Sonhos de creme

Segunda a padaria não abre.

Subitamente sou acometido de uma vontade insana de comer um sonho de creme. Maldita sabotagem cerebral.
Pego o carro, encaro um engarrafamento, vou ate o mercado, cheio de fila.
No mercado a placa ameaça os malandros: Estacionamento para clientes. Não clientes:R$10,00 -Fração, R$10,00.
Meia hora esperando a moça da padaria parar de contar pra outra o que passou no Fantástico ontem. Ela me viu, fingiu que eu era o homem invisível e continuou. Com paciência de monge shaolim, espero para pedir o sonho. Inflaciono meu desejo ao me deparar com sonhos esféricos, verdadeiras cornucópias de doce de leite.

Realizo o meu desejo de obter meus sonhos.

A moça os acondiciona com cuidado em bandejinhas, envoltas com plastico transparente. São tantas voltas de plastico que começo a me intrigar se ela acha que vou tentar comer sem pagar. As voltas vão se sobrepondo, uma a outra, camada após camada do plastico branco. Penso que se aquilo saísse do bolso dela ela não botaria tantas.
“Essa dona tem talento para descontaminadora radioativa” – Penso, constrangido ao ver verdadeiras camadas geológicas de plástico se sobrepondo na caixinha do sonho.

Feliz, de posse dos meus sonhos, encaro os “néns” da fila para voltar pra casa.
A mulher do caixa pergunta se pagarei meus sonhos no dinheiro ou no cartão.
Pego o carro no estacionamento. Uma batida, engarrafamento, um infeliz atravessa o carro na faixa, fecha o cruzamento com uma picape que só não é maior que o ego dele e por fim um ônibus tenta misturar as tintas com o meu carro. Habilmente evito o busum pilotado pelo maníaco. Levo fechada de um golf preto dirigido por um cara magro tostado de sol, sem camisa, cabelo reco e cordão de ouro. É um “prey”. Prey de “preyboy”. Entro na minha rua.

Enfim a segurança das grades do condomínio, nossa prisão de luxo. Cumprimento o porteiro, o carcereiro de terno e gravata.

Conseguiu o sonho? -Ele pergunta, incrédulo, já imaginando que dei de cara na porta da padaria fechada.

Levanto o saquinho do mercado, eufórico. Exultante, ele me cumprimenta pelo esforço de “correr atrás dos meus sonhos”.

-Eu não desisto dos meus sonhos, cara!

Chego em casa, os sonhos pulsando na bandejinha.

A manobra de desenrolar o plástico é quase cirúrgica. É quase um parto.

Tenho que ter cuidado para que não espalhe o creme e o doce e leite por toda a embalagem. O sonho sem a generosa camada de recheio a verter de seu interior, é como uma mulher gostosa e feia.

Pego o sonho e enfio na boca. Mordo com o frenesi de um tubarão branco diante do turista alemão na água.

A primeira surpresa desagradável é encontrar duas bolotas pesadas de massa, gordurosas.

Tento abstrair a questão “infarto do miocárdio” daquele encontro íntimo com meu sonho. O recheio estava bom, mas enjoativo. A textura, parecia com a do fígado ressecado de um cachorro morto de beira de estrada. Não que eu já tenha comido um cachorro morto de beira de estrada, mas posso imaginar como deve ser ruim comer esta merda, e isso é quase tão ruim quanto o sonho. A diferença é que o sonho é doce.
Percebo então que as infinitas camadas de plástico visavam ocultar a verdade de que meus sonhos estavam velhos.

Todo trabalho, toda a aventura, todo esforço para encontrar meus sonhos, tinha sido em vão.

Deviam mudar o nome deles para pesadelos de creme.

Me conforto com meus pensamentos sobre os sonhos dos meus sonhos. Me sinto tão decepcionado quanto os eleitores do Lula.

Talvez um dia, quando as brumas do esquecimento atuarem, eu esqueça do fígado de cachorro morto e volte a desejá-los. Empreenderei uma nova quest e quem sabe, sairei vitorioso. Afinal, eu não desisto fácil dos meus sonhos.

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Caraca, só acho que o nome da Lei de Murphy tinha que mudar pra Lei de Gump, porque poutz, mesmo eu sendo um cara azarado não consigo chegar nesse nível. O máximo que acontece comigo é eu tentar de todas as maneiras ler O Iluminado e não ter em edição de bolso em nenhuma livraria.

  2. Comigo já aconteceu situação semelhante… mas os sonhos não estavam velhos… era o recheio que estava meio “azedo”, mesmo com aparência de novo.

    Até hoje eu não entendo bem isso… tem locais que esse creme sempre é bom, e outros que sempre tem esse gosto meio azedo (o que torna o sonho uma insonia).

    Mas enfim, quando a vontade bate… é triste eu ter que atravessar a cidade para ter certeza de comer um sonho de creme com sabor “certo”.

  3. Sonho é um problema mesmo.

    Visualmente é quase sempre lindo, apetitoso, de dar água na boca. E aí na primeira mordida… aquela decepção…

  4. Tem algo parecido com sonho, independente do recheio de creme/doce de leite, que tem coco ralado em cima… chamam de “Marta rocha” … é minha grande tentação depois do sonho…

    agora o triste, independente da qualidade mas altamente frustrante quando de ótima qualidade, é descobrir ao final da ultima mordida, que “o sonho acabou” … XD

  5. Minha tia que dizia isso…

    “Os sonhos da padaria eram sonhos, ou pesadelos?”

    Até o dia que ela me deu um dinheirinho pra comprar pão e mortadela, me deparei com sonhos lindos por 1 real, comprei ele e os pães.

    Minha tia chegou viu que eram só 6 pães e perguntou “ué, só deu pra comprar isso, era pra ter dado mais hen?” ai eu respondi ‘desculpa tia, comprei um sonho, não resisti’

    Ela respondeu de volta brava ‘não devia ter comprado o sonho, devia ter comprado a realidade ò.ó’

    hahahaha é bobo eu sei, mas os sonhos nunca são de hj, mas se a gente pergunta pra pessoa da padaria, ela sempre te diz ‘são de hj agora!’ hahaha

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