Trevo

Fazia um frio cortante. O vento que soprava, inclemente, incessante, estava a ponto de lhe congelar as orelhas.

Sentado com as pernas cuzadas em posição de lótus, Dick olhava para um buraco na terra. Era somente um buraco, cheio de terra preta e nada mais. Uma ou outra pedrinha mais clara despontava entre os pequenos torrões da terra escurecida e estéril. Não havia formiga ou inseto.

Era o alto de uma montanha. E nuvens distantes prenunciavam uma tempestade para dali a algumas horas. Não muito distante, as gigantescas torres de dolomita cortavam os céus, a mais de três mil metros de altitude.

Ele mantinha os olhos fixos no buraco. Estava assim há horas. Na verdade, há dias. Em muitos momentos, sua mente tentou lhe convencer de quão ridículo era tudo aquilo. Subir uma montanha com aquele velho louco… Aliás, velho que havia sumido no meio da montanha. Mas ele se lembrava das palavras do velho. Não podia descuidar da missão. A missão estava acima de tudo. Ele precisava cumprir a missão para subir de grau. E aquela era uma das mais difíceis.

Continuou a olhar. A projetar sua vontade contra o solo gélido.

Mas nada acontecia. Por mais que ele tentasse, por mais que rememorasse as lições que recebera de Leonard nos últimos três anos, nada acontecia.

Ao longe, viu um movimento. Era ele. O velho metido num capotão de lã, com cachecol e um gorro ridículo cor de rosa. O velho vinha com passos lentos, escalando a parte mais pedregosa da subida. Dick estranhou, porque era muito mais fácil subir pela parte plana, coberta de relva e flores pequenas que se balançavam açoitadas pelo vento. Mas o velho trepava, arriscando a própria vida num amontoado de pedras soltas, que se desprendiam diante de seu peso. Por muitos momentos, Dick pensou que o velho iria cair para trás e rolar montanha abaixo.  Mas apesar da idade, o velho prosseguia, passo a passo, lentamente, mas sem parar.

Dick voltou-se para o buraco. A presença do velho piorava gravemente sua sensação de fracasso. Ele não havia conseguido. O buraco estava ali. E não havia nada dentro dele.

-Maldição! Vai! Vai! – Sussurrou Dick, vendo o vapor d´água de sua respiração flutuando no ar como fumaça.

A temperatura estava despencando rapidamente. Dick sabia que não aguentaria mais um dia olhando fixamente para um buraco.

De esguelha, ele viu a forma escura se aproximando. O velho vinha, limpando os joelhos da sujeira.

Dick não disse nada. Continuou ali, agora de cócoras, diante do buraco. O velho parou ao seu lado. Não disse nada. Dick também não perguntou nada.

Sua vontade era de agarrar Leonard pelo pescoço e lhe encher de sopapos. – “Porra, onde você estava, filho da puta?”

Mas não perguntou, não disse nada. O velho tampouco comentou seu desparecimento em plena noite escura, naquelas montanhas.

Dick manteve-se firme. Olhava o buraco, projetando sua vontade sobre ele.

E nada acontecia.

Foram incontáveis minutos, através dos quais somente o vento e seu uivo triste se fazia ouvir.

Foi Leonard que quebrou o silêncio:

-Tá fazendo errado, porra!

-Não enche! Vai dar certo! Eu sei que vai!

-Não precisa fingir que acredita se na verdade você não acredita, garoto.

-Não! Eu sei que vai. Sei que vai! – Disse Dick, decidido.

Leonard sentou-se do outro lado do buraco cheio de terra.

Tirou o gorro cor de rosa e olhou para o céu, franzindo a vista.  – Logo mais deve cair uma nevasca…

-Não me desconcentre, por favor!  – Respondeu Dick, entre os dentes.

Leonard começou a rir.

-Tá rindo do que, porra?

-Sua raiva contida. Você é como um saco dágua com muitos furos. Não consegue sequer manter a raiva dentro de você. Como acha que vai conseguir subir de nível?

-Eu sei que consigo. Eu estou preparado.

-Não duvido que esteja preparado. E nem que consiga. Mas até agora só estou vendo terra aí! – Respondeu o velho, enquanto pegava algo de dentro do casacão. Retirou uma barra de chocolate.

-Servido?

