A caixa – parte 4

O senhor Alfredo falou mais algumas coisas. Confesso que não prestei a mínima atenção. Minha cabeça estava a mil por hora, maquinando aquelas informações. A caixa dele estava diminuindo. Será que a minha também estava?

Surtei naquele lance. O velho dentro da caixa falava algumas coisas sobre como ele tentou sair, sem sucesso. Ele achava que tinha conseguido me atrair telepaticamente para ajudar ele. Estava ali, falando de Jesus e coisa e tal, mas eu só pensava em dar o fora daquele lugar maldito. Não ver nada já estava me incomodando num, nível próximo da loucura.

Eu sentei ali perto da caixa dele. Fiquei ouvindo ele falar. Peguei o “bonde andando”, mas tentei me concentrar no que ele dizia, pois poderia haver alguma informação importante que me escapava naquele momento.

-…Então eu acho que foi a arrebatação, sabe garoto? -Ele dizia. Eu me irritei com aquele jeito dele me chamar de garoto. Dei corda. Eu precisava desesperadamente ouvir alguém, mesmo que não pudesse tirar aquele sujeito dali, era outra pessoa, não era só eu. Aquilo me consolava de uma certa forma.

-Arrebatação, seu Alfredo?

-Sim, garoto. O fim do mundo, fim dos tempos. O juízo final, sabe? Você acredita em Deus?

-Eu? Um… Sinceramente, seu Alfredo, eu não sei.

-Há! – Ele deu uma gargalhada sonora la dentro da caixa. Parecia ter feito uma grande descoberta.

-Que foi?

-Então, eu sou ateu, você não sabe se acredita ou não, ou seja, você é um ateu covarde, garoto. Pense comigo: O que um velho e um garoto fazem num lugar frio e escuro? Estamos no inferno!

-Inferno? – Me arrepiei. Aquilo no escuro soava dramaticamente assustador. Alfredo ria na caixa de uma forma quase maníaca.

-Eu acho que aconteceu o julgamento final. Os que tinham que ir para o céu, foram. Os que sobraram, estão aqui. – Ele disse. Alfredo parecia satisfeito. Suas palavras me deixavam horrorizado em pensar que talvez aquilo pudesse até ser verdade. Mas ele parecia incoerentemente satisfeito e eu não entendia porque. Foi bem depois daquilo que pensando nele, eu entendi. Ele deve ter ficado muito tempo pensando no lugar em como ele chegou ali. Ele se lembrava de muito mais detalhes do que eu sobre a noite que precedera a entrada na caixa. Alfredo  estava feliz porque mesmo estando errado, ele havia pelo menos conseguido elaborar alguma conjectura que justificava em parte a insólita situação daquele lugar. Do nosso cativeiro. Enquanto esteve sozinho, ele deve ter se confrontado, como eu me confrontei, só que em maior grau com a possibilidade de ter enlouquecido.

-Garoto?

-Sim?

-Ah, está aí. Que susto. Achei que você tinha ido embora. Não vá embora, tá? – Ele parecia assustado. Estava inseguro. Era compreensível.

Mas eu não consegui dizer nada. Eu não tinha certeza se realmente gostaria de ficar ali com ele. Sem ter o que dizer, optei por alimentar a conversa.

-Mas seu Alfredo, me diz uma coisa, como que pode isso, quer dizer… Somos apenas nós dois aqui. Com tanta gente desgraçada no mundo, assassinos psicopatas, ditadores, facínoras… Por que logo nós dois condenados a essas jaulas?

Alfredo ficou quieto. Ele não disse nada. Eu podia imaginar o velho sentado, do outro lado da chapa de metal, coçando a cabeça e tentando achar uma justificativa para meu argumento.

