quarta-feira, dezembro 11, 2024

Zumbi – Parte 2

David Carlyle estava sozinho naquela cidade escura e inóspita. Sua mente tentava processar e compreender o que havia acontecido.

“Talvez tenham jogado uma bomba nuclear” – Pensou.

Andou por uma longa avenida, desviando de carros engavetados, ônibus enfiados em lojas e restos de corpos humanos ressecados pelo sol.

David olhou os arredores e como ninguém respondia aso seus gritos, começou a se perguntar por quanto tempo ele ficara dentro daquele armário.

Ele andava sem destino, os olhos prescrutando as lojas, os bares, etc. A maior parte deles estava fechada. Mas alguns estavam vazios. O sol já tingia de cor de rosa o firmamento.

Enquanto andava, teve a sensação de que vira algo passar correndo entre os carros.

Ele não tinha conseguido ver claramente, e tudo aconteceu muito rápido. David parou de andar e ficou imóvel. Apenas olhava. O movimento não se repetiu.

David sentiu medo. Mas manteve-se firme. Pensou em gritar, mas algo dentro dele o impedia. Ele ficou apenas ali, parado, olhando sem saber o que era aquilo atrás dos carros na calçada. Agora ele tinha a certeza de que havia sim alguma coisa ali, pois podia escutar o barulho. Era um som fraco, de coisa se arrastando.

David conteve a respiração, e enfim arriscou a plenos pulmões:

“Eeeeeeei! Tem alguém aí?”

O som subitamente parou. O que quer que estivesse atrás dos carros reagiu ao grito. Mas não apareceu e nem respondeu.

David começou lentamente a caminhar em direção aos carros.

“Quem tá aí?” – Perguntava ele, com ar autoritário.

Quando David deu o sexto passo na direção do carro, pulou um cachorro enorme sobre o capô do veículo.

David não reconheceu a raça. Era preto, tinha os olhos injetados, fixos nele e mostrava os dentes ameaçadoramente. O Animal devia pesar muito, pois ao saltar sobre o carro ele chegou a dar uma afundada. O bicho rosnava baixinho. David fotografou mentalmente a expressão daquele animal, e notou que pingava sangue da cabeça do bicho. A respiração do animal era ofegante e ele tinha uma aparência selvagem assustadora.

Então David deu um passo para trás.

Aquela foi a senha para que o enorme cão saltasse do carro e disparasse a toda velocidade pra cima dele. David tentou correr, mas o cão veio como uma bala, sem latir nem rosnar.

David correu como nunca correra antes em sua vida. Ele sabia que nada poderia fazer, pois com apenas duas pernas, seria uma presa facílima para aquela fera sinistra. Mas estranhamente ele não foi mordido. A fera desapareceu tão rápido quanto surgiu.

Quando olhou para trás, viu que corria esbaforido, mas já não era perseguido. Viu o cão parado ao longe. Sentado no meio da avenida.  Olhando pra ele.

David Carlyle não entendeu nada. O cão havia disparado com toda vontade de atacá-lo, mas so nada desistira. E agora parecia uma estátua ao longe.

Mal David pensou nisso, o animal enfiou o rabo entre as pernas e correu, escondendo-se no interior de uma loja.

“Mas que merda é essa?” -Disse ele olhando para trás.

Quando David viu, entendeu porque o cão abortou seus planos.

Menos de dez metros na frente dele tinha um monte de estátua no meio da rua.   Bom, pelo menos foi este o primeiro pensamento de David quando deu de cara com o que parecia ser um museu de cera, cheio de pessoas paradas. Alguns estavam sentados no chão. Outros caídos e uma boa quantidade de gente estava em pé. Mas todos estavam parados.  Pareciam congelados.

Ele ficou ali, também parado, olhando aquilo sem entender. Olhou para o chão e notou que estava lavado de sangue seco. O cheiro de podre era algo que dava vontade de vomitar e o único som que ele conseguia escutar era o do vento, que levava restos de jornais e sujeira pelo ar, além das moscas.

David percebeu rapidamente que aquelas pessoas estavam todas mortas. Mas nunca tinha ouvido falar em pessoas mortas de pé. Pensou por um breve momento que talvez aquilo fosse a razão da cidade estar daquele jeito. Talvez fosse alguma bomba, alguma arma experimental que matou todos os infelizes de uma só vez, e que não tiveram nem mesmo tempo de cair.

David se aproximou lentamente. Percebeu que no meio da galera estava a tal Camila, ou Camélia. Ele reconheceu que era ela pela tatuagem obscena que ela trazia no braço. Abaixo numa faixa ilustrando e arrematando a tatuagem: “Neném do papai Big”.

David caminhou devagar por entre os corpos até ela. Seu intuito era de enterrar aquela moça, que querendo ou não havia salvado sua vida. Quando David tocou nela, assustou-se ao ver que a mulher moveu-se. Ela mexeu devagar, como se fosse um sonâmbulo. Gemeu baixinho.

