Zumbi – Parte 15

David ficou alguns segundos olhando o corpo de Alice estirado na varanda da cabana. Era uma mulher bonita, sem duvida. Ele se espantou com o estranho desejo, quase incontrolável, de meter os dentes naquela carne.

Não, ele não podia fazer isso. Ele gostava dela.

David sentou-se ao lado dela. Todo sujo de sangue. Os corpos no sol já começavam a atrair as moscas.

David Carlyle sentia-se mal. Não era certo comer gente. Havia violado um dos mais antigos tabus da humanidade, que diz que “Gente não deve comer gente”.

“…Mas espere, eu não sou gente. Agora eu sou zumbi!” – Pensou.  David olhava seu corpo todo sujo de sangue e respingado de pedacinhos de miolos.

“…Meu Deus! Olha só pra mim. Veja no que eu me transformei… Sou uma aberração. Que vergonha, David!”

David não conseguia entender o que o levou a fazer aquilo, perder o controle daquela maneira. Talvez o ódio, talvez a raiva, talvez o medo, o ciúme, ou tudo isso junto.

“A quem estou tentando enganar? Não sou melhor do que aqueles montes de carnes podres e ossos que perambulam nas cidades”. -Constatou em tenebroso silêncio.

David tinha vontade de chorar, mas não conseguia. Algo dentro dele gradualmente sufocava as emoções. Ele temeu que com o passar do tempo, fosse lentamente perdendo sua humanidade.

David Carlyle pensou que talvez seu organismo não estivesse num estagio final da transformação. As coisas eram estranhas com ele. Talvez fossem as vacinas naquele laboratório, talvez fosse a gigantesca overdose que tomou na obra… Ou não. Talvez a razão daquilo fosse apenas uma mutação.

“As pessoas nascem com mutações em todo o planeta. Existem pessoas com braços a mais, a menos, cabeças gigantes, alterações de crescimento, pessoas com doenças misteriosas e raras. Por que não pode haver alguém com uma resistência parcial ao virus Tegen?” – Refletiu olhando para os corpos despedaçados e mutilados.

David parou para pensar em tudo que vivera até ali e reconheceu que cometeu uma burrada. Talvez o melhor tivesse sido ficar no ponto zero e aceitar que o china fizesse as experiências com ele. Talvez isso o deixasse numa situação menos miserável da que estava vivendo agora, rodeado de carcaças profanadas repletas de moscas varejeiras. E com a mulher que amava ao seu lado, estuprada, ferida, desmaiada…

Talvez tivesse sido melhor se ele morresse na overdose como todo doidão ou astro de rock hard core que ele nunca conseguiu ser.Vivendo intensamente e morrendo jovem…

-Ung… Ai, meus braços. Ai… – Alice gemeu. Ela parecia acordar de um horrível pesadelo. Estava tonta e não lembrava de onde estava. Ela não abriu os olhos, apenas gemeu baixinho: – O que aconteceu. Ung, minhas costas!

David  ficou ali, parado, ao lado dela. Sentia alguma coisa dentro dele. Uma sensação estranha, como  algo que rapidamente crescia e se espalhava. David ficou ali, sem dizer nada. Mesmo porque, a contaminação havia tido um bizarro efeito em seu organismo e agora ele não conseguia mais falar. Porém, pensava normalmente. Ainda mais agora, depois de comer a carne daqueles desgraçados, seus pensamentos estavam cristalinos e rápidos.

“Isso é melhor que tomar energético”. – Pensou.

Enquanto Alice lentamente olhava as coisas ao redor, com uma expressão de estranhamento. David confrontava seus fantasmas internos.

“Maldição…Eu sou um estúpido. Mesmo. Olha só pra mim, cheio de peso na consciência… Por acaso comer a carne alheia é pior do que injetar heroína do próprio corpo como eu fazia? No fim das contas não é tudo uma profanação? Por que profanar o corpo de outro seria pior que profanar o meu? Aliás, eu só comi os filhos da puta que mereceram.”

-Onde eu estou? O que aconteceu? – Alice olhava aterrorizada para os corpos esfacelados pelo chão, ao redor da entrada da cabana. Ela se virou para David, que continuava impassível olhando para ela, como um boneco.

-O que… O que você fez? Por que eu estou assim? – Disse ela, olhando para baixo ao ver que estava nua.