-Sim, por favor!  – Respondeu Dick. Ele estava faminto. A sede campeava em seu interior.

-Negativo! – Disse Leonard, enfiando a barra de chocolate inteira na boca.

-Porra!

Leonard fez sinal para que Dick esperasse. Mastigou com vontade o chocolate. Depois que engoliu, disse: -Viu como você é um merda desatento?

-Que foi? Que egoísmo foi esse, hein? Eu tô aqui há dois dias, com pouca água e sem comida, porra!

-Você não prestou atenção quando eu disse que não pode comer nada? Nada é nada. Zero, rosca, nichts!

-Maldito. – Rosnou Dick. Continuando a olhar para o buraco.

-Vou tirar um cochilo. Continua aí.  – Disse Leonard, se levantando e batendo nas costas de Dick. Leonard foi até uma pedra grande nas proximidades. Ajeitou-se sob ela, para esconder-se do vento. Deitou ali mesmo, ao lado da barraca vermelha, e dormiu de barriga para cima.

Enquanto o tempo passava, Dick olhava fixamente para o buraco. Um orifício escavado no chão com as próprias mãos.

De longe podia ouvir o ronco do velho.

“Sabe fazer tanta coisa e não cura o próprio ronco…” – Pensou Dick.

O vento agora havia dado uma trégua.  Talvez um descanso providencial antes que a nevasca atingisse a montanha ao cair da noite.

Dick lembrou-se da noite mais horrível de sua vida, quando passara toda a madrugada olhando para o buraco no alto da montanha, enquanto a vinte metros dele, Leonard se aquecia diante da fogueira, comia macarrão enlatado e bebia vinho. A fome havia lhe torturado todo o tempo.

Lembrou-se da dura escalada que haviam feito. Era o princípio do outono na Itália. Tempo de muito vento. A escalada tinha sido difícil, porque o velho maluco nunca subia pelo caminho mais fácil. Dizia que “a graça da vida estava no risco”.  Dick em muitos momentos, pensou se Leonard não estava fazendo aquilo tudo de propósito, para que ele desistisse. O velho não era mesmo fácil de lidar.

-…Nenhum mestre é. – Disse uma voz atrás de Dick.

Ele se assustou. Deu um pulo.

Ali estava um homem de túnica. O rosto pálido. Era uma figura sombria e ameaçadora, com uma voz gutural. A voz era de um velho decrépito, mas a aparência era de um homem jovem. O homem baixou o manto, e Dick viu que ele não tinha cabelos. Nem sobrancelhas ou cílios. Não havia nenhum pelo e a pele era alva como a neve.

Dick não sabia quem era aquela figura, que parecia bastante despreparada para andar na montanha. Não tinha mochila e nem casaco. Nem btas de neve. Aliás, ele estava descalço usando somente um surrado manto preto, desfiado em algumas partes. O sujeito segurava um bastão de madeira, também velho.

-Quem… Quem é você?  – Perguntou Dick, trêmulo de medo e frio.

A figura misteriosa não respondeu. Apenas ajoelhou perto do buraco e deu uma olhada lá dentro.

-O teste da criação… – Disse ele com sua voz estranha.

-Sim, sim senhor.

O homem do manto se levantou, apoiando-se no cajado.

Dick olhou para Leonard, que dormia profundamente numa sinfonia de roncos.

-Não se preocupe com ele. Seu mestre está cansado. Deixe-o dormir.

-Você conhece ele? – Perguntou Dick.

-Não perca tempo com divagações, menino. Siga o que ele disse. Concentre-se no buraco. Na criação.

Olhe para ele. O que você vê?

-Eu vejo… O buraco.

-Não. Não está vendo o que deve. Olhe bem e tente novamente. – Disse o sujeito misterioso.

Dick olhou. Estava fraco. Cansado. Nas últimas forças. Sua mente estava zonza. Olhou bem para a terra escura, tentando pensar no que deveria ver.

-Eu não sou importante. Não pense para dizer a mim, ou para provar ao mestre. Olhe, concentre-se e queira. É sua vontade que deve ser concentrada. É a vontade. Não é o medo, nem essa autopiedade que traz em seu coração. Foque o buraco até que ele seja somente a única coisa que importa no universo. – Disse o estranho.

