A configuração do Lamento

Outro dia eu resolvi (como sempre faço) assistir um filme antigo e acabei revendo Hellraiser. O trailer estrá aqui, mas tem ele completinho no Youtube.

É um filme de horror de 1987, portanto, hoje é cult. Hellraiser tem características interessantes. Além de explorar os temas sadomasoquismo, sobretudo o aspecto da dor como fonte de prazer, moralidade sob stress e do medo ele é baseado no livro “The Hellbound Heart”, do aclamado escritor britânico Clive Barker, que também veio a ser o diretor e roteirista da versão cinematográfica. Então, é basicamente como se o Tolkien saísse do caixão para fazer o roteiro e dirigir “O senhor do Anéis”.

O filme deu muito certo na época e a prova disso é que sete sequências foram produzidas (uma de gosto mais duvidoso que a outra).

Num resuminho bem básico, Hellraiser inicia com Frank Cotton comprando uma antiga relíquia em forma de cubo, conhecida como a Configuração do Lamento. Segundo a lenda, este cubo é capaz de abrir uma passagem para um reino de prazer sensual inimaginável. Em troca do prazer, o cubo exige a alma do usuário.


Assim que Frank resolve o quebra-cabeça e abre o cubo, ele entra em uma outra dimensão povoada pelos Cenobitas, criaturas deformadas, vestindo couro preto, que sentem prazer na dor. Só então Frank percebe que a noção de “prazer” dos Cenobitas não é a mesma que a sua. Mas aí é tarde… Ganchos e correntes saem da escuridão, e vão rasgando a carne de Frank, partindo seu corpo em pedaços. Frank é condenado a uma eternidade nessa outra dimensão, experimentando simultaneamente tortura e prazer.

Nem preciso dizer que me deu vontade imediata de fazer uma replica da caixa do Hellraiser. Falei com alguns amigos que gostaram da ideia, quiseram também  e assim iniciei a saga de construção da caixa. Meu objetivo era uma replica que fosse o mais próximo da do filme possível. Após mais de dez testes e experimentos diversos com materiais, raio laser e ácidos, finalmente consegui chegar num resultado que me agradou:

Acabei usando metal de verdade, porque é o que o autor da caixa do filme usou. Na verdade o processo que usei é exatamente o mesmo dele, uma técnica chamada chemical etching. Basicamente você mascara o desenho na placa de metal e joga ela num ácido, que pode ser um ácido clorídrico, sulfúrico ou nítrico ou mesmo um oxidante como o perclorato de ferro (popularmente referenciado como “percloreto”) …Parece complicado na teoria, mas você tem que ver a merda que é na prática!


Não vou te enganar, a minha caixa não chama o inferno depois de pronta, mas para fazer isso…. É o INFERNOOOO DURANTE. Eu praticamente destruí a cozinha, fiz dezenas de testes cortei a mão diversas vezes, queimei a ponta dos meus dedos com ácido, gastei uma nota de material. A media de sucesso é de 1 em 4.  Minhas unhas parecem de borracheiro e acho que não vão voltar ao normal nunca mais.  Mas vamos falar da caixa, que acho que tem um aspecto Gump interessante aí.

A caixa misteriosa

A caixa de Lemarchand é formalmente um quebra-cabeças que apareceu nas histórias de terror do Clive Barker e também em obras baseadas em suas histórias originais. São várias caixas diferentes, mas a mais conhecida dessas caixas é a Lament Configuration. A caixa do filme, foi projetada e feita por Simon Sayce, um dos membros da equipe de arte do filme, e algo me diz que ela é uma espécie de releitura da caixa de pandora mitológica.
Mas – aqui vem a parte bizarra: Tem gente que acredita que talvez Lemarchand não seja exatamente um personagem fictício… e a Caixa idem!

A tal caixa de Lemarchand seria um dispositivo místico/mecânico que age como uma porta – ou uma chave para uma porta – para outra dimensão ou plano de existência, portanto, um item mágico que esperaríamos ver nas mãos do Leonard (se você não sabe quem é o Leonard, procure descobrir).

A solução para o quebra-cabeças cria uma ponte através da qual os seres podem viajar em qualquer direção através deste “Cisma”. Os habitantes desses outros reinos podem parecer demoníacos para os humanos o que não necessariamente implique no fato de terem relação com Lúcifer. Um debate em curso na série de filmes é se o domínio acessado pela Configuração pretende ser a versão bíblica do Inferno, ou uma dimensão de dor e sofrimento sem fim que é original para os filmes Hellraiser.