Então David entendeu. Ela havia bloqueado. O estresse das últimas horas havia sido tão forte, tão traumático, que Alice apenas desligou as memórias, como acontece com pessoas que sofrem terríveis acidentes.

David não disse nada. Não podia dizer nada. Ele sabia que cedo ou tarde era iria se lembrar. Ele não esboçava reação. Apenas olhava para ela, com a expressão vazia de sempre. Não havia mais a dor, e isso o deixou feliz.

-Você… Você comeu essas pessoas, David? Foi você?

David assentiu com  a cabeça, sem tirar os olhos dela.

-Oh, meu Deus, David…

Alice sentou do lado dele. Ela também estava quieta agora.

David colocou o braço ao redor da cintura dela.

-Ai!  – Ela gemeu quando ele encostou no corte da chicotada.

Os dois ficaram ali, olhado para o mato. Sem dizer nada. O silêncio dizia tudo. Alice parecia ter perdido completamente o medo dele.

Foi ela que rompeu o silêncio.

-Precisamos nos vestir, sair daqui. Podem haver outros…

David acenou positivamente com a cabeça. Ele se levantou. E saiu puxando a moça para a floresta.

-Mas e as roupas? – Ela perguntou enquanto era puxada pelo zumbi.

David parou, olhou para as roupas, olhou para ela. E fez sinal positivo com a cabeça. Alice correu até a cabana e pegou suas roupas no chão. David veio andando atrás dela.

Alice pegou o macacão branco e estendeu a David. Ele olhou o macacão e recusou, movendo a cabeça de lado a lado.

-O que foi? – Ela perguntou.

David apenas olhou para os frangalhos sanguinolentos que se espalhavam na varanda. Apontou para o corpo de Ed.

Alice olhou para o zumbi. – Você que sabe!

David foi até o corpo e começou a despi-lo. Tirou o sobretudo, tirou a camisa preta, empapada de sangue. Sacudiu para cair os pedaços de miolos e restos de pele. Em seguida, Alice o ajudou a retirar as botas do cadáver.

Após alguns instantes, eles adentravam a mata, ainda nus, carregando as roupas nas mãos.

Foram até o rio, onde Alice lavou o sobretudo, as calças e a camisa de Ed.

David saltou no remanso, mergulhando na água gelada. O dia estava quente, e a água que na parte da manhã era congelante, agora oferecia uma sensação refrescante.

Alice saltou atrás. Quando ela mergulhou sentiu as feridas ardendo muito.

-Nossa, minhas costas estão muito machucadas. Será que vou conseguir vestir a blusa?

David ficou quieto na água. Apenas olhava pra ela. Era linda, parecia uma ninfa dentro da água. Mesmo ferida, aquela mulher era tudo que ele sempre desejou para estar ao seu lado.

Alice olhou para David. Sem o sangue seco a lhe cobrir ele não parceia tão assustador.

Alice se aproximou dele. Os olhos dela fitando o fundo dos olhos sem vida do zumbi.

-Eu sei que você ainda está aí dentro. – Ela disse.

David pegou na mão dela. Alice beijou o morto. Sentiu o gosto metálico do sangue na boca dele.

-Vem, vamos, ainda tem sangue aqui. – Ela disse, meio sem graça, esfregando o pescoço dele para remover o sangue coagulado.

Após o banho no Rio, eles vestiram as roupas molhadas. Alice desfiava um monólogo sobre precisarem fugir daquele lugar.  E como o odor do sangue poderia atrair as feras para a cabana.

Eles retornavam para a cabana, onde estavam as armas, quando Alice ouviu um som conhecido.

-Está ouvindo isso, David?

-David Carlyle assentiu com a cabeça.

-Ah, não… – Ela disse forçando os olhos por entre os troncos das árvores. – Acho que é um urso!

-David pensou: “Puta merda, só me faltava essa!”

Ele apontou na direção da cabana, e os dois começaram a correr entre as árvores.

-Vem, David. Temos que alcançar a arma!

O som do rugido da fera era cada vez mais alto.

-Está vindo atrás de nós!

Os dois não olharam para trás, mas podiam ouvir o som dos pesados músculos e pelo grosso do urso pardo quebrando galhos, esmagando folhas e explodindo arbustos rasteiros na esperança de abocanhar um deles.