Passaram-se cerca de vinte minutos. Eu me encostei na caixa dele e fiquei pensando na vida. Talvez não tivesse sido uma boa ideia esperar focar noivo para logo depois cair na real de que eu nunca amara Jane. Daí comecei a pensar na minha mãe, que deixei em Fátima. Eu era filho de um português chamado Arlindo e Belmira, uma brasileira. Nós morávamos em Évora quando eu era pequeno, mas depois que meu pai morreu, comecei cedo a trabalhar. Minha mãe era aposentada, e eu havia saído de casa para trabalhar num jornal de bairro. Minha pretensão era como jornalista, me tornar um famoso escritor, com carreira reconhecida, tarimba e glamour. Meu sonho era viajar pelo mundo contando dos mais interessantes lugares. Acabei indo parar em São Paulo, onde me empreguei num pequeno jornalzinho de bairro e o que eu ganhava ia para minha mãe, e o que restava mal dava para me manter. Por isso eu dividia um apartamento com Cabelinho, um amigo meu que vivia em dois estados: Bêbado ou maconhado. Ele tinha aquele apelido porque não cortava o cabelo e sua aparência era a de um mendigo. Cabelinho era formado em filosofia e estava escrevendo (coisa que nunca vi acontecer, apenas ouvi falar) sua tese de doutorado. Eu sentia saudade de Cabelinho e de meus outros amigos do bar, do jornal… Minha mãe, como ela ficaria sem as minhas cartas. Eu ligava pra ela toda segunda-feira. Era tradição, eu precisava dizer que estava bem para que a semana dela efetivamente começasse. Eu me sentia tremendamente responsável por não dar notícias. Todo mundo ficaria preocupado. As pessoas do jornal certamente pensariam que eu pulei do barco, porque poucos dias antes eu estava falando com a Marina sobre como era uma merreca que a Folha dos Jardins pagava a gente. Ela disse que pensava em sair e eu, embora nunca realmente tivesse pensado nisso, disse que também pensava e que poderia pular fora a qualquer momento, desde que a “oportunidade certa” passasse na minha frente.

Lembro claramente quando Marina tomou um gole de café e me disse que: “a oportunidade é uma velha careca e sem dentes, com um só fio de cabelo na cabeça. Se você não agarrar, ela vai embora e não volta mais.”

Eu fiquei ali pensando por que diabos as pessoas imaginam a oportunidade como uma velha careca. E por que sem dente? O que ser careca e sem dente tem a ver com a oportunidade? Por que uma velha? Quem seria o maluco de agarrar no único fio de cabelo duma velha e careca que passa diante da gente? Engraçado que esses provérbios só podem ser feitos por pessoas do nível etílico do Cabelinho.

Meus pensamentos mundanos foram interrompidos

-Tá aí, garoto? – Surgiu a voz dele.

-Hã? Sim. Tô aqui.

-Eu acho que… Talvez fossemos uns merdas e não merecíamos ir para o paraíso. Mas não éramos bostas completas de modo que os anjos prenderam a gente aqui. Eles estão esperando a gente se posicionar, para definir se daqui a gente vai para o céu ou vai para o inferno. – Ele disse, com uma voz triunfante.

Novamente, o velho me deixava sem argumentos. Eu não acreditava naquilo, mas não podia e nem tinha elementos para negar aquilo que ele pensava.

-Então estamos mortos, seu Alfredo?

-Sim, garoto.

-Assim, então o senhor quer dizer que esse aqui é o purgatório?

-Eu penso que sim, garoto.

-Bom, neste caso, se o senhor se converter, deverá acontecer alguma coisa, e quem sabe o senhor sai daqui?

-Esse é o problema, filho. Eu não acho que deva me converter apenas para sair dessa porcaria de caixa. Se me acharam indigno de estar na festa, eles que vão todos para a puta que os pariu!  – O velho ficou brabo e eu comecei a rir do jeito que ele falou.

-Tá rindo? Vai rindo mesmo que você vai ver onde que a gente vai parar… – Ele disse.

Houve um momento de silêncio. Nenhum de nós dois disse qualquer coisa, mas estávamos ali. Isso nos confortava.

Rompi o silêncio com uma pergunta que me ocorreu na hora:

-Seu Alfredo?

-Fala filho.

-Bom, nós dois estamos aqui… Se estamos os dois aqui, será que pode ter mais gente?

-… – Ele não disse nada. Estava pensando. Logo depois disparou: – Sabe, garoto, quando eu acordei nessa joça aqui, eu jurava que tinha alguém comigo. Eu andei de um lado para o outro por dias e dias. Eu sentia a presença, indo, passando por mim. Teve um dia que… Ah, deixa pra lá.

-Hã? Fala, seu Alfredo.

-Não, não é nada. Bobagem de velho. -Ele disse.

-Por favor, seu Alfredo. Eu sou muito curioso, pô. Isso é tortura.

-Bom, eu não ia dizer, porque não queria te assustar, sabe? É que um dos dias, eu estava dormindo perto dum canto e senti a presença. Eu fingi que estava dormindo e senti uma mão encostar em mim. Eu me tremi todo e dei um berro aí sumiu. Eu quase esgotei a bateria do celular naquele dia, iluminando com ele. Mas não vi nada, não vi o que era…

Enquanto o velho falava dentro da caixa, um cagaço supremo se apossou do meu corpo. Eu cheguei a sentir algo passar atrás de mim. Um deslocamento de ar. Pensei que talvez fosse a minha imaginação. O velho devia estar louco para descontar sua frustração em alguém e estava fazendo joguinhos mentais comigo.