Philip Lemarchand, o tal autor da caixa, é mencionado em The Hellbound Heart como um hábil artesão, criador de “pássaros cantores mecânicos”.

Segundo pesquisei, ele apareceu pela primeira vez como um personagem na série de quadrinhos Epic Comics Hellraiser e foi retratado como um homem mais velho, embora ainda criador de brinquedos e pássaros cantores. Esta versão, criada com o apoio de Clive Barker, foi um assassino em massa que usou gordura e ossos humanos na construção de suas caixas. Ele foi auxiliado por um material que lhe foi oferecido por um cenobita, conhecido como Barão.

Phillip Lemarchand viveu na França pré-revolucionária. Ele foi um arquiteto, artesão e designer. Mas também apontado como um dos mais prolíficos, embora não confirmados, assassinos de sua época. Philip Lemarchand primeiro ficou conhecido pela construção de intrincadas caixas de música que rapidamente se tornaram uma febre na França. As caixas, conhecidas como Peças Lemarchand eram verdadeiras obras de arte com características, melodias e desenhos únicos. Posteriormente em 1749, o artesão começou a desenhar novas peças em forma de caixa. Os cubos, chamados de “Configurações”, eram artefatos delicados, criados com extremo talento. Eles encontraram um público seleto formado por nobres e burgueses ávidos por novidades.

No ápice de sua carreira, Lemarchand era um dos artesãos mais prestigiados da França e foi contratado para construir peças que lhe trouxeram fama e fortuna. Dizem que ele teria trabalhado até para os Reis de França na criação de jóias exclusivas. Por volta de 1755, Paris foi assolada por escandalosos e inexplicáveis desaparecimentos, quase sempre envolvendo indivíduos ilustres, muitos dos quais, clientes de Lemarchand que haviam adquirido suas peças exclusivas.

Suspeitas recaíram sobre o artista, especialmente depois do misterioso desaparecimento de seu aprendiz, o filho de um conceituado ourives. Lemarchand foi indiciado e aprisionado pelas autoridades que o interrogaram. Os detalhes do inquérito movido contra Lemarchand desapareceram durante o caos que se seguiu à Revolução, mas sabe-se que ele chegou a ser julgado.

A despeito de uma suposta condenação, Lemarchand conseguiu escapar e segundo rumores se estabeleceu por volta de 1782 na Espanha. Em 1797, ele atravessou o canal da Mancha se refugiando em Londres. Em 1811 finalmente retornou à Paris, onde desapareceu assim como muitas de suas alegadas vítimas.

Apesar de LeMarchand ter sido comparado a Giles de Rais, (este sim um genocida comprovado) nunca foram apresentadas provas contundentes que o ligassem a qualquer desaparecimento ou assassinato. O vínculo que ele tinha com uma grande quantidade de indivíduos que simplesmente sumiram sem deixar vestígios o colocavam como principal suspeito.

As lendas mencionavam o fato de que o artesão dissolvia os corpos de suas vítimas em tinas de ácido no seu ateliê ou que as queimava em uma enorme lareira. Para ajudá-lo nessa sórdida tarefa ele contaria com o auxílio de comparsas, criados, ghouls e até diabretes que o serviam fielmente. As conjecturas variavam enormemente na época que Lemarchand foi acusado.

O julgamento foi um acontecimento, mas a despeito de sua notoriedade, pouco se sabe de concreto sobre o homem. Quase todas as informações existentes se baseiam em rumores e especulações. A maior parte de suas construções arquitetônicas (supõe-se que eram pelo menos 15 em Paris) foram destruídas durante o período de reurbanização da cidade. Existem poucos registros documentando eventos de sua vida privada, sequer se sabe ao certo se ele foi casado e se teve herdeiros. Mesmo as suas obras de arte mais famosas, as Configurações são raras e concedem poucas informações.

Sabe-se que ele nasceu em meados de 1717, foi educado na Academie Royale de Pinture et Sculpture em Paris nas primeiras décadas do século XVIII, que chegou a integrar a Maçonaria, e que ele se mudou para a Espanha e depois para a Inglaterra a fim de se livrar do estigma pela associação de suas obras com misteriosos desaparecimentos. Sabe-se que ele tinha interesse em assuntos esotéricos e que era um entusiasta de ocultismo muito em Voga no período.