Os dois chegaram na cabana, onde as moscas voavam para todo lado.

-Corre David!

David corria o mais que podia. Alice saltou sobre a metralhadora, caída no chão.

-Saaaaaaai! – Ela berrou, virando-se na direção de David.

O zumbi saltou no chão, rolando pela grama com as mãos sobre o rosto, na tentativa de se proteger.

A metralhadora disparou uma rajada direto na cabeça da enorme fera. Os primeiros tiros não pararam o urso, que continuou avançando na direção de David, mas Alice não pestanejou e continuou a disparar contra o animal.

O urso pardo finalmente caiu, tombando pesadamente contra o chão.

David se levantou e olhou para a fera, a pouco mais de três metros de onde ele estava. Em seguida olhou para Alice, que estava segurando a metralhadora, ainda atirando no corpo do animal, já sem vida.

-Morreeeeeeeeeeee! – Ela gritava, enquanto a arma cuspia projetis contra o corpo do animal.

Alice só parou de atirar quando as balas da metralhadora acabaram.

David foi até ela, e pousando a mão no ombro da moça, lentamente baixou a arma da mão dela.

Alice olhou para David.

David tinha o olhar perdido e triste. Fez que “não” com a cabeça.

-Desculpa desperdiçar as balas, David… Não… Não sei o que foi que me deu.

David fez sinal para que ela o seguisse. O zumbi saiu andando. Apontou os revólveres no chão.

Alice apanhou um e David o outro.

-Vem, vamos sair desse lugar desgraçado.  – Ela disse.

David gemeu alguma coisa ininteligível, e os dois desceram pela trilha, largando a chacina para trás.

Minutos depois, chegavam nos carros. Alice saltou para dentro do veículo. David sentou-se no banco do carona e eles saíram com o SUV pela trilha da floresta, até chegar na rodovia.

Alice dirigia em silêncio. Concentrada na estrada.

David olhava para a frente, como se fosse um boneco. Pensava nas alternativas. David não tinha muitas chances de sobreviver.  Ele sabia. Bastaria que eles encontrassem um grupo de sobreviventes para que o zumbi fosse apedrejado, socado, marretado, machadado, queimado e esmagado em pedaços até que não restasse mais nada.

Ele se pegou pensando na ironia do destino de ter se transformado em zumbi. Agora dependia da mulher que jurou  proteger, e sabia que o que significava sobreviver para ela era o mesmo que a sentença de morte para ele.

-Não demora muito vai escurecer. – Alice disse olhando para o céu. O Sol estava baixando e ela podia ver pelo retrovisor.

David não disse nada.

O carro voltou a ficar silencioso. Alice dirigia em silêncio e David achou que tinha visto a moça chorar baixinho em alguns momentos. Mas ela disfarçou bem, esfregando os olhos e colocando uns óculos escuros que estavam enfiados no pára-sol do carro.

Após cerca de duas horas de viagem, eles avistaram um carro de polícia estacionado num acostamento da estrada. Alice passou devagar, para se certificar que não havia ninguém. David estava abaixado no banco.

-O carro parece estar vazio. Mas pode ter uma arma ali. – Ela disse.

Alice estacionou o carro perto da viatura da polícia e desceu com a arma em punho. Olhou os arredores e só viu a estrada e umas árvores distantes.

-Porra, para onde diabos deve ter ido este policial?

Alice olhou o carro mais de perto. Estava destrancado. Ela abiu a porta e olhou lá pra dentro na esperança de achar alguma arma.

A chave ainda estava na ignição.

O pára-sol do carro da policia estava aberto, e havia alguns documentos do veículo, um cartão de estacionamento, presos com elástico.

O radio estava mudo. Só um pouco de estática e nada mais.

Alice ligou o carro e viu que ele estava sem combustível. Não havia nenhuma arma no carro.

Ela retornou ao SUV. No banco do carona, David estava olhando pra ela.

-Nada… – Ela disse. – Nem uma arma.

Alice ligou o carro e partiram. David ficou olhando o retrovisor, viu o carro da policia ficando cada vez menor, até sumir numa curva.