Dick, ajoelhou-se na beira do buraco. Nada acontecia dentro dele e aquilo era terrivelmente frustrante.

Dick continuou a olhar para o buraco. Tinha que acontecer alguma coisa. Tinha que acontecer! Ele não teria ido tão longe para fracassar.

De súbito, não percebeu onde estava o visitante. Quando Dick se virou para procurá-lo, não mais o viu. A figura estranha havia sumido tão repentinamente quanto havia aparecido.

-Porra… Cadê ele? – Disse Dick.

Levantou-se e percorreu o acampamento. Olhou ao longe em busca da figura misteriosa descendo a montanha, mas não havia nada, nem rastros e nem pegadas. Dick voltou para o buraco. Começou a pensar se aquilo não teria sido um delírio da fome e sede. Estava à beira da exaustão. Pensava o tempo inteiro em largar aquela merda toda e ir embora.

Mas ele precisava provar a si mesmo que estava apto. Sentou-se, fechou os olhos tentando concentrar o máximo sua vontade. Abriu os olhos diante do buraco cheio de terra.

Olhou, olhou, olhou. As pupilas concentradas num único ponto. A mente ecoando “Eu quero”.

-Vai… Vai…  – Gemeu Dick. Estava confiante que agora a coisa funcionaria.

Mas nada aconteceu.

Leonard se levantou e veio até ele.

-Ainda não conseguiu? Puta merda! Que bosta, hein moleque?

-Não fode!

Dick estava com raiva de Leonard. Tanta raiva que não queria papo. E por isso não falou do visitante.

-Vai acontecer. Eu sei! Eu sei! – Disse Dick.

-Então,  por que não aconteceu ainda, Dick? – Perguntou Leonard, com um sorriso.

-Merda! Merdaaaaa! – Gritou Dick.

-Vai chorar agora? É isso? Virou o que, um bebezinho? Olha o bebezinho do vovô!

Dick abaixou a cabeça. Concentrava-se o máximo no buraco.

-Assim você não vai conseguir. Tá errado, eu já disse.

-Tá. Vamos do seu jeito então. -Gemeu o homem, entre dentes.

-Seu mal é ser cabeça dura, Dick. Levanta, vem cá.

Lenard puxou Dick para longe. Andaram uns quarenta metros no solo pedregoso da montanha.

-Olha aí!  Falou Leonard apontando para a frente.

-Olhar o que?

-Tá vendo como você é estúpido? – Falou Leonard.

-Mas olhar o que, porra?

-A paisagem, né? Seu burro! Olhe para tudo isso que te cerca. Olhe todas as coisas, todas as criações. Se fosse difícil assim haveria tanto?

-Talvez seja difícil só pra mim. -Respondeu Dick.

SLAP! – Leonard esbofeteou o rosto de Dick.

-Porra!

-Não, Dick.- Disse Leonard. – Você só não sabe que é capaz. Não acredita que é. Não se permite ser. Sua maldita autopiedade não deixa você avançar!

Dick baixou a cabeça como uma criança travessa levando uma descompostura dos pais.

Voltou em silêncio para o buraco.

Sentou-se ao redor dele e continuou a olhar firme lá pra dentro.

Leonard foi até a barraca, e começou a preparar a fogueira.

As horas se passaram. Dick ainda estava parado, olhando firme para o buraco.

Ao redor da fogueira, perto do rochedo, Leonard comia feijões enlatados. De vez em quando olhava para Dick, de costas, a cabeça baixa apontada para o buraco.

-Pobre infeliz. – Disse Leonard entre uma colher e outra de feijão. – Eu devia ter feito diferente… Devia ter comprado mais macarrão com molho de queijo. Esse feijão vai me fazer peidar a noite toda.

 

Ao longe do calor acolhedor da fogueira e do saboroso feijão enlatado, Dick tremia feito uma vara verde. Mal dava para enxergar o buraco no meio da escuridão. Os pequenos flocos de neve desciam num balé gélido. Alguns caíam sobre o buraco, e logo sumiam.

Dick já não tinha forças para falar. Seus pensamentos eram confusos, a concentração era cada vez mais difícil.  Sentiu que estava chegando perto das portas da morte. Mas estava disposto a congelar ali e morrer, tentando fazer o impossível acontecer. Leonard, o pior mestre de todos os tempos, não parecia se importar nem um pouco com a condição de picolé de seu discípulo.

