Um carro chamado Karmann Ghia

Eu estava dirigindo meu carro na Ponte Rio-Niterói. No som tocava Roberto Carlos (curioso como Roberto Carlos ainda domina as noites e madrugadas românticas do AM), e era tarde da noite.

A ponte estava completamente livre e durante um bom percurso, somente meu carro deslizava pela grotesca serpente de concreto sobre a Baía da Guanabara. Perdido em pensamentos distantes, minha atenção foi desviada por um bólido branco, conversível. Fazia frio e me espantei de ver a capota aberta.

Ali estava ele… Um Karmann Ghia branco, em toda sua glória.

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Reduzi a velocidade do Tucson para girar ao redor do Karmann Ghia. Acho que o motorista, um homem de idade, cabelos brancos esvoaçantes e um bigode e barba hipster ficou meio bolado com minhas manobras automotivas, mas eu estava disposto a qualquer coisa para dar uma bela olhada naquele carro, tão belo, tão conservado.

O Karmann Ghia é um carro que eu gosto muito, porque eu já tive um. Foi o meu primeiro carro. Era vermelho, conversível. Eu não lembro exatamente o porquê, meu pai resolveu me dar um carro quando eu fiz dezoito anos. Naquele tempo, a grana só dava mesmo para comprar um carro usado, e precisava ser um carro usado bem barato. Mas é obvio, existem carros usados e verdadeiras preciosidades antigas. Depois de muito vasculhar os jornais em busca de um carro legal, -naquele tempo não tinha as facilidades de hoje, tipo o Webmotors.com  – achar um carro era tarefa que misturava sorte com muito trabalho duro. Mas finalmente achei um! Era um antigo MP Lafer. Talvez você não tenha ligado “o nome à pessoa”, hehehe.

O Mp Lafer foi um dos mais bacanas carros montados no chassi do fusca.


MUSTANG SÃO PAULO 23/08/2012 - JORNAL DO CARRO - CARRO DO LEITOR - FOTOS DO MP LAFER 1977 DE OSVALDO TANIL.FOTO SERGIO CASTRO/AE

 

Apesar de seu visual retrô, era “moderno” – Talvez um percursor supremo do estilo retrô no mundo, o MP Lafer surgiu em 1974 pelas mãos de Percival Lafer, que se inspirou no MG TD 1952 que pertencia a um funcionário de sua fábrica de móveis. A réplica usava mecânica do Volkswagen Fusca. O motor é o boxer 1.6 a gasolina que gera cerca de 60 cv de potência e o câmbio, manual de quatro marchas. A estrutura era de fibra de vidro, montada de forma similar ao Puma, ao Bugre e outros. O carro, não é exatamente um carro “para a família”. Dá mal e porcamente para duas pessoas. O MP Lafer foi fabricado dos anos 70 até 1990, e foram produzidas somente 4,3 mil unidades.

Seu aspecto mais legal era o painel, todo de madeira, com um monte de reloginhos.

MUSTANG SÃO PAULO 23/08/2012 - JORNAL DO CARRO - CARRO DO LEITOR - FOTOS DO MP LAFER 1977 DE OSVALDO TANIL.FOTO SERGIO CASTRO/AE

Então, após achar o tal MP Lafer que cabia no bolso, fomos até uma loja de carros usados, onde pude ver o carro. Ao vivo era ainda mais legal que nas fotos. Eu ja me imaginava passeando pela Serra de Petrópolis com capota arriada num dia bonito…

O vendedor foi bastante solícito. Disse que poderia esperar até o dia seguinte, quando o banco liberaria o dinheiro e poderíamos fazer o pagamento do MP Lafer. (a loja só aceitava o pagamento do carro em dinheiro, acredita?)

O vendedor estava acostumado com esses agendamentos de banco, e falou que iria reservar o carro pra nós. Pegou uma plaquinha escrita “vendido” e botou no vidro, apertou minha mão e tudo, me dando parabéns pela nova “aquisição”.

Eu e meus pais fomos para casa felizes. Naquela noite, eu mal consegui dormir. Só pensava no carrão.

No dia seguinte, passamos no banco e fomos até a loja, num lugar longe pra dedéu, lá num subúrbio do Rio. Chegamos lá, o vendedor veio falar com a gente, todo sem graça. Parecia cachorro que fez cocô no sofá.

-Gente… ò… Seguinte… – Ele disse desviando os olhos.