-Porra seu Alfredo…

-Calma, garoto. Eu posso ter sonhado. -Ele disse e eu senti o sorriso em suas palavras. Estava me sacaneando. Eu fiquei meio puto, porque naquela altura eu era a única pessoa que o velho tinha, a única companhia. Eu então disse a ele uma coisa do qual me arrependi depois.

-Seu Alfredo… Quem garante para o senhor que quem encostou no senhor não era eu?

O velho emudeceu. Eu ouvi ele se arrastando dentro da caixa. Foi para longe.

Eu esperei alguns minutos e comecei a rir. Mas o velho estava mudo. Então eu senti um certo remorso de ter assustado ele. resolvi chamar e pedir desculpas.

-Ei, seu Alfredo?

-…- Nada. Ele estava mudo.

-Seu Alfredo, desculpa, eu tava brincando. – Eu disse. Mas não surtiu efeito. O velho tinha pirado da cabeça. Certamente à aquela altura estava considerando que eu era um… Sei lá, diabo. Ou coisa do gênero.

Fiquei ali, colado na caixa, pedindo desculpas, explicando que foi uma piadinha, mas nada adiantou. O velho emudeceu e resolveu parar de falar comigo.

Me senti meio indignado, afinal quem começou aquela brincadeira babaquinha de fazer medinho não tinha sido eu. Como dizia minha mãe, passarinho que come pedra tem que saber o cu que tem. E seu Alfredo parecia que não estava disposto a provar do próprio veneno.

-Bom, seu Alfredo. Se o senhor não vai me responder, suponho que minha presença aqui está incomodando. Vou embora. Tenha uma boa noite. -Eu disse na esperança de que ante a ameaça de ficar solitario novamente o velho dissesse alguma coisa.

Com ele já não me respondia, e uma vez que estava tarde, resolvi voltar para o meu canto.  Avancei decidido em direção à parede. Fui andando na escuridão. Felizmente eu tinha um bom raciocínio espacial e sabia exatamente para onde devia seguir.

Enquanto andava eu pensava naquela situação do velho na caixa. Suas ideias, suas elocubrações. Memorizei a voz dele, aquela história sobre o trem… Suas ideias sobre o fim do mundo, e tal. Enquanto eu andava fui pensando naquele lance que ele contou da coisa que agarrou na perna dele. E confesso, o arrepio voltou com força total. E se o velho não estivesse inventando? E se ele realmente tivesse vivenciado aquilo? Só então comecei a pensar que talvez minha simples brincadeira tivesse aterrorizado tanto aquele homem que ele simplesmente acreditou piamente que eu não era gente.

Enquanto eu andava cismei que tinha uma coisa que estava andando junto de mim. Mas eu não via estava escuro. Porra, que cagaço. Eu dava um passo e sentia a coisa dando um também. Eu ficava parado e podia sentir o sutil deslocamento de ar perto de mim. Comecei a pensar se talvez o velho não tivesse com a razão. Alguma coisa poderia estar ali, me seguindo, à espreita, me vigiando na escuridão, mantendo-se sempre a uma distância segura. Quando dei por mim, eu estava trêmulo. Muito pior que a sensação de medo de estar sozinho era a perspectiva de haver alguma “coisa” ali comigo.

Eu parei no escuro. A coisa parou. Eu estava tentando forçar os ouvidos na esperança de escutar alguma coisa. Ouvi Alfredo gritando ao longe. Ainda gritando por socorro. A essa altura ele devia estar pensando se não sonhou com a minha presença… Mas os gritos de terror dele eram um alívio pra mim, que sabia que pelo menos eu não havia sonhado com ele. Se bem que eu não sei dizer agora se isso era um bom ou mau sinal.

Mas eu começava a cristalizar na minha mente a ideia de que havia mais alguma coisa ali comigo na caixa.

Reuni toda coragem que eu jamais pensei que tivesse. Eu olhei para trás e sussurrei:

-Quem é você?

Eu pensei que não haveria resposta, mas eu quase me mijei quando ouvi uma voz fraca gemer baixinho, num sussurro, perto do meu ouvido:

-Muuungo!

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Porra, assim até eu me cago de medo, Mungo é o apelido que meu pai me deu. É, agora o Anderson já pode perder a vergonha e se cagar ali mesmo com o Muuungo o observando (presumo que o Muuungo possa ver nessa escuridão)

      • Meu pai me deu o apelido do Mungo por causa do Mungo Jerry, por causa da minha costeleta falha, mas meu pai cisma que é parecida com a do Mungo Jerry

  2. Só uma curiosidade.. O sr. Alfredo disse que andou por dias ali na caixa, e o Anderson tem fome e sede.
    Ou o celular do Alfredo é um xing-mp-5009 com gps, bluetooth, cantil e barras de cereais, ou ele esta de sacanagem mesmo com o Anderson.

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