O velho aconchegou-se no saco de dormir e virou de lado para a fogueira, quentinha.

Dick  estava mergulhado em um turbilhão de sentimentos, que gradualmente foram ficando mais e mais confusos, as cores se perdiam num amálgama cinzento de sensações. O frio não existia e ele já não sabia se estava mesmo ali ou em outro lugar. Não tremia mais e não sentia mais as mãos ou os pés. Seus olhos viam através do buraco, numa escuridão que parecia girar em espiral infinita. Tudo que ele queria era criar. Criar. Ele precisava criar.

Então uma pequena luz começou a brilhar através dos grãos escuros de terra. Ela brilhava muito fracamente, tão fraca, que Dick pensou estar alucinando quando viu. Mas já não importava. Ele estava diante da morte.

Os grãos lentamente foram se movendo, e uma pequena coisa, parecendo uma minhoquinha luminosa, levemente azulada começou a serpentear no buraco. Essa minhoquinha foi se movendo bem devagar e levantou-se, tremendo de um lado para o outro, até florescer um pequeno trevo. A luminosidade foi gradualmente se reduzindo, reduzindo até que a escuridão voltou a preencher o buraco.

Dick olhava, estupefato, o trevo no buraco. Não estava ali há dois minutos atrás.

Foi lento o processo pelo qual ele tomou consciência que havia conseguido. Olhou as horas. Seus braços doíam terrivelmente. Todo seu corpo doía.

Dick se levantou com dificuldade. Foi até Leonard, que roncava encolhido no saco de dormir, ao lado da fogueira.

-Leonard! Eu consegui! – Disse ele, com a boca tampada pelo cachecol.

Leonard se virou. Espreguiçou lentamente.

-Tá falando sério ou sonhou?

-Tô falando sério!

-Vamos lá ver! – Disse Leonard, Levantando-se.

-Água! Eu preciso de água! – Dick balbuciou, em desespero.

-Primeiro o trabalho! – Falou Leonard, com o dedo em riste.

O velho foi até o buraco, seguido de Dick, que cambaleava com dificuldade.

Leonard apontou a lanterna para o buraco.

De fato, ali estava um lindo trevo, verdinho. No centro do buraco.

-Viu? Eu disse que conseguia! – Disse Dick, exultante.

Leonard se virou para Dick:

-Parabéns. Você conseguiu. Criou a vida. E para que você não esqueça o quanto ela é preciosa…

-Não, não! – Dick gritou, antevendo o que iria acontecer. Tentou agarrar o mestre,  mas foi tarde.

 

Laonard pisou com toda força sobre o trevo, esmagando-o em um creme verde contra o solo pedregoso.

-Vem, vamos comer feijão! Aqui tá frio. – Falou o velho, enquanto voltava para a barraca.

Dick caiu de joelhos diante daquele buraco onde agora jazia uma massa amorfa do que restara do vegetal. Naquela noite, Dick chorou como nunca havia chorado antes em sua vida.

Enquanto chorava, ouviu a voz tenebrosa do visitante misterioso lhe falar:

– Pobre criatura. Esta é a dor do criador quando vê sua criação sendo destruída. leve a dor consigo para o resto dos seus dias. Nunca se esqueça dela.

Dick não disse nada. Limpou os olhos, bateu as mãos sujas de terra e foi para a barraca comer o feijão.

 

FIM

 

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Cara!!!!
    Cara!!!!!
    CARA!!!!!!

    É o mesmo Leonard do Crianças da Noite?!?!?

    Cara!!!

    ? ? ?_? ?? o Leonard matou a plantinha!!! ?_?

    Leonard is back (•_•) ( •_•)>??-? (??_?)

  2. Porra Philipe, tava aqui quase enlouquecendo achando que ia ter mais um longo conto com Leonard aí me aparece esse FIM? hahahahahahahahahaha Ótimo conto, Leonard sendo Leonard como sempre.

  3. Philipe, isso foi maldade! Eu aqui pulando de felicidade achando que teria mais um longo conto do Leonard , quando na verdade foi um mero aperitivo.

    Mas de qualquer forma, valeu demais!

  4. Amo os contos com o Leonard,se bem que você não precisa do Leonard prós seus contos serem excelentes,amo a personalidade de Leonard

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