Vi em câmera lenta a desgraça que ia dar pela cara dele: – Vendi o carro!

– O que? – Meu pai gritou.

O vendedor disse que logo que a gente saiu da loja, no dia anterior, surgiu um homem com um maço de dinheiro na mão e levou o carro. Ele não pôde fazer nada. Não podia “trocar o certo pelo “incerto”.

Poucas vezes na vida eu vi meu pai tão bravo. Ele parecia a ponto de dar um murro na cara do vendedor. Chamou o sujeito de moleque e fomos embora.

Foi um contratempo dramático nos meus sonhos. Fiquei mal sem meu MP Lafer.

No dia seguinte, fui para o jornal em busca de mais algum carro igual aquele, (barato). Depois de muito fuçar, dei de cara com um anuncio de carro com nome estranho que eu não sabia qual era. Karmann Ghia. Quando mostrei ao meu pai o anuncio, que por coincidência custava o mesmo valor do MP Lafer, meu pai abriu um sorriso.

– È um dos carros mais legais que já fizeram! – Ele disse.

Então, fui pesquisar mais sobre o Karmann Ghia.

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Diferente do Mp Lafer que era uma réplica de carro antigo feita em fibra, o Karmann Ghia era um carro “de verdade”. Ele era um carro esportivo de dois lugares produzido pela Volkswagen, projetado pela empresa italiana Ghia, e construído pela empresa alemã Karmann. Era estranho, pois apesar dos 445 000 Karmann Ghias produzidos entre 1955 e 1975, eu até então nunca tinha visto nenhum.

Foi num dia de uma das semifinais da Copa do Mundo de 94. Fomos até o tal lugar, e com a lição aprendida, com um bolo de dinheiro na mão. A casa do sujeito, era um dos lugares mais escondidos que eu já vi. No meio de um subúrbio favelizado, longe pra dedéu.  Após rodar, rodar, nos perder por horas, chegamos finalmente à casa do sujeito e vi o Karmann Ghia 68 parado na garagem. Era lindo, vermelho, conversível, com diversas alterações; entre elas, um volante de madeira (acho que era do Puma) que obviamente não era o original.

Fechamos o negócio rapido, pois estava escurecendo e ninguém queria ficar dando mole bem na hora do jogo da copa num lugar daqueles. Lembro de ver a mulher do dono do carro chorando, pois era muito apegada a ele. Ela tinha engravidado e eles precisaram vender o Karmann Ghia para fazer um puxadinho na casa pro quartinho do neném.

E foi assim que tive um Karmann Ghia, mas que praticamente não dirigi. É que até aquele momento, eu nem tinha carteira de motorista ainda. Embora estivesse fazendo aulas com um velho meio pirado, de uma autoescola fundo de quintal, que passava mais tempo procurando mulher do que me ensinando propriamente a dirigir, minhas esperanças eram dar um “trato” no carrão antes de tirar a carteira.

O Karmann Ghia que acabávamos de comprar, estava bastante detonado, mas aos poucos fomos ajustando e arrumando ele. Deu um trabalhão danado, porque muitas peças de carros antigos são difíceis de achar. Eu ia em tudo que era feira de carro antigo, e comprava as peças. Frisos, emblemas de metal, lanternas… Gradualmente, meu carro foi ficando mais e mais legal.

Meu pai pagou para um capoteiro refazer do zero a capota que estava bem surrada e ele ficou parecendo novinho. Com um polimento, o carro ganhou uma nova vida.

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Esse não é o meu, mas é idêntico. (o meu estava sem os dois frisos cromados na lateral)

A história do Karmann Ghia é bem interessante. No início dos anos 1950, a Volkswagen só produzia o Fusca a Kombi, que eram típicos carros do “pós-guerra”. Os modelos eram  resistentes, sóbrios e baratos. Mas a recuperação e euforia do pós guerra no mundo, demandava carros mais elegantes e luxuosos. O Karmann Ghia surgiu atendendo plenamente a esse mercado. O primeiro projeto do carro foi recusado por ser muito feio. A solução veio do estudio de design Ghia, da Itália, que em 5 meses apresentou à Karmann o protótipo, já montado no chassi do fusca.1972_volkswagen_karmann_ghia-pic-61799

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Foi um sucesso estrondoso. O Karmann Ghia fez tanto sucesso que décadas depois, foi “modernizado” posteriormente, dando origem ao Karmann Ghia TC ( que sempre odiei, por achar que o design legal mesmo era o arredondado, orgânico e feito pela Ghia).