Minutos depois, eles passaram por uma casa de fazenda. A casa estava ao longe. Era branca, não muito grande, ficava no alto de uma colina, ao lado de uma arvore exuberante. David pôs a mão na perna de Alice e apontou para o lugar. Alice reduziu a velocidade do carro e parou no meio da estrada.

-Lá? – Alice comentou preocupada.

David acenou positivamente com a cabeça.

Alice desceu do carro e olhou sobre o capô. A casa parecia deserta, mas eles estavam muito longe. Ela estava hesitante. Ela tinha medo de haver mortos por lá. Provavelmente os caras que comeram os policiais estariam por aquelas bandas.

-Não, sei… Acho melhor pensarmos noutra coisa, David.

David soltou um grunhido baixo e apontou para o céu.

-Tá. Você tem razão. O sol está se pondo. Vai ficar escuro, e a estrada não é um bom lugar para nós.

O zumbi concordou, fazendo um sinal com o polegar para cima. Alice começou a rir daquilo.

O sol começava a se por quando eles rumaram pra lá. O carro saltava por uma estrada de terra batida, ressecada e esburacada. O caminho que conduzia a propriedade atravessava uma planície de pasto. Mas não havia nenhum animal nos cercados da fazenda.

A casa era muito bonita e tinha um jardim exuberante com flores azuis que balançavam ao sabor vento. No pasto, nos fundos da casa, havia os restos de um trator, enferrujado, o qual trepadeiras escalavam.

Estava tudo silencioso e só se ouvia os últimos pios dos passarinhos, além do vento. Alice parou o carro junto a entrada da frente. Ela disse a David para esperar o carro.  O zumbi concordou.

Alice desceu com o revolver em punho.

-Olá? Tem alguém em casa? Olá? – Ela gritou, esperando alguma reação.

Mas não houve sinal de vida. Alice então se aproximou.

Ali na frente da casa, ela encontrou um pequeno galão vermelho, vazio. Ele ainda tinha cheiro de gasolina.

A casa estava fechada. Alice subiu até a varanda e olhou pela janela. Não se via muito lá dentro.

Forçou a maçaneta. Estava trancada.

Ela deu a volta pela varanda, tentando olhar pelas janelas, todas fechadas. Alice olhou pela janela e achou ter visto alguma coisa lá dentro.Mas os vidros estavam embaçados e ela não conseguiu enxergar.

Subitamente, uma coisa segurou seu ombro.

Alice deu um grito de pavor.

Era David.

-Porra! Eu te falei pra esperar no carro, David. Quer me matar? David olhou para Alice com seu olhar vazio.

-Acho que vi alguma coisa lá dentro. -Disse a moça.

David começou a olhar pelo vidro. Mas era impossível, pois os vidros estavam embaçados demais.

-Unnnng. – David gemeu, apontando algo na janela.

Alice olhou e viu moscas andando pelo vidro.

-Mortos.

David assentiu.

-Deve ter mortos aí dentro. – Ela disse, olhando para o céu.

Já estava escurecendo. E o vento começava a esfriar.

-Está tarde demais para tentarmos outra coisa… Vamos ter que passar a noite aqui. – Alice disse.

-Chega pra lá. – Ela apontou para o canto com a arma. David saiu de perto da porta.

Alice mirou na fechadura e disparou. A fechadura estourou.

Ela meteu o pé na porta e os dois adentraram a cozinha.

A casa era uma estufa quente e fedorenta. O cheiro de amoníaco era insuportável. Alice começou a tossir. Uma nuvem de moscas voava pela cozinha em direção a porta.

-Ah, meu Deus! Que diabo de lugar é este? Um necrotério?

A casa estava imersa na escuridão. Os últimos raios alaranjados não serviam para iluminar o interior da casa.

David empunhou o revólver prateado. Ele puxou Alice pelo braço. Fez sinal, para que ela esperasse na varanda.

Alice saiu da casa, buscando ar puro.

David adentrou na escuridão. Ele sabia que com as moscas e o cheiro, o mais provável é que houvesse um zumbi por lá. E como ele já era um zumbi, seria menos arriscado para ele.

David chegou na sala. Na pouquíssima luz que entrava pela janela da varanda, conseguiu ler uma inscrição com sangue na parede.

“Deus nos perdoe.”

