As crianças da noite – Parte 9

Rogério estava nervoso.
Acendeu o cigarro que o policial tinha lhe dado no corredor, duas horas antes. Ele tinha parado de fumar cigarros. Agora só fumava Montecristos, mas com todo aquele problema, toda a tensão, fumaça nos de cigarro pulmões era o de menos. Desde que reduzisse sua tremedeira, ele estava disposto a fumar.

As horas passavam. Não havia nenhum movimento expressivo. A sala tinha uma boa proteção acústica e segundo os ponteiros do Patek Philippe, o investigador Palheiros estava fora já fazia quarenta minutos.
Alguém mexeu na maçaneta da porta, mas então ela voltou para sua posição original.
A sala era repleta de caixotes com coisas dentro. Na parede atrás dele, um mural com diversos recortes, um monte de coisa ininteligível escrita à máquina. Desenhos de procurados, retratos falados, boletins de ocorrência.

Quando a porta entreabriu, Rogério ouviu o Palheiros conversando com outro investigador. Queria laudos do IML.
Rogério fez um grande esforço para entender o que se passava no corredor do distrito policial, mas o eco e o som barulhento do lugar impediam ouvir com clareza o que os policiais falavam. Ele então entrou, bateu a porta e o ambiente voltou ao silencio opressivo e quente de antes. A sala tinha cheiro de mofo. Rogério bateu o olho e logo viu o que Palheiros trazia.
Palheiros entrou carregando uma pasta de arquivo com os dados da investigação. Era um calhamaço enorme, com fotos, documentos, e etc. Ele jogou sobre a mesa sem dizer nada.

Palheiros puxou a cadeira e sentou-se. Os dois se olharam em silêncio por um longo tempo.
Era fácil descrever o Palheiros. Homem, já perto de se aposentar, com sessenta e poucos anos. Os dentes amarelos pelo cigarro. Um pigarro permanente na garganta, vicio pelo café. Gravata mal amarrada no pescoço, terno puído, embora de qualidade. Bigodão amarelado pela nicotina e cabelos vastos, branquíssimos, cuidadosamente arrumados. Bolsas gordas sob os olhos denunciavam seu fraco pela bebida.

Foi Rogério que rompeu o silêncio.