 

O lado trágico do meu Karmann Ghia é que eu mesmo dirigi ele muito pouco. Por ter dado muito trabalho (todo meu salario de ajudante de desenhista era gasto arrumando ele) e o resultado é que quanto mais legal ele ficava, mais eu não me achava preparado para dirigi-lo e eventualmente arranhá-lo (até porque não sobrava grana para seguro). De vez em quando, meu amigo Cláudio dirigia ele pra mim, e meu pai também dirigia. Uma coisa interessante sobre o Karmann Ghia é que ele era o carro com a maior liquidez do universo: Em 100% das vezes que paramos para abastecer apareceu alguém para comprar.

Mas eu não ia vender o meu sonho num posto de gasolina!

Um dia, em sua grande inauguração, viajamos com ele para Três Rios.

Eis que justamente lá, no meio da Ponte Rio-Niterói, uma mulher maluca tem uma súbita “ausência” ao volante e acelera o carro dela e praticamente PASSA POR CIMA do meu Karmann Ghia. Eu estava no banco da frente, meu pai dirigia ao meu lado, e meu irmão quase caiu do carro no impacto. A infeliz-louca-sem-seguro disse que não sabia o que havia acontecido, e o resultado pratico é que ela DESTRUIU a traseira do meu carro. Eu não tinha dinheiro para pagar o conserto, e nem ela pagou nada. Foi cada um com seu prejuízo (eu sei que é ridículo!).

Assim, meu Karmann Ghia foi “encostado” na casa do meu tio, onde os cachorros dele comeram o estofado todo. O carro praticamente sucumbiu ao tempo, e ficou largado por quase uns três antos, até que finalmente conseguimos grana para levar o carro para uma oficina em três Rios, onde ele foi arrumado e praticamente reconstruído. Algum tempo depois, um gerente de banco da cidade que era colecionador de carros deu um lance irrecusável pelo Karmann Ghia, e nós vendemos.

Hoje em dia o Karmann Ghia conservado vale uma grana respeitável. Ainda existem em alguns sites carros desse tipo à venda, mas eles são cada vez mais raros, o que força o preço a subir.

Enquanto eu admirava o Karmnann Ghia branco, impecavelmente restaurado na ponte Rio Niterói ouvi o familiar som a buzina. Notei o velho sorrindo, abri o vidro acenei para ele.

-Tá lindo! – Gritei.

O velho hipster respondeu com um gentil aceno de cabeça. Já estava acostumado a ter todos babando ao redor de seu carrão.

Acelerei e ele foi ficando para trás no retrovisor. Dei uma última olhada na frente pontuda com duas grades do Karmann Ghia, um carro em que andei muito pouco, mas que estacionou para sempre no meu coração.

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Philipe, não sei se chegou a ter experiências com o tal do MP Lafer mais tarde, mas posso lhe garantir o seguinte: foi muito mais negócio ter pego o Karmann. Estes foras-de-série nacionais (categoria na qual o MP se insere) não costumam ser nenhum prodígio construtivo. De acabamento sofrível, dirigibilidade pouquíssimo refinada e de acerto de suspensão e direção pouco acertado para as novas dimensões que o “recorte de fusca” tomava, não eram senão a medida imediata para um país com poucas opções e muita ânsia de possuir automóveis parecidos com o que se tinha lá fora – tempos de importação proibida. Não é à toa que nos anos ’90, com a abertura desta cortina-de-ferro automotiva, houve a extinção em massa dos fora-de-série nacionais.
    Seu KG, de outra forma, era um carro muito melhor construído, cujo design, até hoje, é elemento cult em escala mundial. Poucos automóveis foram mais bem recepcionados em termos estéticos (e conseguiram linhas tão atemporais) como o Karmann. Sua potência não era tudo aquilo, mas lhe garanto que, como automóvel, estava anos-luz à frente de qualquer carro de fibra com motor de Fusca que tivemos nestas bandas.
    Aliás, um detalhe: o seu era originalmente conversível ou era convertido? Porque os originalmente conversíveis só tiveram 169 unidades produzidas aqui no Brasil. É raro pra caramba! Não é à toa que hoje, quando trocam de mãos, atingem cifras entre R$ 100.000,00 e R$ 150.000,00, quando em perfeitas condições.