Abaixo da inscrição com sangue seco, havia um cadáver de homem, sentado numa poltrona, de frente para uma antiquada televisão. Ele estava sem metade da tampa craniana. Pelo estado de conservação, já estava lá fazia muitos dias. Milhares de larvas se espalhavam pelo rosto do morto. As moscas voavam por todos os lados. O morto que segurava a antiga carabina vestia um macacão de brim surrado.

No chão, jazia outro corpo. Este de uma mulher, com vestido de festa. Era cafona, mas David conseguiu reconhecer que era o melhor vestido dela.

“Coitada. Esta se preparou para a morte.” – Ele pensou. Certamente o marido havia decidido a dar fim na vida deles quando as coisas ficaram fora de controle.

David abriu a janela da sala e o ar puro entrou no ambiente.

Em seguida o zumbi foi até a porta e abriu o trinco interno. Uma corrente de vento adentrou a casa e as moscas começaram a sair. Uma luz amarelada surgiu no fim do corredor. Vinha da cozinha.

David foi até lá e viu que Alice estava acendendo uma lamparina de querosene.

Alice entrou na sala e ficou horrorizada com aquela cena. Mas não demonstrou surpresa ao ver a inscrição com sangue seco na parede.

-Então esses eram os donos da fazenda? – Ela disse, chutando o defunto da mulher.  Os corpos dos dois, mas principalmente o da mulher ruiva estava soltando líquidos. Havia um caldo malcheiroso que impregnava tudo, que minava do cadáver dela.

-Vamos olhar lá em cima. – Alice apontou com a arma.

David foi na frente. Subiram as escadas de madeira com cuidado. A casa tinha dois andares, e pela quantidade de janelas, Alice mensurou que teria quatro quartos. Isso significava que talvez fosse uma casa para mais de duas pessoas.

Após passarem pela entrada do quarto do casal, chegaram a um corredor onde havia uma porta no final, e quatro outras portas ao longo do mesmo. Todas fechadas.

David fez sinal para Alice esperar. Ele entrou, com a arma na mão. Chegou na primeira porta da direita e abriu de uma só vez.

Ali estava uma bagunça. Parecia um depósito de entulhos.

David fechou aquela porta e foi até a outra. Abriu de supetão. Havia duas camas de solteiro, cuidadosamente arrumadas.

David abriu então a outra porta, e encontrou um quarto de menino, com aviõezinhos pendurados do teto. Tinha uma bela mancha de sangue numa das paredes, com um buraco enorme no meio. Uma escrivaninha com livros e muitos gibis empilhados ao redor da cama. A cama estava bagunçada e cordas pendiam da cabeceira. O quarto de uma maneira geral estava bastante bagunçado e brinquedos se espalhavam pelos cantos. David viu que só restavam agora duas portas. Uma no final do corredor, e outra à sua frente.

-Abre a do final! – Palpitou Alice, lá perto da escada.

David olhou para ela. E então abriu a que estava perto dele. Era uma espécie de escritório. Com uma estante cheia de livros grossos.

David foi então até a última porta. Algo lhe dizia para não abrir.

Ele meteu a mão a porta e girou a maçaneta. Mas a porta estava trancada.

David se virou para Alice, e moveu a cabeça em sinal negativo.

-Que foi? – Ela sussurrou da escada.

Subitamente a porta começou a ser esmurrada e urros e gemidos guturais vieram lá de dentro.

Alice veio na direção dele, com a arma na mão e a lamparina em punho. Estava trêmula.

Olhou cada um dos quartos.

-David ouvia impassível o som das criaturas socando e arranhando a porta.

-São as crianças, né?- Sussurrou Alice.

David moveu a cabeça em sinal positivo.

-Eles não tiveram coragem de matar as crianças… Acho que eu também não teria.- Ela disse, olhando para a pistola.

-Vem, vamos deixá-los aí. Não vamos poder dormir aqui em cima. Eles vão os ouvir, farejar e ficarão batendo e rosnando aí até arrombarem esta merda. Acho que vamos ter que dormir lá pra baixo. Talvez possamos carregar os corpos para o celeiro.

Minutos depois, David estava atravessando o pasto, com o corpo pútrido e enrijecido do fazendeiro nas costas.  Passou pela baia dos cavalos. Dois estavam mortos, os cadáveres pareciam desidratados e magros nos currais. Mas uma das baias estava aberta.

“Pelo menos um deles fugiu.” – Pensou David.