-Alguma notícia do casal?
-Ainda estão no CTI. – Respondeu Palheiros.
-E as buscas, Doutor?
-Até agora nada, infelizmente. Mas… Vamos começar novamente. Quer outro cigarro? -Perguntou puxando o maço do bolso. Ele fumava um cigarro barato e fedido.Rogério aceitou.
-Tudo bem. Tudo bem.
-Você estava vajando.
-Isso mesmo. Viajando para a Coreia a trabalho.
-Perfeito. Aí…
-Eu liguei para casa, para avisar que tinha chegado. Mas não tinha sinal. Achei que pudesse ser um defeito.
-Então você foi para a sua casa. Passou em algum lugar?
-Sim, passei numa floricultura. Comprei flores. De lá fui para a casa no mesmo taxi. Quando cheguei na porta do condomínio, o seu Lino, o porteiro, veio correndo com uma expressão estranha.
-Estranha como?
-Grave, uma expressão de angústia.
-Angústia?
-Isso.
-Esse Seu lino… Você sabe quanto tempo ele trabalha lá?
-Tem acho que uns doze anos, ou quinze.
-Ok, vamos verificar isso. Continue.
-Ele veio até o taxi, mandou baixar o vidro e me disse que aconteceu um “problema na minha casa”. -Disse Rogério desenhando aspas no ar com os dedos.
-E então?
-Pela cara dele eu vi logo que tinha a ver com minha esposa.
Mandei o taxi acelerar. É um longo caminho da entrada do condomínio até a minha casa.
-Uma das mais caras, confere?
-Sim senhor. Das mais caras e antigas. Ela era a última que não foi demolida para a construção do condomínio. Quando vi me apaixonei e mandei reformar.
-Prossiga, por favor.
-Assim que o taxi chegou eu vi o carro de cabeça para baixo no jardim. O taxista gritou um palavrão. Parece que conhecia o cara. Aí vocês estavam lá, com carros de polícia, perícia… Os bombeiros já tinham ido embora. Quando vi a casa queimada, parcialmente destruída, senti que ali terminava minha vida… Mas era só o início do calvário que estou passando.
-E os dois? Qual sua ligação com a Senhora Martina Ferraz e o senhor Carlos Eduardo Brandão?
-Não sei. Nunca os vi, para falar a verdade. Não faço ideia do que essas pessoas faziam na minha casa.
-Nem um palpite?
-Bem, palpite a gente sempre tem. Penso que talvez eles tenham ido de taxi até lá. Talvez conhecessem minha mulher.
-E por que eles matariam o taxista daquele jeito? Por que virariam o carro de cabeça para baixo no jardim?
-Eu… Eu não sei. Não faço ideia.
-Consta aqui que sua esposa tinha um polpudo seguro de vida em seu nome.
-Sim. Tinha. Como eu tenho em nome dela.
-Hummm. Certo. Mas quem sumiu foi ela.
-Doutor Palheiros, não me leve a mal, mas eu gostaria de mais informações. Minha esposa estava gravida. Ela não pode ter sumido do nada. As câmeras do condomínio não mostram nada? O senhor conseguiu alguma informação?
-Bem… Sim e não. Temos o video da segurança, mas ele só mostra o taxi entrando. Não dá pra ver se o casal estava dentro. Sua esposa chegou do trabalho horas antes. Não saiu de lá…
-Merda! – Gemeu Rogério, batendo na mesa. -Não é possível! Uma pessoa não some do nada.
-Pelo menos não ficou queimada como os dois. Nem sem a cabeça como o… Com era o nem dele mesmo? Só um minuto… Aqui, aqui está, Francisco Araújo.
-Mas e as investigações?
-Calma. Temos que ter calma. Ela pode ter sido sequestrada. Trabalhamos com muitos cenários, seu Rogério.
-Mas eles teriam pedido resgate. Por que botar fogo na casa?
-Não sei. Me diga o senhor. O que o senhor acha?
-Eu estou farto desse joguinho de polícia, Doutor Palheiros! A minha mulher sumiu, gravida, quase tendo nosso bebê. Botam fogo na minha casa, duas pessoas desconhecidas aparecem queimadas quase ate a morte, um corpo carbonizado sem cabeça na minha sala… Eu preciso de respostas, senhor. Quero saber o rumo das investigações.
-Contenha-se, por favor. Tome, pegue outro cigarro aí… Ficar nervoso não vai nos levar a nada. O senhor perde a razão, acaba preso por desacato. Sabe como é.
-Des-desculpe. Mas é que…
-Eu entendo. Eu entendo. Mas e o seguro? Me conta do seguro.
-Ora, sei lá do seguro? Foda-se a porra do seguro! Meu advogado que fez.
-Entenda, senhor Rogério. Se sua esposa sumiu, ela pode estar viva. A seguradora não pagará por desaparecimentos. Elas só pagam mediante existência do corpo.
-Doutor… Não me leve a mal, mas essa pergunta quem deveria fazer sou eu. Afinal, quem investiga o sumiço da minha esposa a quase uma semana é o senhor!
-Ok, seu Rogério. Vou falar francamente a minha desconfiança.
-Sim. Por favor.
-Sequestro. Quem fez sabia que o senhor era um homem abastado.
-Mas… E aquelas pessoas?
-O senhor já ouviu a história do bandido que assaltava as casas e deixava calcinhas usadas dentro dos cofres?
-Não.
-Era um ladrão famoso no inicio do século. Ele tinha uma habilidade incomum para invadir e furtar joias e dinheiro de cofres. Mas ele sempre deixava uma calcinha vermelha usada no cofre roubado. Seu apelido passou a “o bandido da calcinha vermelha”.
-Mas… Por que?
-Aí que está, seu Rogério! -Disse Palheiros enchendo o copinho plastico com café amargo. Tomou o café morno de um só gole. – Ele fazia isso para confundir. A imprensa só falava da calcinha, do modelo da roupa íntima, a marca, onde poderia ter sido comprada… do fato dela estar usada… Isso ocupava tanto espaço que mal sobrava para a investigação do método de arrombamento do larápio.
-Pegaram ele?
-Nunca.
-E como acabou?
-Um belo dia parou. Os investigadores da época concluíram que ele morreu antes de ser descoberto.
-Mas o que as calcinhas tem a ver com um corpo sem cabeça carbonizado na minha sala e duas pessoas gravemente queimadas, um carro de cabeça para baixo no meu jardim?
-Temos que entender onde estão os crimes. Há diversas coisas estranhas neste caso, seu Rogério. O primeiro deles é quem botou fogo na casa. E porque ela só queimou do primeiro andar para cima, deixando o porão sem queimar? O segundo crime é o homem sem cabeça. O laudo da necropsia mostrou que ele foi decapitado antes de queimar. Assim, concluímos na perícia da casa que ele queimou com a sala.
-E o casal?
-O casal conseguiu se manter inteiro por um bom tempo, mas foram forçados a fugir, provavelmente em decorrência da fumaça na casa. Na fuga, ao passar pela sala em chamas ficaram gravemente queimados.
-Mas isso me parece estranho.
-Sem duvida. Alguém ou alguma coisa impediu o casal de fugir rapidamente da casa. É como se precisassem fugir, mas tivessem medo de sair da casa, mesmo com ela em chamas.
-Mas… Mas o que?
-É o que esperamos descobrir. Talvez a pessoa que os impediu de fugir tenha levado sua esposa. Como a polícia Técnica não encontrou vestígio de outro corpo carbonizado, ela pode ter sido levada. Ela tem algum histórico de depressão? De visões, paranóia?
-Não.
-Ela toma remédios?
-Não. Nada fora do comum. Só as vitaminas da gravidez.
-Hum… Anotando. Ok.
-Inimigos, desafetos profissionais?
-Nada.
-E o senhor?
-Também não. Sou um empresário bem sucedido.
-Certo. Certo. Sem inimigos então. Nem ex-sócio briguento, nada assim?
-Nada.
-O relatório dos bombeiros menciona grandes quantidades de antiguidades e material de alto valor no porão. Estranhamente a parte intacta da casa. Não parece estranho para o senhor? Tudo queima menos as artes, o dinheiro?
-Bem… O porão da casa era bem pequeno e simples. Na reforma expandimos e selei a rocha para abrigar minha adega e minha sala climatizada para as obras de arte. Eu também estocava…
-Estocava?
-Estocava antiguidades. Eu pretendia abrir um antiquário daqui a uns anos e estava coletando coisas, o senhor sabe.
-Não não sei. -Sentenciou o policial.
-Bem, é isso. E juntava coisas para vender por um bom dinheiro daqui a uns anos. Talvez a parede de pedra tenha isolado o cômodo, não sei. Felizmente a casa não desabou, ou o teto teria afundado e destruiria tudo lá em baixo.
-Muito bem… O senhor não pretende viajar por estes dias, certo?
-Claro que não, Doutor Palheiros! Eu quero saber onde está minha mulher.
-Você deixou os dados do apart-hotel com o Alysson?
-Sim senhor. Ta tudo aí. Todos os meus contatos.
-Perfeito. O senhor está liberado por agora. Se precisarmos de mais perguntas, peço a gentileza de comparecer aqui ao distrito novamente. -Disse Palheiros, juntando os dados da pasta sobre a mesa.
-Doutor Palheiros?
-Sim?
-Ache minha mulher! Por favor! – Disse Rogério apertando forte a mão calosa e seca de Palheiros. O velho policial bigodudo olhou nos olhos marejados daquele homem e percebeu que ele realmente não fazia ideia de onde a esposa grávida estava.

