Quando o Et de Varginha fez aniversário (bem, não necessáriamente o Et, mas o incidente envolvendo militares, bombeiros, a polícia, o hospital da cidade, três meninas evangélicas e mais de uma dúzia de testemunhas oficiais e algumas dezenas de testemunhas não oficiais) o secretário de turismo da cidade me convidou para ir lá. A ideia era a prefeitura me contratar para fazer uns painéis ilustrativos que mostrariam alguns dos momentos daquela sucessão de estranhos mistérios e acontecimentos que abalaram a cidade, colocando-a no meio da mídia e criando um dos mitos urbanos mais famosos do país.
(note que eu não estou dizendo que o que aconteceu é um mito ou delírio, mas o “Et de varginha” assumiu proporções inimagináveis que transcenderam um evento ufológico de grandes proporções e hoje este “bicho” está para o imaginário popular quase no mesmo nível que o Saci Pererê, o Caipora e tantos outros seres fantásticos)
O lance do Et nem vem ao caso. O que pegou mesmo foi a viagem. Uma das piores viagens que eu fiz na vida.
Primeiro porque eu estava em Três Rios e tive que ir para pegar o ônibus para Varginha em Juiz de Fora. Ao chegar lá, descobri que o ônibus estava lotado. Fiquei esperando uma desistência e para minha sorte, ela aconteceu. Uma pessoa desistiu.
A poltrona do maldito sujeito era no fim do ônibus. Aquele lugar típico que todos chamam de “cozinha”. Deviam chamar de latrina, afinal, é de cara para o banheiro.
Seja como for, “cavalo dado, não se olha os dentes”. Entrei resignado e percorri todo o busum até chegar nas profundezas mais escuras onde estava meu lugar. O ônibus já estava cheio e fiquei satisfeito ao notar que ao meu lado não havia ninguém. Eu torci e rezei com toda fé para que aquele lugar ali não fosse ocupado. O motorista ligou o ônibus.
Eu senti que estava com sorte. O ônibus para Varginha começou a sair da sua baia na rodoviária e o meu lugar ali com uma poltrona vazia ao lado.
O veículo ganhou a estrada e eu me senti muito bem, um verdadeiro sortudo de saber que iria ter um espaço para me esticar. Foi aí que o ônibus parou.
Algo me dizia que minha esperança de espaço ia pro saco naquele instante, quando a porta do ônibus abriu e entrou um sujeito com a cara mais escrota do mundo, vestindo uma camisa do flamengo. Ele parecia o Patropi, com uma barba desgrenhada e um cabelo todo embolado no melhor look “mendigo” usando uma daquelas bolsas colombianas fedorentas.
Para meu sofrimento, o maldito percorreu todo o ônibus e veio direto sentar-se ao meu lado. Só então eu tive a dimensão real do tamanho descomunal daquele cara. O feladaputa não conseguia sentar com a perna fechada e se escarrapachou todo, me comprimindo contra a janelinha, que não abria.
Nos dois primeiros minutos que aquele cara me apertou no canto da janela eu comecei a notar que ele não sabia o que era pente, escova de dentes e muito menos desodorante. Foi como viajar ao tempo dos neandertais.
Como se não bastasse ser um neandertal flamenguista com uma bolsa colombiana fedida, ele ainda quis puxar papo. Era alguma coisa sobre futebol que eu não lembro. Eu me limitei a dizer que não sabia. Falei rápido tentando conter a respiração, mas mesmo assim foi fácil detectar que o cara havia tomado pinga no café da manhã. Ele então levanta-se e começa a futicar na bolsa. Mexe de um lado, mexe de outro e saca um radio. Sim, um radio. Não um daqueles walkmans discretos, mas um puta dum radião daqueles de porteiro. Ele começa a sintonizar o rádio, mas tá chiando feito o catiço.
E nisso o ônibus sacolejando pra caramba.
O neandertal ao meu lado estica uma antena comprida que quase me acerta a cara. Ele sintoniza uma estação que metade é chiado metade um silvo fino. Começo a me arrepender de ter nascido.
Durante uns 40 minutos o cara sacolejou e rodou o botão de sintonia do rádio até que conseguiu colocar num jogo de futebol daqueles narrados péssimamente, onde o cara mais parece um locutor do jóckey de tão rápido que fala.
Eu tentei dormir, mas o cara parece que queria me sacanear. Ele aumentou o volume daquela porra até ficar completamente irritante. Eu lutando para não dar uma bifa no puto.
Foi quando uma senhora reclamou. Ela disse que era proibido radio no ônibus e apontou lá pra frente a imagem de um rádio EXATAMENTE igual ao do cara, com um símbolo claro de proibido. Sabe o que ele fez? Nada. Ele mudou de estação.
Ah, agora sim. Não era mais jogo, mas uma musica sertaneja.