Os rumores na época do julgamento insinuavam que ele tinha um pacto com o demônio e que Lúcifer em pessoa havia lhe concedido talento singular.

Acredita-se que o artesão construiu mais de 270 cubos antes de desaparecer. Estas peças mudavam de mãos rapidamente, ainda que colecionadores as buscassem avidamente.

Lemarchand tinha a venerável idade de 94 anos quando retornou a Paris e se hospedou no L’Hotel D’Arnais no Quartier Latin, um prédio cuja planta ele próprio desenhou. Ele jamais saiu de seu quarto, recebia a comida na porta e não se ausentou dao cômodo nos três meses que ficou hospedado. Quando o gerente do hotel finalmente entrou no aposento após dias sem notícia dele, encontrou apenas a mobília, e uma das Configurações depositada sobre uma poça de sangue. Talvez tenha sido um fim adequado, juntar-se ao mistério daqueles que desapareceram.

O nome de Lemarchand ainda é citado pelos entusiastas de seu brilhante trabalho como artesão e arquiteto. Alguns prédios projetados por ele ainda estão de pé na parte antiga da cidade e uma luta para reconhecer o valor histórico arquitetônico de suas obras está em curso.

Lemarchand contudo será lembrado pelas suas Configurações. Ocultistas de renome como Austin Osman Spare, Eliaphas Levi, A.E Waite e Aleister Crowley mencionaram em algum momento de suas obras os cubos criados por Lemarchand como poderosos artefatos dotados de poder oculto.

Muitas figuras na história teriam tido contato com Configurações. Voltaire foi presenteado com uma das peças, assim como Benjamin Franklin que em sua visita a Paris recebeu um cubo que tratou de levar para a América. Francis Dashwood, o fundador do célebre Clube do Inferno teria adquirido um cubo que foi usado em rituais nas catacumbas de Edimburgo. O Conde de St. Germain por um curto período de tempo teve uma configuração presenteada a Catarina da Rússia pouco antes dela assumir o poder. O Czar Nicolau II teria adquirido essa mesma peça pouco antes da Revolução Bolchevique, e Stalin foi seu último dono. O cineasta Cecil B. Demille se orgulhava de ter um cubo em sua coleção, assim como o dono da Standart Oil, Nelson Rockfeller que doou a sua peça para o Museu Smithsonian. O arquiteto do nazismo Albert Speer vasculhou Paris em busca de peças Lemarchand e após a Segunda Guerra rumores a respeito de peças surgindo e desaparecendo circularam sem parar.

O interesse de colecionadores em todo o mundo ainda é grande no que se refere às peças exclusivas de Lemarchand. Talvez o interesse despertado por elas esteja abaixo apenas das peças do designer Fabergé. Para se ter uma ideia uma configuração construída em 1764 foi vendida na Tailândia em um leilão fechado em 1998. O objeto foi arrematado por um colecionador cuja identidade não foi revelada pela quantia de dois milhões e meio de dólares.

Uma magia chamada Elegia Yantra

Fotos antigas mostrariam as caixas de LeMarchand. Será?

Acredita-se que Philip LeMarchand tenha obtido acesso a uma biblioteca maçônica localizada em Paris em 1748. Eles completaram sua pesquisa sobre os mistérios da Elegia Yantra. Não se sabe se ele estava em busca de desenvolver sua versão do yantra, ou apenas buscando compreender suas origens, usos e, mais importante, seus projetos de superfície geométrica. Um Yantra é um instrumento religioso hinduísta que se diz ter uma vida própria. Dizem que são Deva/Devi (deuses / deusas) de forma geométrica ou padronizada.

LeMarchand estudou esses dispositivos durante o tempo de sua primeira criação de caixa de quebra-cabeça, “The Lament Configuration ” . A influência do yantra pode ser vista em quase todas as
criações de suas posteriores caixas de quebra-cabeça.