Quase uma hora depois, Rogério chegava em seu quarto no Quintessentia Lofts.
Ele se jogou na cama e mirou o teto.
Algo estava errado. Ele sabia. Mas não sabia o que. Seus olhos ardiam.
Rogério tirou a roupa e tomou um banho quente. Jogou-se na cama. O celular exibia mensagens de amigos e colegas do trabalho dando força. Tudo que ele queria era uma mensagem de um sequestrador ou mesmo dela.
Rogério fechou os olhos. Não queria dormir. Precisava lembrar de algo. Algo importante.
Então ele finalmente se lembrou. Havia algo que ele havia esquecido de falar com a polícia. No dia que ligou para sua esposa, ela parecia apreensiva. Disse que estava com uma menina na porta.
Rogério carregou o bloco de notas do celular e fez uma anotação de avisar ao Palheiros sobre a tal menina da porta que Regina havia dito no telefone.
Rogério apagou as luzes, deitou-se na cama e ficou pensando em aquilo tudo. Na dor que ele sentia por não saber onde Regina estava. No susto e tristeza de ver a casa deles como um esqueleto enegrecido consumido pelo fogo… As imagens não saíam de sua mente. Rogério desligou-se do sofrimento. Pensou nos bons momentos que passara com ela. Suas viagens, os passeios. O dia que descobriram que iriam ter um filho. A surpresa da descoberta de que era menina…
Minutos depois, sem que percebesse, ele dormiu.