As pessoas continuaram a reclamar. E enfim o puto desligou aquela merda. Eu achei que finalmente iria dormir. Esperei ele se levantar pegar a sacola com cheiro de cachorro molhado e guardar aquele rádio de porteiro. Depois tornou a sentar. Aí levantou novamente. Foi lá no banco da velha pedir desculpa. Eu pensei que ele devia estar com verme, hehe.
Eu fingido que dormia.
Veio ele. Voltou e sentou com tamanha delicadeza do meu lado que eu subi uns três centímetros no ar.
O cara era super chato. Começou a cantarolar uma música. Eu fingia descaradamente estar dormindo e comecei a notar que o sujeito ali ao lado tava ficando cada vez mais inquieto. Doido para conversar.
Lá pelas tantas, o ônibus sacolejando para tudo que é lado, eu só ouço um guri falar pra mãe lá na frente:
– Mãe, eu tô enjoado…
–Ahmeudeusducéu! Eu faleipravocênãotomarcafécomleite! – dito assim, sem respirar. A mulher maluca agarrou o pivete pelo braço e saiu arrastando ele em total pânico pelo corredor do ônibus.
Enquanto aquela dupla bizarra vinha na minha direção, eu comecei a pensar como alguns pais podem ser tão histéricos. Precisa ter um ataque de fúria quando a criança diz que tá enjoada?
Um jato de vômito que atingiu o fim do corredor e cagou todo o interior do banheiro interrompeu meus pensamentos e eu percebi que a mãe sabia o que dizia. Foi um misto de coisa nojenta com apocalipse e cena do zorra total. O moleque vomitou no chão, nas poltronas, na porta do banheiro, no interior do mesmo e na própria mãe, que agora disparava uma sucessão de cascudos no infeliz todo vomitado, que chorava copiosamente. Um senhor conteve a mãe histérica e levou ele la pra frente do ônibus. Todo mundo reclamando.
Aquele cheiro de café com leite azedo misturado com cheetos invadiu o ônibus. Eu pensei que ia morrer. Eu tenho aquele problema clássico com cheiro de queijo desde que fiz aquele prato de banana preta com queijo ralado mofado. Nunca mais consegui aguentar aquele cheiro. E cheiro de vômito eu até aguento, mas o de cheetos é que é foda. Eu pensei que ia vomitar também. O Ogro do meu lado meteu o sovaco na minha cara tentando inutilmente abrir a janela emperrada das nossas poltronas. Era uma tentativa desesperada de purificar o ambiente daquela fendentina.
Todo mundo iniciou seus protocolos de pânico, abrindo as janelas do ônibus.
Que coisa linda. Tudo que era janela aberta, ventilando aquele vômito lá pra trás e a única janela que não abria era a minha, bem ao lado daquela poça cinza com pedaços laranja. Isso empurrou a bufa lá pra trás.
Eu fui ficando cada vez mais enjoado. Um sujeito pegou o jornal e jogou sobre a poça. Acho que ele fez isso para conter o caldo, com medo do treco escorrer para debaixo do banco dele.
O Neandertal-Patropi levantou-se da poltrona com aquela clássica maneira “cavala” de se levantar e meteu o pé na porta do banheiro. É que o moleque conseguiu mandar o jato bem no trinco. Isso fez com que a porta do banheiro ficasse batendo a cada nova curva, durante todo o resto do longo, interminável, percurso até Varginha. O cara abriu a micro-janelinha do banheiro e o fudum do vomito de café com leite e cheetos começou a aliviar lentamente.
A viagem transcorreu mais tranqüila por uns dois km, quando senti uma coisa gelada pra caralho pingar em mim.
Tomei um puta susto. E o Patropi olhou pra mim e ficou rindo da minha cara. Olhei pra cima. Havia ali no teto, um ar condicionado desses que não são de veículo. Era um trambolho enorme, claramente adaptado com uns arames e muita baba de silicone. Eu concluí que a minha janela não abria porque os caras tinham colocado um ar condicionado adaptado no ônibus. E o ar condicionado era aquele trambolho branco todo sujo, que estava condensando gotinhas. Volta e meia, as gotinhas andavam pela superfície de plástico daquela merda e se aglomeravam, formando um gotão medonho, que caía em mim.
Eu comecei a ficar puto. A cada pingão que eu tomava – incrível como a porra do pingo consegue cair exatamente dentro da sua camisa, passando rente ao pescoço e dando o maior susto.Tentei reclinar o banco para fugir dos pingos. Mas ele parecia que estava enguiçado. Depois, descobri que era só o meu banco no ônibus que não reclinava, porque eles tinham usado um espaço ali atrás do meu banco que devia estar livre, para passar umas coisas que pareciam ser parte da tubulação daquele aparelho bizonho, que embora fosse um ar condicionado, tinha mais vocação para chuveiro.