Ele jogou o corpo com a cabeça explodida no celeiro e voltou para pegar a mulher.

Alice estava limpando a sala, passando um pano no chão melado enquanto reclamava:

-Que fedor nojento. Não sei como vou conseguir dormir nesta porra dessa casa…

David pegou a mulher e levou para o celeiro. Jogou a dona ruiva sobre o corpo do marido.

David retornou até a casa. Sem os corpos ela já fedia bem menos. O forte vento que adentrava a sala tirava o gás da decomposição, trazendo consigo um sopro de vida. Praticamente não havia mais moscas.

David estancou perto da entrada da cozinha.

-Veja, David! Achei comida. Eles tinham muitos enlatados!  – Alice estava animada, remexendo o armário da cozinha em busca de coisas para comer.

-Refrigerante quente! Atum… Sardinha… Sopa concentrada, biscoitos, salsichas, molho de salada…

David ficou olhando Alice. Aquela era a primeira vez que ela se sentia feliz desde a primeira noite na cabana.

Enquanto ela preparava sopa de champignon com salada de atum, David sentou-se  numa cadeira junto à porta.

Alice estava concentrada, cozinhando. David apenas ficou ali, olhando para ela. Observando seu trabalho. Ele não sentia frio, ou medo, ou vontade de tomar sopa. Não sentia a dor. Mas ele sabia que uma única sensação o incomodava. Era um estranho e incômodo desejo, que David reprimia com toda força: O desejo de saltar sobre Alice e morder-lhe o pescoço. Sentir a cascata de sangue quente descer pela sua garganta. Morder com vontade aquele pescoço tenro e branco, e desfrutar o prazer de morder os olhos dela com a volúpia de um mendigo faminto que mastiga almôndegas.

David olhou a moça. Os seios empinados surgindo sob a camiseta de algodão. Ele imaginou-se abocanhando aquele seios e mordendo, rasgando a carne, e repuxando as múltiplas camadas de gordura, que mastigaria com prazer letárgico, como uma recepcionista de motel mastiga um chiclete sem sabor. Em seguida, morderia os glúteos avantajados dela mordendo, rasgando e chupando o sangue que por ventura minasse da ferida. Ele deliciaria-se com cada pedacinho de nervo e músculo daquele traseiro…

-Que foi David? O que você está me olhando assim hein?

-David se tocou que Alice estava olhando pra ele com uma expressão estranha.

-Assanhado! Era só o que me faltava! Um zumbi safado querendo me comer. – Ela disse.

David teve vontade de rir, mas não conseguiu.

Começou a pensar na situação inusitada de um vivo conviver com um zumbi. Alice era uma mulher corajosa.

Alice colocou os pratos na mesa. Serviu a sopa para David.

Ele teve alguma dificuldade em comer. Percebeu que suas mãos estavam voltando a tremer.

A sopa agora tinha um gosto horrível. David não conseguiu comer.

-Que foi? Não está com fome, David?

David Carlyle olhou pra ela. Moveu a cabeça negativamente.

Alice entendeu. Ela tinha uma expressão triste. E não disse nada. David sabia no que Alice estava pensando.

“Ela está pensando que eu não sou humano. Que eu sou perigoso, e o quão burra ela é de ficar com uma criatura como eu aqui neste lugar ermo e esquecido por Deus.”

David levantou os olhos e viu a escritura com sangue na parede da sala.

“Que Deus tenha piedade dela.” – Pensou.

Alice terminou de jantar e retirou os pratos. Jogou-os na pia. Tomou um copão de refrigerante quente.

David se levantou da cadeira e foi até a porta da sala. Olhou para a escuridão do pasto. Vaga-lumes surgiam magicamente pelo distante pasto, acendendo e apagando como pequenos fantasminhas. A noite já ia alta e apenas o brilho da lua iluminava os arredores.

-Vamos dormir, David? – Ela perguntou.

David moveu a cabeça positivamente. Continuou na porta olhando para o pasto.

Alice foi até o segundo andar. As crianças mortas tornaram a bater e arranhar a porta do banheiro em meio a grunhidos e berros histéricos. O eco surdo de suas pancadas ecoava pela casa de madeira. Novamente os pequenos zumbis despertavam ferozes em busca de aplacar sua dor.