David estranhou aquilo. Ele segurou no braço dela com delicadeza e sentiu que estava frio. Lentamente ela virou a cabeça na direção dele, e David se horrorizou ao ver que seu rosto estava esfacelado.

David Carlyle notou que o corpo de Camila ou Camélia abriu os olhos e arregalou aquelas bolotas opacas ao dar de cara com ele. Foi aí que aquela porra começou a gemer, e mal os gemidos começaram, todo aquele monte de estátuas pareceu ganhar vida e se mexer lentamente. Parecia um monte de gente acordando. Camila ou Camélia começou a vir na direção dele, os braços esticados tentando agarrá-lo.

E como qualquer pessoa que se preze numa hora dessas, David Carlyle resolveu dar no pé. Disparou a correr, mas aí a multidão já começava a vir atrás dele, todos gemendo alto. Até aquele momento, David não tinha conhecimento do que realmente era aquele monte de corpos pútridos vindo atrás dele. David Carlyle não conhecia os mecanismos básicos de um zumbi. Ele levou algum tempo para descobrir como eles funcionavam.

Os zumbis começaram cambaleando devagar atrás dele, mas em pouco tempo, já estavam correndo com seu modo estranho de se mover. David olhou para trás enquanto fugia pela primeira vez de uma horda. No início eram só cinco, mas como todos eles começaram a gemer alto e vocalizar, não demorou para começar a sair corpos por tudo que era canto. Saíam dos prédios, de dentro de carros e de ônibus batidos. Mal eles começavam a andar para o meio da multidão, já ganhavam outra  reação corporal. Eles seguiam a “manada”.

Por sorte, David estava perto do cais do porto, e correu esbaforido e desesperado em direção ao mar. A multidão o seguia, gemendo, urrando e babando, entretanto, correndo um pouco mais devagar. David chegou ao píer e não pensou duas vezes quando viu que os zumbis se aproximavam velozmente. Ele saltou no mar e nadou debaixo d´água para baixo do Píer.

Enquanto era violentamente jogado pelas ondas na direção da praia, ele tentou desviar dos pilares. Acabou se cortando nos mariscos aderidos ao grosso pilar de madeira. Mas aquilo era apenas um arranhão perto dos ferimentos horrendos que viu naquelas coisas que o perseguiram. David bateu na praia em meio a uma espuma branca que ferveu ao seu redor. O gosto de sal na boca e a vontade de tossir eram enormes. Seu peito ardia. Ele arrastou-se para a areia seca e sentou-se ali sob o pier. De onde estava, viu por entre as gretas do piso que os corpos estavam parados lá na ponta. Nenhum pulou atrás dele. Ali eles pararam, ali eles ficaram.

David, exausto, deitou na areia e sentiu a dor em todos os seus músculos. O sol já brilhava forte no céu. Sua cabeça era uma confusão de sentimentos primitivos. Medo, fúria, raiva, angústia, horror.

Parou para pensar naquele monte de gente morta, que mais parecia viva. Ele não entendia como aquilo era possível. Como a decomposição dos corpos não impedia que eles se movessem. Não pareciam, muito inteligentes, e David nem fazia ideia porque estavam parados como estátuas no meio da rua.

Ficou ali descansando. De vez em quando, olhava para cima em busca de ver algum movimento, mas todos estavam rigidamente parados lá no alto. É como se um poder invisível os tivesse desligado. David sentiu que estava batendo uma fissura, uma vontade louca de dar uma viajada. Fugir daquela porra toda. Meteu a mão no bolso e tirou uma seringa.No bolso da jaqueta tirou o elástico.Puxou a manga da jaqueta de couro pra trás e apertou o garrote.

“Que se foda o mundo.” Sussurrou enquanto injetava o líquido leitoso na veia. Deitou na areia e esperou.

Mas não aconteceu nada. Absolutamente nada. David Carlyle estranhou.

“Mas que merda é essa?” – Pensou ele.

Era pra já estar no paraíso, mas aquela porcaria não estava funcionando. David meteu a mão no bolso e tirou outras duas seringas. Eram as últimas. Apertou o garrote novamente e meteu as duas pra dentro. Agora, ou viajava ou morria.  Deitou novamente na areia a espera de afundar. Mas não afundou. Ao contrário, parecia ainda mais lúcido.

Certamente que naquela altura dos acontecimentos, meter duas doses de heroína pra dentro e não viajar parecia muito mais estranho que ser perseguido pelo cachorro do diabo e por um monte de gente morta.

“Puta que pariu, porra do caralho!” Disse jogando as ampolas no mar.

David não entendeu como que era possível aquilo, mas o fato era que seu corpo, por alguma razão não estava sendo mais afetado pela droga. Ele pensou que talvez tenha sido aquela maldita superdose que tomara na obra.

Resolveu esperar, pois podia rolar algum efeito retardado. Então, ele deitou-se novamente na areia a espera de que a droga eventualmente fizesse algum efeito. Só que nada aconteceu. Ele ficou olhando pra cima, lá no alto, os zumbis parados como estátuas de cera.