Eu passei quase uma hora olhando para o alto, para detectar por onde que o pingo maldito vinha. Percebi que numa curva muito acentuada para a direita, o pingo descia num filetinho discreto do canto do aparelho e passeava pela superfície, até ir lentamente se agrupar com vários outros pinguinhos menores. Ali eles iam engordando até ter tamanho suficiente para causar uma irritação do caralho em mim.
Volta e meia, aquele paraíba de camisa do flamengo olhava pra mim e ria. Eu comecei a ficar realmente puto.
Foi quando o ônibus fez a primeira parada. Eu agradeci a Deus pela parada, pois já estava em vias de perder a linha com o sujeito.
O cara saiu voado e correu lá pra frente. Depois de um tempo, eu vi que ele tava batendo nada menos que um PF (prato feito) com arroz feijão, lingüiça e farofa num boteco de estrada. Eu tratei de descer e ir na banca de jornal mais próxima, onde comprei o jornal mais barato que tinha.
Voltei para o ônibus vazio, passei pela lama de vômito e sujeira e cheguei ao meu lugar. Peguei o jornal embolei ele e comecei a atochar numa pequena greta que tinha entre o aparelho e o acabamento de carpete do bagageiro interno. Enfiei o jornal quase todo ali.
Entrou uma senhora com um esfregão e um balde no ônibus. Ela jogou uma coisa cor de rosa que tava numa garrafa pet no chão. Meteu o esfregão num balde com uma água meio preta e tratou de esfregar aquele vômito com aquele treco.
Eu senti o cheiro perfumado daquela merda e descobri que realmente existia coisa pior que o cheiro de cheetos. O olho começou a arder a cabeça a doer e eu comecei a achar que ia ficar doidão.
Eu sabia que uma coisa com aquela cor rosa fluorescente só podia ser lixo nuclear.
Logo depois o pessoal voltou e eu lá, já meio zoado. Todo mundo reclamando do odor forte do produto de limpeza. Aí o motorista entrou no salão e pagou geral pra todo mundo. Ele disse que mandou limpar o chão e que era para os passageiros pararem de reclamar e se controlarem, porque ele não iria mais mandar limpar o vômito de ninguém.
Aí entrou o Patropi-neandertal e veio com uma trança de queijo mussarela e o cheiro de cachaça renovado. Ele me ofereceu queijo mussarela, mas eu, por razões óbvias, agradeci e recusei.
O ônibus voltou a ganhar a estrada e logo que começou a se mover, o cheiro daquele produto de limpeza aliviou bastante e eu pude enfim tirar uma boa soneca. Não durou muito, já que o Patropi também tirou uma e começou a roncar de um jeito que eu achei que ele estava agonizando, com um porco esfolado na garganta. Nunca vi um ronco tão horrível quanto aquele.
Então eu fiquei acordado, olhando a paisagem. O Ônibus fez uma curva e eu ouvi um ruido estranho. Era um barulho de água. Muita água. Imagina só um balde dágua. Quando você balança faz um barulho característico, né? Foi isso que eu ouvi.
O ônibus fez outra curva. Novamente o barulho de água. O som vinha do aparelho de ar condicionado. Eu olhei pra cima e vi que o pedaço do jornal que ainda pendia para fora do orifício estava completamente molhado. Comecei a refletir se aquilo foi mesmo uma boa ideia…
Eu tentei ler o pedaço do jornal que havia sobrado da minha “engenharia Mc Gyver”. O Patropi acordou e começou a comer novamente o queijo. O cara visivelmente não tinha ido muito com a minha cara. Eu percebi isso quando uma gota daquela merda de água fria pingou em mim lá do “rolhão” de jornal que eu fiz. Caiu bem no meio do jornal que eu tava lendo. E aí o Patropi não se conteve e começou a rir. Eu fiquei puto. Mas não quis armar confusão num ônibus.
E então, o melhor momento da viagem aconteceu. O ônibus passou num ressalto da estrada, inclinou e pulou. O rolhão de papel jornal foi ejetado num mijão de água ultra gelada que caiu bem em cima do Patropi. Foi um banho equivalente a uns três copos cheios de água congelante. Aí eu não aguentei. Tive que rir, mas rapidinho eu engoli o riso, porque o Patropi ficou puto. Hahahaha. Ficou muito puto mesmo.
Ele levantou, começou a xingar a empresa, o motorista, o ônibus. E todo mundo olhou pra trás com aquele ar de : “Ih! Pirou!” Eu achei que ele ia me dar um porrada. E isso deixou tudo ainda mais engraçado. Começou a sair até lágrima no meu olho. Eu tentando conter o riso.
O Patropi foi até Varginha em pé, afinal o banco dele encharcou.
Essa foi uma das viagens mais bizarras que eu já fiz.