    • Eu acho que o meu era convertido. Não creio que um conversível original tivesse ido oarar no buraco do tatu onde fomos encontrar ele. Devem ter serrado o teto dele; se bem que o meu carro era membro do Karmann ghia club e não sei se podia ter carro convertido naquele clube.

      • Há muito tempo que isto ocorreu? Creio que para um colecionador ter oferecido um cacau legal no seu KG, algo de especial tinha, até porque as versões convertidas e as versões de teto rígido só vieram a ter algum valor recentemente.
        Até meados dos anos 90 nosso “antigomobilismo” era algo que estava restrito a meia dúzia de aficcionados por aí. Carro antigo, para ter valor, era só quando algo muito especial e, 100% das vezes, só quando importados; nacional mesmo era descartado – e foi aí que perdemos um volume imenso de bons carros os quais foram simplesmente destruídos justamente por não ter valor algum – mas isso seria conversa para outra ocasião. Veja, no final daquela década estava à venda em Curitiba um Mustang hard top ano 1965 que pertenceu desde novo a uma mesma família, ainda ostentando sua pintura de fábrica, por módicos R$ 4.000,00 reais (uns R$ 10.000,00 em dinheiro de hoje). Era um carro esporte, clássico, motor V8 de 4,8 litros de deslocamento, estado de conservação excelente… e que não vendeu! Ficou quase um ano anunciado até o dono desistir da venda e o manter, o que faz até hoje. Veja só como eramos pouco maduros, e como este mercado tinha liquidez zero.
        Nesta época, tudo entrava na baia de carro “velho”. Não me faltam exemplos de amigos que adquiriram automóveis que hoje valem perto de uma centena de milhar de reais em negócios que mais pareciam escambos, trocando com videocassetes, bicicletas, eletrodomésticos variados e outras permutas dignas dos tempos do descobrimento.
        Ficaria surpreso em saber quantas jóias já saíram de buracos por este Brasil, justamente porque esta cultura nasceu “do zero”, e um KG conversível, hoje objeto de coleção inestimável por estas bandas, não era senão só mais um carro “velho” não há muitas décadas atrás.
        Apenas para ilustrar, um exemplo de como éramos ingênuos. Em 1969 a revista Quatro Rodas encomendou à Puma a produção de 4 automóveis esportivos especiais, com desenho exclusivo, para sortear entre seus leitores. Foram chamados de Puma GT-4R, e somente 4 saíram da fábrica. Depois de muitas décadas, apenas três deles tinham paradeiro conhecido. O último, veja só, foi localizado em 2008 (salvo engano) em estado de abandono, em uma quebrada qualquer no estado da Bahia. Um carro extremamente raro e cobiçado, abandonado à própria sorte num lugar sem importância.
        Por isso lhe digo: não ache tão improvável assim que tenha tido em suas mãos um dos raros e cobiçados KG conversíveis legítimos produzidos no Brasil.

  2. Caaara nostalgico, meu pai há uns 20 anos atrás trocou seu celular novinho por um karmann ghia vermelho já naquela época eu me apaixonei pelo carro (e olha que sou da tribo das motos), obrigado pelo post há muito tempo não vejo um, tem um tio distante de meu pai que ainda mantém o seu Karmann em casa restaurado, recentemente soube que ele mandou reformar para uma de suas filhar usar no casamento apenas o vi em foto mas juro que deu aquela inveja do bem.

  3. Poxa que legal Philipe …

    Eu possuo um Opala 1976 Especial, Marrom monocromático rs

    Tenho 21 anos rs … Vendi minha moto 2014 novinha pra comprar ele

    Está impecável…

    Foi um Sonho realizado !

  4. Realmente é um carro lindo, é charmoso, é elegante, é um carro que combina com natureza, estrada, liberdade. Enfim, sou apaixonado com antigos, tanto é que possuo um Fusca 1968 e até hoje estou em lua de mel com o mesmo, me faz gastar um pouco de grana e de vez em quando aparece alguns probleminhas, mas eu gosto muito do carro.

  5. Aiai…ainda me lembro de um dia na minha adolescência quando me apaixonei por um Karmnann Ghia rosa….mas não era um rosa qualquer, desses de "menininha" não….era quase prata…um rosado muito sutil….lindo! Foi amor a primeira vista…ainda sou louca pra ter um….

  6. Parabéns, amigo!
    Não somente pelo post, mas também pela história retratada.
    Gosto muito deste carro também. Tão moderno para sua época, que hoje, se bem conservado, pode ficar tranquilamente entre os carros de “elite”.

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