Boletim

O pai chega em casa cansado do trabalho. Tira os sapatos e se joga pesadamente no sofá.
Estica o braço até o carrinho onde alcança um cachorro engarrafado de 12 anos já pela metade. Pega quatro pedras de gelo, derrama no copo e serve uma dose.

-Oi Querido. – Diz a mulher, passando pelo corredor, indo em direção a cozinha. Ela estanca na porta da cozinha. Faz uma meia-volta, vai até o sofá, beija o marido e sai. O homem não responde. Está parado, fitando o lustre.

-Como foi o dia?

-Cansativo. – Ele diz, misturando o uísque com o dedo.

-Eles compraram?

-Compraram.

-Que bom, hein? E o que o Carvalho falou?

-Eles vão parcelar. O advogado voltou atrás. Parece que está tudo bem agora.

-Que bom, amor. – Diz a mãe, pegando alguma coisa na geladeira.

O pai concorda com a cabeça.

-Querido?

-Quê? – Diz o homem tentando colocar a televisão no programa de Tubarões.

-Chegou o boletim do Claudinho. – Ela diz, colocando a assadeira no forno.

-E daí?

-Deixa ele mesmo falar com você. Claudinhooooooooo… – Berra a mulher da cozinha.

O homem está distraído vendo os mergulhadores numa gaiola de aço filmando o tubarão que escancara sua bocarra em direção à tela. Claudinho entra subitamente na frente do pai e lhe estende em silêncio um pedaço de papel.

-Que isso, filho?

-Boletim. – Diz o menino, lacônico.

O pai, já esperando pelo pior, desvia a atenção da Tv, ajeita-se no sofá e olha o boletim com cuidado.

-Que isso, meu filho? Dois em Matemática? Como que o senhor me explica isso?

-Pai… Isso é insignificante. – Diz o menino.

-Como assim, Claudinho? Como assim insignificante, meu filho? O que você tá pensando da vida? Tá achando que o dinheiro do seu pai cai do céu? Não cai não senhor. Eu ralo, me esforço, aguento um chefe chato, para poder pagar a escola, Claudinho. Pra você ter um futuro. E você desperdiça isso com essas baboseiras de quadrinhos, de desenho animado, de videogame. Videogame não leva a nada, Claudinho. A vida não é um videogame! Você tem que levar as coisas mais a sério… Olha, é seu futuro que está em jogo. Quando você menos esperar, o tempo vai passar e você vai olhar pra trás e vai se arrepender desse seu tempo perdido. Seus amigos estarão bem, com carrão, com casa na praia… E você? Você vai ser um lascado, um pobre coitado que não vai saber nem falar direito, porque não estudou português. Vai ser pobre porque seu chefe, sabendo que você não sabe nada de Matemática, vai te dar golpe em cima de golpe… Você vai ser um infeliz desgraçado e se pra piorar ainda der o azar de ter filhos, eles vão olhar pra você e pensar: “Poxa, queria ter outro pai, porque esse não pode me dar nem um brinquedo, nem uma roupa”… è isso que você quer? è esse futuro que você quer pra você?

-… – O moleque continua em silêncio ouvindo pacientemente o sermão do pai.

-Que foi? O que você tá quieto, Claudinho? Não concorda com o que eu estou dizendo? Por acaso eu estou errado? Por acaso você pode me dizer que merda de coisa que você fica pensando na aula de Matemática pra tirar este miserável dois? Você diz que essa nota aí é insignificante…. Insignificante… Veja só. Ouviu isso, Regina? Ele disse que a nota é insignificante… Ora veja você. Um pirralho de nove anos querendo saber o que é e o que não é insignificante… Eu vou te ensinar o que é insignificante. Presta atenção, Claudinho. Insignificante é seu videogame. Insignificante é sua bicicleta. Insignificante são seus amigos do play, aquele bando de paspalhos que só jogam futebol e mais nada. Isso que é insignificante. Insignificante são suas revistinhas, seu tempo perdido no MSN… Mas a Matemática, meu filho, a escola… Não! Isso é a única coisa que tem que ser significante pra você! Esquece desenho, esquece namorada, esquece esse monte de perda de tempo! Agora me diz. Olha pra esse boletim e me diz: Isso é insignificante pra você?

-… É! – Diz o menino firmemente.

-O quêêê? Como você ousa responder seu pai assim, moleque? Quer apanhar? Vai dizer agora que eu sou insignificante também?

-Pai…

-Fala Claudinho! Fala aqui na minha cara que eu sou insignificante pra você! – Diz o pai, dando tapinhas na própria cara de forma dramática.

-Pai, você é um ser humano em sete bilhões de pessoas…

O pai dá uma golada no uísque. Ouve em silêncio. O menino continua:

-…Você vive num planeta, num sistema solar de mais oito planetas, quase todos maiores que o seu. Que é um em cem bilhões de outros sistemas solares. Que fica numa perninha desprezível de uma galáxia que flutua no nada em meio a outras cem bilhões de galáxias… Pai, você é insignificante. – Anuncia o menino com ar solene.

Há agora um longo silêncio naquela sala.

O pai não sabe o que dizer. Baixa os olhos. Pega o copo de uísque que só tem gelo e coloca de lado. Então o pai pega o boletim e rasga. Ele pega o menino pelo braço e puxa o garoto para o sofá, carinhosamente. O pai abraça o filho e dá um beijo na cabeça do menino.

Os dois divertem-se vendo documentário na Tv. Aconchegados, felizes de reconhecer a única coisa que definitivamente não é insignificante em todo o universo: a felicidade.

FIM

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Quase me fez chorar aqui no trabalho… a felicidade e a paz são a única coisa que importam, mas quase ninguem presta atenção, achando que o dinheiro ou outros prazeres são absolutos…
    Parabens pelo post, Kling

  2. eu já disse isso caro philipe, mais vou repetir

    você escreve cada conto digno das fabulas do esopo… incrivel, é bom que você de tilt mais vezes

  3. Uma opinião não justifica um fato. Ter a opinião que somos insignificantes diante do Macro Universo não vai mudar o fato das obrigações reais que fazem parte da vida.

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