David parou para pensar naquelas pobres criaturas. Como elas foram parar ali? Ele ficou conjecturando a história daquela família. Certamente que uma das crianças foi mordia, e o pai sabendo no que daria, tentou impedir, prendendo o filho à cama. Provavelmente, a criança conseguiu se soltar e acabou mordendo os irmãos. Desesperado, o pai matou o menino a tiros, mas aí  já era tarde.

Os outros estavam mordidos. Desesperado, o pai levou as crianças até o banheiro e tentou afogá-los na banheira. Não conseguiu. As meninas pequenas choravam nem entender o que se passava.

O pai chorou e pediu perdão a elas. Ele não seria capaz. Então trancou as crianças no cômodo e foi até a sala. A esposa o encontrou em frangalhos. Já não era o homem com o qual ela casou. Ela compreendeu duramente  o que eles teriam que fazer. Não viam mais condições de viver sem os filhos.

A mulher pediu para o marido esperar. Ela foi até o quarto, vestiu o seu melhor vestido. Certamente era um que tinha algum significado importante para ela. Lembrou os bons momentos que passou com ele. Escovou longamente os cabelos ruivos, enquanto ouvia o choro das crianças no andar de cima. Elas batiam na porta, implorando ao pai que abrisse. A mulher vestiu seu melhor par de sapatos, colocou o colar que pertencera a sua avó e com algum esforço, talvez tivesse conseguido recolocar a aliança de casamento.

Desceu para a sala e encontrou o marido trancando a casa.

Os dois despediram-se com um beijo, enquanto a Tv repetia a mensagem de alerta para os vivos procurarem os abrigos militares. A mulher talvez tivesse pedido perdão por alguma coisa e os dois choraram juntos.

Quando a hora final chegou, eles disseram adeus um ao outro.

Enquanto ouvia as crianças chorando no andar de cima, o marido apontou a arma para a mulher ruiva e atirou. Ela caiu no chão e ainda tentou sorrir, olhando para ele com a carabina na mão. O buraco fumegante aberto no peito dela verteu algum sangue no piso. O marido abaixou-se e apoiou a cabeça da mulher no colo. Ela olhou nos olhos dele até que as coisas se apagaram.

O marido então passou a mão pelo chão, e escreveu uma mensagem nas paredes, pedindo a Deus que os perdoasse. Não por cometerem suicídio, mas por abandonarem as crianças à sua própria sorte. Ele sabia que aquele não era o papel de um pai. Mas não tinha coragem de matar os próprios filhos. A dor pela morte do menino, seu xodó, o único entre os outros que carregava o nome dele, era demais.

Escreveu na parede branca da sala e olhou para a esposa deitada no chão. Sentou na cadeira que durante décadas serviu para ver Tv. Posicionou a carabina com cuidado contra a têmpora e puxou o gatilho.

Após o estampido, a casa caiu num profundo silêncio e o eco dos choros infantis lentamente deu lugar a rugidos e gemidos grotescos. A porta do banheiro foi raspada e mordida até que novamente o silêncio tornou a imperar naquela casa da colina. E assim ficou por vários e vários dias.

Claro que tudo aquilo era apenas uma série de conjecturas feitas pelo zumbi. Alice desceu as escadas de madeira carregando fronhas, travesseiros e dois colchões.

-Vou dormir aqui e você ali. – Ela disse, apontando os colchões na sala de jantar.

David olhou para ela com os olhos vazios e inexpressivos de sempre, mas por dentro estava desolado. Ele sentiu na pele o quão duro era ser um zumbi naquele momento. As camas separadas, Alice verificando as balas do revolver no tambor antes de se deitar com a mesma ao lado.

David se deitou na cama arrumada no chão. O cheiro de podre na casa ainda era forte. Eles não tinham coragem de dormir com a porta e janelas abertas. Quando Alice fechou a casa, o cheiro da morte ressurgiu como uma presença maligna.

-Boa noite David. – Disse ela, apagando a lamparina.

-Unnnngrrrr. – Ele gemeu baixo.

O tempo decorreu e David ficou ali, de olhos fechados, ouvindo os gemidos infantis no andar de cima. As crianças ainda gemiam no segundo andar, horas depois. Era irritante. Alice parecia dormir pesadamente.

“Pelo menos pararam de esmurrar a porta” – David pensou.