Elegia Yantra

 

LeMarchand nos filmes

O filme Hellraiser: Bloodline , escrito vários anos depois, retrata o personagem tanto menos moralmente repreensível. Nesta versão, Lemarchand é um jovem e engenhoso fabricante de brinquedos conhecido por seus intrincados desenhos mecânicos. O personagem Paul Merchant diz no filme que o Lament Configuration foi encomendado a Lemarchand pelo Duc de L’Isle em 1784.
Segundo a obra, no século 18, Philip Lemarchand, atuava como um fabricante de brinquedos francês, e realizou “a configuração do Lamento” para um rico aristocrata chamado Duc de L’Isle, que era obcecado com a magia negra. Ele e seu aprendiz, Jacques, teriam matado uma mulher e removem os órgãs dela. Eles cuidadosamente recortam toda a pele do cadáver e criam uma espécie de “roupa” num ritual com o qual  L’Isle usa em conjunto com a Configuração do Lamento para invocar uma princesa supostamente demoníaca chamada Angelique para ocupar a pele da mulher. Uma vez trazia a este plano, Angelique está sob o comando do Duque, mas  Angelique e Jacques traem e matam a L’Isle.
Lemarchand, no processo de inventar uma nova caixa, (The Elysium Configuration) afim de destruir os demônios, tenta roubar de volta a caixa, mas é descoberto. Jacques insinuadamente informa ao fabricante de brinquedos que ele e sua linhagem já estão amaldiçoados até o fim dos tempos por causa da caixa que criou, antes de pedir Angelique para matá-lo.

Outras caixas de Lemarchand aparecem em toda a série de filmes Hellraiser.

Lembro que lá pelos anos 90, quando eu frequentava um centro cultural chamado Além da Imaginação,  que era repleto de pessoas interessantes e de um nível intelectual muito, muito acima das pessoas normais, um conhecido de lá me falou sobre o filme e sobre as tais caixas.

Segundo me recordo, ele havia dito que Clive teria escrito o primeiro livro baseado num antigo conto francês, da virada do século, que de alguma forma chegou às mãos dele. Esse conto, não era um conto, mas um relato místico e portanto real, de uma sociedade secreta onde um artesão francês especializado em caixas de musica viaja até a Índia afim de aperfeiçoar sua técnica. É lá na Índia que ele descobre – sabe-se lá como – uma maneira de converter uma caixa de musica em uma espécie de item magico capaz de criar um portão multidimensional. As histórias estão cheias desses itens capazes de abrir portões para o desconhecido, e seja realidade ou mito ou ambos, o fato é que não raro, a abertura de portões traz consigo um problema adicional. Se você vai daqui pra lá, quem está lá vem pra cá. E nem sempre isso é uma boa ideia. Aliás, nunca é. Existem também pessoas que acreditam que Philip LeMarchand é real e que as caixas existem. Inclusive eu li num blog obscuro que há quem acredite que o LeMarchand teria obtido a caixa que deu origem às outras de um alquimista chamado Albertus Magnus que teria trazido o conhecimento da Índia. De uma certa forma, parece que em algum ponto as histórias se misturam dando uma bela base para nos esquinarmos ate que ponto esse cara era ficcional ou não.

Eu sei que entubei a história que meu amigo me falou porque achei ela bem viável, e passei a ver Hellraiser com outros olhos. É verdade que histórias desse tipo sempre fazem a nossa cabeça, porque de uma certa forma, ideias como “caixas que jamais devem ser abertas” são parte da nossa constituição mítica, com isso aparecendo desde a mitologia grega, na Bíblia até as mais primitivas crenças indígenas. Se há algo de real nisso tudo, talvez possa ser esse aspecto mitológico, sem o qual não somos quem somos. Ou não.

Seja como for, sempre tenha cuidado com caixas feitas por caras chamados Philipe.

fonte fonte fonte fonte fonte

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Saudações Philip,

    Ótima postagem, gostaria de saber um pouco mais sobre a configuração que você confeccionou, quais as dimensões dela, pergunto isso pois quero fazer uma também, mas sem muitos riscos kkkkkk quero usar impressão com papel laminado e colar em um cubo, mas ainda não sei se uma superfície de madeira ou metal, será apenas para ornamentar minha estante e não para abrir portas. Peguei uns moldes em paperscrafts, mas não sei qual as reais dimensões do cubo.
    Se puder me ajudar eu agradeceria.

  2. Só para os desavisados: Philip LeMarchand não foi um sujeito real. É totalmente criação de Clive Barker, assim como seu contexto histórico.

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