Enquanto esperava, David pensou naquilo tudo. Nos efeitos da droga terem sumido. Percebeu que a fissura que ele pensou sentir era muito mais uma vontade de largar aquele mundo para trás, de fugir, de se esconder dos problemas do que realmente a loucura que sentia antes. Antes era impossível de pensar. A vontade tomava conta dele, e ela vinha derrepente, sem aviso. Surgia do nada e controlava todo o seu corpo. Se ele não metesse a droga pra dentro, dava um tremelique ferrado, uma vontade de vomitar as tripas, de sair do corpo, de se rasgar. O sangue parecia ferver dentro das veias e tudo começava a rodar. O enjôo era incontrolável. Mas agora não. Ele não sentia nada daquilo. Nem enjôo, nem tremelique, nem tosse e nem a coceira absurda que dava. E então ele sentiu um certo alívio. Olhou para cima, viu as solas dos sapatos dos mortos por entre as frestas. Estava seguro ali. Sentiu a solidão profunda de estar naquele mundo decrépito. E dormiu.

Quando David abriu os olhos, a água do mar estava batendo nas pernas dele. A maré tinha subido e já estava escurecendo. Ele percebeu que dormira o dia todo. Sentia uma fome absurda. Talvez tivesse acordado de fome. As calças empapadas de água do mar causavam-lhe um frio desgraçado. David olhou para cima e viu o céu por entre as frestas do píer. Os zumbis tinham saído de lá.

Levantou0se com alguma dificuldade e procurou uma forma de sair dali. Caminhou pela praia vendo os últimos suspiros do sol ocultando-se no mar. A noite galopava velozmente escurecendo o céu, repleto de estrelas.

David andou pela praia até ter uma ideia súbita de que talvez ele ali, andando sozinho naquela praia aberta, fosse uma presa fácil, que seria vista de longe pelos mortos-vivos.

A ideia de meter-se novamente no meio dos prédios não lhe agradava muito, mas ele estava sentindo um frio desgraçado e o vento que vinha do mar era forte, o que aumentava a sensação de frio. Além disso a fome era tamanha que ele comeria até um defunto.

Pensou nesta ideia e riu.

Caminhou apressado na direção dos prédios. Esgueirou-se como um soldado por entre as bancas de jornal, os quiosques  e os carros estacionados e batidos.  Uma padaria estava aberta. David se aproximou com cautela. Pisava de leve para não fazer barulho. Olhou lá pra dentro, forçando os olhos. Estava muito escuro, e não tinha nenhuma luz para ajudar. Ele andou devagar para dentro da padaria. Sobre o balcão tinha um tabulçeiro coberto com uma manta plastica. Ele levantou amanta e meteu a mão. Sentiu que era algo mole. Pegou um pedaço e cheirou.

Era pizza de forno. David começou a comer a pizza sofregamente, e mesmo sentindo que ela não estava lá muito boa, não quis saber. Comeu com vontade na escuridão até se sentir saciado. Saiu da padaria tentando desviar do monte de coisas caídas pelo chão. As gôndolas de produtos tinham sido derrubadas e havia muita coisa no chão. A roupa encharcada o incomodava bastante. David não conseguia ver nada e para piorar, aquela era uma noite sem luar.

Olhou para a avenida, tentando ver se sob algum daqueles prédios havia uma boutique, loja ou algo assim.

E foi então que ele viu, ao longe, no alto de um prédio, uma luz fraca, de cor âmbar a iluminar uma janela.

“Caralho! Tem gente lá!” – Pensou aliviado.

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

    • A ideia não é bem uma minissérie, mas eu acho que se ficar grande demais tb começa a dar problema, pois muita gente lê no trabalho e dividindo dá pra ter uma adesão maior sem atravancar tanto a vida da galera.

  1. hehehehe essa história poderia virar filme muito fácil e iria ser melhor do que muito filme de zumbi que tem por aí. Você escreve muito bem cara. Parabéns

  2. Rapaz, estou curtindo muito esse conto. Fora que o formato de “partes” (além da alusão a pedaços de corpos, hehehe) faz com que o povo volta mais aqui (eu mesmo nem fui pro GReader, pulei direto pro site – primeiro que entrei hoje).

    Ah! Detalhe: você é o primeiro que escreve sobre zumbis e falam que eles fedem. Geralmente Hollywood “ignora” essa parte! X)

    Abraços,

    tio .faso

    • HAhaha, pode crer. Mas vamos ver no que vai dar. Esta estou escrevendo on the fly. Nem sequer estrutura eu criei. Geralmente eu crio uma estrutura básica. Neste caso estou tão curioso quanto ao que vai acontecer quanto você. Vamos torcer para que eu não CAGUE tudo no final.

    • Cara eu sempre penso as histórias imageticamente. Então, eu posso dizer que pensei sim, mas acho que seria muito legal ver isso em video. Se bem que… A barra vai pesar. Deixa queito, hehehe.

  3. Grande Philipe!!
    Rapaz! Que conto! Muito bom. Estava com saudades dos contos. Continue assim e mande a parte 3 logo que queremos ler. Mundo Gump forever!!!
    Vanderson – Leitor Assíduo.

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