Rogério acordou com um grito horrível dentro do quarto.
Ele saltou da cama para ver, aparecendo fugazmente na tela desligada da televisão o rosto de Regina contorcendo-se de dor.
grito-sinistro
-Regina! Regina!- Ele saltou até a Tv, mas a imagem gradualmente se desvanecia, até sumir.
-Reginaaaaaaaa! – Ele gritou desesperado.

Então, antes que pudesse ter qualquer reação, alguém bateu na porta do quarto.

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Táquipariu!!!! esse suspense tá de matar! (sem trocadilhos hahahhaha), Muito bom mesmo!!! faz tempo que eu não vejo um conto tão bom!!!!

  2. eu não entendii philipe, pq eu tava na parte 8 e uma velha falou para 7 crianças feias hehe, pega-la, ai acabou assim a parte 8, mas ai a parte 9 chegou e tava no carlão e não tinha muito a ver com a Regina sendo levada pelos diabinhos!

  3. mas eu não to entendendoo, tava na regina e do nada passou para o Rogério, num lugar tipo delegacia, ou um lugar que desvendam esses tipos de mistéis sobrenaturais sei lá!
    Mas ai eu pulei tooda a conversa que ele teve com o velinho sinistro, ai eu tomo banho tal.. e ai finalmente a Regina, mas como ela foi parar na TV e pq ela tava se contorcendo de dor????
    me explicaa haha!!!

  4. Phillipe,
    Entendi o salto na historia para os acontecimentos depois da “abdução” da Regina e as suspeitas recaindo sobre o Roberto.
    Agora o que não engoli foi como ele não chegou nem a pensar que ficar invocando espíritos no porão ou abrindo portais entre dimensões não poderia ter nada a ver com o sumiço da sua mulher, a morte bizarra do taxista e o incêndio parcial da casa…. ainda assim, ótimo texto!

  5. Cara, cadê a parte 10!! hahahaahahhahahah, eu já estou com sintomas de crise de abstinência aguda!!!! ou será que o Philipe andou brincando com algum portal do além e está fazendo companhia para Regina? hahahahahahahhaha

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