Tens muitos nomes.
Não lembro como chegastes às minhas mãos.
Tua pele carnuda era rechonchuda, com brilhos alaranjados desvaindo-se em contornos esverdeados.
Segurei pelo pendúnculo onde ainda se pendurava precariamente uma diminuta folha verde e senti aquelas tuas carnes frias.
Vinha de terras geladas da cozinha, de alguma prateleira escura, onde outrora se apegava a tuas irmãs numa massa amorfa de promessas de prazer.
Verifiquei. Girei e olhei com cuidado o seu corpo em busca de imperfeições, mas você era perfeita. Tão perfeita que me furtei no desejo da violação de sua pele.
E como um proctologista maníaco que penetra no desconhecido, com meu dedo em riste, perfurei seu pólo sul com volúpia e brutalidade.
Violei-te sem piedade e ouvi como que um gemido rouco emanando, quando rasguei com força suas carnes.
Por um segundo, temi o que encontraria. Temia uma gosma melosa, temia dar de cara com larvas, e temi, acima de todos os temores, encontrarte seca, flácida, triste.
Mas temendo a imperfeição, descobri seu corpo e revelei-a nua para o universo pela primeira vez. Não completamente nua, porque não convém. Estava ainda coberta com uma rede branca de renda, seus gomos se apertando em agonia silenciosa.
Agarrei seu corpo com as duas mãos e a parti em duas metades, quase que geometricamente perfeitas. Não sei se atingi a simetria divina, pois não ousei contar-te cada gomo.
Levei o primeiro dos gomos à boca com indisfarçável prazer, ainda sem saber se minha felicidade seria plena. Estaria doce demais? Seca? Seria azeda ou repleta de caroços?
Para minha felicidade, estava repleta de caldo. Seu sangue inundou minha boca com tamanho volume, numa enchente amazônica de suco, que interrompeu meu deleite com pensamentos sobre como tanto suco pode caber num único gomo?
E assim, gomo após gomo, mastiguei e engoli em total satisfação. O doce na medida certa. E, opa, um caroço. Um pobre e triste caroço. Um filho único, que surgiu do nada entre um gomo medio e um grande.
Caroço que fiz lembrar a infância a cuspí-lo ao ar. Ele girou no sol em verdadeiro salto mortal triplo-giratório e mergulhou na grama do jardim.
E agora, a primeira metade já havia evaporado, tao rápido, tão fugaz.
A segunda metade parecia tentar superar a metade que lhe antecedeu. Sabores, texturas e perfeição. E então, quando me dei por conta, era você apenas um único gomo.
Um gomo solitário que se encaminhava para o corredor da morte. O momento derradeiro. Segurei seu gomo entre o meu polegar e indicador e olhei contra o sol.
Vi a luminosidade amarela atravessando seu corpo sem pedir licença. Vi cada uma de suas vesículas de suco a esperar pelo horror da carnificina que se aproximava.
Não havia sinal de nenhum caroço para atrapalhar o clímax de sua existência.
Contemplei pela ultima vez sua forma de lua crescente e engolfei seu corpo com meus lábios.
E agora você era saudade.
De ti, restou apenas suas cascas recurvadas sobre a mesinha. Suas formas irregulares me lembraram o mapa da Groelândia.
Fiz menção de remontar seu corpo, como um quebra-cabeças infantil e imaginar que quem sabe por mágica, você voltasse ali para dentro. Mas eram só cascas tristes, memórias perdidas de uma fruta perfeita que um dia existiu.
E assim, suas cascas amontoadas e desordenadas desceram para a escuridão abissal de uma lata de lixo, e eu parti, em busca da geladeira, onde em uma prateleira escura, uma de suas irmãs aguardava também o seu momento de redenção, prestes a conhecer o desejo, o êxtase e a melancolia.