner.

-Eu preciso sair daqui. – Ele disse.

-Eu também, seu Alfredo.

-Não, você não esta me entendendo, garoto, se eu não sair daqui já, eu vou morrer! O ar está acabando!

-Calma, seu Alfredo. Vou ajudar o senhor, é que aqui eu não vejo nada. Pra falar a verdade, eu estava até na dúvida se eu tinha ficado cego. Estou tateando aqui em busca de uma porta ou fechadura…

-Não perca seu tempo, garoto.

-Meu nome é Anderson.

-Anderson… Não perca seu tempo, a caixa não tem porta.

-Mas… Não pode ser, seu Alfredo. Como que o senhor entrou aí?

-Eu acordei aqui, garoto.

-Anderson.

-Garoto!

-Ok.

-Eu acordei aqui e não sabia como tinha vindo parar nesse lugar.  – Ele dizia enquanto eu alisava a caixa, meticulosamente construída em busca de um buraco, reentrância ou algo assim. Ela parecia feita do mesmo material metálico e frio que revestia as paredes do hangar. Enquanto eu vasculhava, Alfredo me contava como havia ido parar ali.

-Sabe, garoto? Eu sou viúvo… Sabe como é, com o tempo, a gente vai pegando umas manias, né?

-Sei, Seu Alfredo.

-Então eu tinha mania de acordar às quatro da manhã para ver se o trem ia passar na hora certa. Eu acordei um dia e o trem não passou. Eu pensei que tinha que haver uma coisa errada, porque o trem passa na hora há mais de trinta anos…

-Hum… – Gemi.

-Que?

-Nada, continue, por favor, seu Alfredo… – Eu disse, já quase desistindo de achar a porta da caixa. Ela era quadrada. Parecia um enorme cubo, mas eu não dava altura de medir o eixo vertical da caixa.

-Bom, aí o trem não veio e eu fiquei cabreiro. O que eu fiz? Vesti o casaco, peguei umas galochas, enfiei o celular no bolso para ligar para a emergência, peguei a minha lanterna de acampamento e fui para os trilhos verificar. Achei que pudesse ter havido um acidente…

-Sim… E aí?

– Eu andei, andei, e não vi nada de anormal. Achei que a companhia de tráfego ferroviário talvez tivesse desviado o trem para outro ramal. Mas aquilo era incomum. Voltei para a casa, guardei a lanterna e voltei para a cama. Deitei de casaco mesmo. Aí então eu acordei e não vi nada. Tava tudo escuro. Eu achei que estava na minha cama, mas senti o chão duro. Pensei que talvez eu tivesse desmaiado, coisa de velho. Pensei que tinha perdido a memória, caído no banheiro.  Eu não via nada… Meti a mão no bolso do casaco e o celular estava lá. “Graças a Deus! Não estou cego! ” Eu pensei.  Disquei a emergência e não tinha sinal. Eu usei o celular para iluminar o lugar e vi que estava nessa caixa de… sei lá que merda é essa. Parece aço inox.  Mas a bateria foi acabando e eu achei melhor desligar para economizar. Fiquei às cegas. Comecei a andar na caixa, que era muito, muito grande…

-Grande? O senhor disse grande? – Perguntei.

-Sim, garoto. Eu medi com passos. Ela era enorme! Tinha quase 3600 passos no dia que eu acordei. Mas no dia seguinte, eu medi novamente ela já tinha 3000. Eu achei que tinha medido errado. No outro dia, eu medi novamente, já tinha dois mil passos. Então eu notei que a caixa estava encolhendo…

Quando seu Alfredo disse aquilo, um arrepio horrível me acometeu. Lembrei na hora da discrepância das medidas do hangar.

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Agora sim a história engrenou! Acho que eu estava sentindo falta desse sentido de urgência :D
    Fica agora a tensão pelo tiozinho, mas mais ainda pelo Anderson, que pode vir a presenciar uma prévia de seu próprio fim…

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