Ele podia ouvir as crianças gemendo e conseguia identificar pelo menos três delas no banheiro. Quando o silêncio se abateu sobre a casa da colina, os pensamentos da cena de Alice sendo estuprada invadiram sua mente.Aquilo o machucava. Não pelo fato de ter visto a mulher que ele amava sendo violentada por psicopatas, mas por ele tê-la visto gozando. Pedindo para que o homem não parasse. Aquilo doía. A imagem não lhe saía da cabeça. David tentava dormir, fechava os olhos, mas o sono não vinha. Só os pensamentos terríveis e lembranças ainda piores.

“Que merda! Zumbis não dormem.” – David pensou. Se conscientizou que talvez não fosse dormir nunca mais. Esforçou-se para ter pensamentos bons e lembrou-se da última vez que havia dormido. Ele tinha ido a nocaute depois de fazer amor romanticamente com Alice. A melhor noite de toda sua vida havia precedido a pior fase de sua existência.

Alice estava agitada. Estava tendo um pesadelo. Uma criatura escura a agarrava. Ouviu o som da chibata estourando e ecoando na floresta. Viu dentes pontiagudos se abrindo na direção dela. Ouviu o rugido ameaçador do Urso pardo das montanhas… Alice acordou banhada de suor. Ela sentiu um sopro frio atingindo seu rosto. A morena  abriu os olhos e viu a porta aberta. Era o vento da madrugada.

Alice se assustou. Sacou a arma.

“Santo Deus! Alguém entrou na casa!”

Continua

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. legal gostei da forma como usou o The Walking Dead, até o cavalo q o Rick Grimes usou foi citado (pobre cavalo, virou lanchinho em Atlanta t.t)

    muito bom continue assim! parabens

  2. Opa! Então já sabemos que a estória acontece em Atlanta! XD

    O mais legal é pensar que ela ocorre em paralelo com os eventos do The Walking Dead, como se todos os filmes de zumbi – que aparentemente parecem como eventos individuais – são na verdade retratos diversos do mesmo acontecimento.

    Como seria bom se essa ligação fosse verdadeira…

    .faso

  3. philipe…. chorei mesmo, cara … acho que não vai ter final feliz … mesmo assim tá muito bom, e david tá menos que merda, ele é a mosca da merda

  4. Pelo o que já entendi, quando David volta pra cidade, ele volta sem Alice, já que ele está sozinho no começo da história quando mata o garoto.

    David… Philipe Kling David. hehehehehe
    É, eu vejo o Philipe como David na história. hehehe

  5. Não curti muito o esquema do David zumbi humanizado. Acho que perdeu o foco, espero que isso melhore.

    Sabe dizer quantas partes serão?
    Bom trabalho cara :D

    • Henri,

      Mas é justamente nisso que está a parte boa da estória! Como o Philipe já comentou em outras partes, esse é um conto a partir do ponto de vista de um Zumbi.

      No caso do David ele não perdeu completamente a racionalidade por ter sido cobaia de experiências, caso não tivesse acontecido a Alice já tinha virado jantar e o conto tinha terminado há 3 partes atrás.

      Aproveite o diferente! X)

      tio .faso

    • Cara eu não sei quantas partes serão, porque eu nunca sei o que vai acontecer. A história vai se construindo magicamente aqui na minha frente no momento em que eu escrevo. Mas eu sinto que ela se aproxima do final. Do meu ponto de vista, a história não perdeu o foco, pelo contrario, agora sim ela está chegando onde eu queria. Aliás, a parte de hoje será decisiva. O chato é que hoje eu tenho uma reunião importante e preciso entregar um trabalho aqui. É possível que eu não possa fazer a parte de hoje. Provavelmente só amanhã (mantendo a tradição do blog, hahaha) Aliás, nosso slogan é:

      Mundo Gump – Sempre a frente do seu tempo!

      (porque eu nunca consigo cumprir os prazos e sempre entrego a parada depois da data que determino.)

  6. Boraaaa! Cadê o restoooo?! Hahahahah! Desculpe, mas é que tá muito divertida essa série! Pra compensar a minha chatice, toda vez que eu lembro eu clico nos links patrocinados, pra vc ganhar uma graninha de adsense. Hehehehe! Parabéns por tudo! Abraço!

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